VENTOS UIVANTES

VENTOS UIVANTES

Autor: Paulo Soriano

Para Rogério Silvério de Farias

Sobreveio, então, para ele, uma mortal escuridão; lá fora, os ventos se contorciam em fúnebres inflexões, num coro de modulações espectrais, quase humanas.

Uma sombra crescia da janela e parecia avançar para o homem moreno, de cabelos longos e negros. Ele gritou. Era tarde. Sentiu que morreria. Mas não suportaria vê-la transfigurada, convertida numa repulsiva criatura noturna, de quem ele era, agora, apenas uma presa indefesa. E rezou a Deus e aos demônios. E pediu para morrer antes que os dentes aguçados de Catherine tremeluzissem na claridade convulsa da lareira.

Mas Cathy permanecia lá fora, alucinada, arranhando as abas das janelas, que se fechavam para uma escuridão atroz e para um vento que entoava fúnebres acordes dissonantes. Em pouco tempo, Cathy conseguiria romper a madeira, de tão carcomida e dilacerada que já estava.

E ali, trancafiado na cabana, rusticamente construída no sopé da colina, batida pelos ventos que uivavam dolorosamente, Heathcliff apenas esperava.

As últimas achas, que crepitavam na lareira, ecoavam, entre as cinzas friorentas, os derradeiros estertores. De lá vinha um bafio de calor, mas em ondas tão débeis, tão vulneráveis, que bastaria uma única fresta, uma tímida ranhura na janela, para que o frio estendesse seus tentáculos, e abraçasse aquele ambiente saturado pelo terror.

Com um esgar, Heathcliff olhou para arma.

Aquela coisa, que escavava ferozmente a madeira, e que um dia fora a doce Catherine, agora vagava pelas charnecas mais desoladas; delirava sobre os túmulos mefíticos dos cemitérios abandonados; e, distendendo as pupilas escarlates, voltadas para o nada, mirava, num estado de profunda catatonia, as brumas pegajosas que os morros e colinas exalavam ao contato com o lume fantasmagórico do luar.

Sim, lá fora as garras de Cathy, crispadas e cheias de urgência, laceravam as janelas, atirando aos refluxos dos ventos dispersas lascas de madeira de lei. E, enquanto aquela coisa escavava, dominada pelas alucinações de um transe vampiresco, Heathcliff podia ouvir nitidamente os uivos coléricos que irradiavam de uma boca profana, aspergida de sangue negro.

Da lareira vinha uma luz lânguida, que transpunha o ambiente com indolência, e reverberava seu laivo rubro nos os cristais e pratarias, antes de fenecer sobre o aço da pistola incandescente. Engatilhada, a arma jazia, fria e solitária, sobre a rústica mesa. Heathcliff a apanhou com as mãos trêmulas. Seus olhos marejavam de medo e de horror. Mas estava decidido.

Então, estendendo a sua lúgubre mortalha, o pesado silêncio a tudo dominou, caindo sobre o homem como uma bênção.

Para Linx.

A CABANA DA COLINA

Nota do autor: O leitor deve estar estranhando a bizarra conformação deste conto. E merece uma explicação. Na verdade, há, nesta pagina, mais de um conto. O primeiro é o que o leitor acabou de ler; o segundo, o que o leitor encontrará se se dispuser a ler o texto de baixo para cima – na ordem, aliás, em que foi escrito. Talvez haja um terceiro conto. Ou melhor, apenas um conto, com desfechos diferentes, a depender da ordem na qual é lido. Se ele existir – e torço para que exista –, eu o dedico a Henry Evaristo.

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