CAROL

CAROL

Autor: ARCANO SOTURNO



Carol



Arcano Soturno




Eu me lembro como se fosse ontem...


O corpo dela, sem vida, naquele túmulo aberto dentro da capela. Com flores enfeitando seu ataúde, cobrindo parte de seu longo cabelo negro, que mais parecia o véu da noite em meus sonhos pálidos.


Carol em seu descanso eterno, como uma estátua divina, permanecia indiferente às minhas lágrimas de sangue. Deslizando sobre meu rosto igualmente pálido, mas imortal.


A noite também foi indiferente, talvez por estar saturada e complacente com a nossa dor, foi indiferente perante os mortos na capela. Perante os parentes, os amigos e vizinhos. Todos mortos, todos hipócritas, responsáveis pelo assassinato de Carol em nome de uma religião cega pela Inquisição.


Parece que foi ontem... matamos todos eles, na capela, na cerimônia do funeral de Carol. Ainda me lembro nitidamente do sangue espalhado pelo chão. E o sangue deles foi doce de se saborear, porque tinha gosto de vingança. Mas a perda de Carol foi para todos nós amarga demais.


Naquela noite deixamos a lua banhar seu corpo, e ela beijou a pele pálida de Carol como uma mãe recebendo a filha em seus braços.


E eu chorei, chorei muito. Minha revolta maior foi ver Carol cercada por uma cerimônia religiosa, a mesma responsável por sua morte e que agora decorava seu funeral com anjos, santos, cruzes e velas. Como se estivessem comemorando mais uma vitória sobre nós. Mas Carol NUNCA foi uma de nós!


Ela, na verdade, era apenas minha. Sem nunca ter sido...





A tragédia aconteceu numa noite de lua cheia, igual a essa em que eu chorava sobre seu túmulo, derramando minhas lágrimas de sangue sobre sua pele pálida.





Eu queria matar a Carol, mas ela morreu...





Descobri nos lábios rubros e noturnos de Carol o beijo que me acorrentaria em sua alma para sempre. Apresentei-a aos meus amigos vampiros, homens e mulheres com centenas de anos caminhando pela estrada noturna dos mortos-vivos.





Eu queria matar a Carol, mas ela morreu...





Carol amava a todos nós, e todos nós amávamos Carol. Principalmente eu, que estava cada vez mais envolvido com seu encanto de viva. E ela, cada vez mais ligada ao meu sentimento frio de morte.





Eu queria matar a Carol, mas ela morreu...





Alguns de nosso grupo tentaram abraçá-la com os dentes em seu pescoço. Queriam que ela fosse também uma vampira, como nós. Mas eu não deixava. Nunca deixei. Carol era minha, e apenas minha. Eu a amava tanto que se alguém tivesse que iniciá-la nos caminhos vampíricos da morte, esse alguém seria eu.





Eu queria matar a Carol, mas ela morreu...





Toda noite nos encontrávamos. E corríamos sob o luar. Livres! Éramos morcegos, éramos lobos, éramos corvos, felinos e corujas no meio da natureza noturna. E Carol sorria, sorria numa felicidade tão grande em nos acompanhar, que parecia ser mais da noite que todos nós! E ela sempre ficava para trás, não conseguia nos acompanhar em nossas correrias pelos campos e bosques noturnos, tamanha era a velocidade de nossos passos. Mas eu sempre voltava e buscava Carol, e seus lábios sempre me recebiam...





Eu queria matar a Carol, mas ela morreu...





Essas lembranças ainda ferem meu coração. Ainda vejo o corpo de Carol naquele túmulo, e eu quebrando todas as decorações religiosas da capela, numa fúria cheia de dor pela perda de Carol.





Eu queria matar a Carol, mas ela morreu...





E foram eles! Aqueles malditos religiosos da Inquisição, que arruinaram minha felicidade com Carol. Eles saíram de suas igrejas à noite, com tochas e garruchas nas mãos. Prontos para caçar vampiros nas redondezas. Estávamos de passagem por aquela aldeia, quando encontramos Carol e eu prometi levá-la conosco.





Eu queria matar a Carol, mas ela morreu...





Não éramos da aldeia, mas eles acreditavam que éramos os mortos de seu cemitério, saídos de seus túmulos graças às possessões de seus demônios. E numa fé cega em nome de uma religião povoada por demônios que desconhecíamos, eles nos seguiram com suas armas. Mas éramos mais velozes, conseguimos fugir, mas...





Eu queria matar a Carol, mas ela morreu...





Como sempre, Carol não conseguia nos acompanhar. E as armas que nos deixavam apenas com ferimentos leves, puderam prejudicar bastante o corpo mortal de Carol, a ponto de matá-la.


Eu voltei! Não podia ficar sem Carol naquela noite em que a lua abençoava nossos passos. Tentei desesperadamente torná-la uma de nós, tentei matá-la! Para que ela pudesse ser uma vampira e ter nossa força, mas tarde demais...





Eu queria matar a Carol, mas ela morreu...





Fugimos. Com o coração ferido, deixei Carol para trás. Mas voltamos para o funeral de Carol, e de surpresa atacamos e matamos todos eles. E é por isso que estávamos naquela capela, no funeral de Carol, com os olhos imersos em lágrimas de sangue.


Um por um, todos se despediam de Carol e saíam da capela. Eu fui o último.


Pela última vez senti a doçura de seus lábios, mesmo mortos, quando a luz da lua penetrava por uma das janelas da capela, banhando a pele pálida de Carol.





Eu queria matar a Carol, mas ela morreu...





Hoje fecho este diário, deixando que minhas lembranças fiquem apenas nestas páginas, para que meu coração volte a ser livre novamente. Livre, como era livre o coração de Carol, sempre correndo com a natureza e a lua acolhendo seus passos. Longe da religião que aprisionava sua aldeia e cada vez mais próxima da liberdade.


Eu queria lhe dar a liberdade, a lua, a natureza, a noite... mas ela morreu.


Naquela noite, depois de todos terem saído da capela, um por um, mergulhando nas sombras da noite como morcegos, eu me despedi de Carol e corri o mais rápido que podia, como um lobo.


Corri, corri, corri...


Entre os bosques, corri, como um lobo.





Ela me esperava no alto de um precipício.


E eu corri ao seu encontro, corri, corri, corri...


E quando cheguei no alto do precipício, lá estava ela!


A lua cheia! Lá estava ela!


Banhando minha alma, abraçando todo o meu corpo.


E eu uivei para a lua. Uivei, uivei...


...”Perdoe-me lua, eu queria matar a Carol, mas ela morreu!”.


E eu fui levado pela nuvem de morcegos, caindo do precipício em direção às sombras da noite, voando como um morcego, livre e acompanhado de meus inseparáveis amigos.


Enquanto isso, de forma espectral, o rosto de Carol aparecia na lua. Ela sorria por todos nós...

... livres!

FIM

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