MARTÍRIO

MARTÍRIO

Autor: CARLOS HENRIQUE ALVES



MARTÍRIO


Carlos Henrique Alves


A primeira sensação que teve aos abrir os olhos naquela manhã de maio, acordado pela música que vinha do novo aparelho de som foi a de que seu cérebro poderia muito bem estar pesando perto de uma tonelada . Um gosto amargo era o que sentia na boca , um gosto podre, seus olhos pareciam duas bolas de fogo e ele teve certeza de que naquele momento, mais do que nunca , precisava de um médico.


- Devo estar ficando velho. Disse sorrindo , no alto de seus vinte e dois anos .


Passou seus olhos pelo quarto ( se bem que a mãe insistia , e ele começava a achar que ela tinha razão, que aquilo não passava de um cortiço sujo e mal arrumado ). Descansou seus olhos naqueles pôsters que enfeitavam sua parede.


-O bom e velho rock n’n . Pensou , enquanto se imaginava atrás da guitarra de Hendrix , ou sussurrando versos no ouvido de Curt Cobain . Chegou ao ponto de balançar levemente a cabeça , como faziam aqueles a quem tinha verdadeiro amor.


Seu pequeno sonho foi bruscamente interrompido pelo crepitar de gotas de chuvas que batiam fortemente em sua janela, gotas enormes quase abriam passagem pelo vidro . O vento fazia um som que o lembrava dos velhos filmes de terror de que se divertia quando sozinho em casa .


-Preciso de um médico e de uma transa . Sentenciou , enquanto seus pés tocavam levemente o chão gelado do quarto.


Vestiu-se rapidamente , já que sua bexiga dava sinais de que poderia vazar a qualquer instante . Abriu a porta ainda com os olhos pesados de sono e de dor, olhou para o corredor que ia de seu quarto ao banheiro , não viu ninguém no corredor e nem na cozinha.


-Estranho... Ninguém gritando , esbravejando , enfim parece que a paz chegou a este lar. Sorriu com a própria frase e começou a se encaminhar ao banheiro. Ainda no corredor previu que a paz duraria apenas poucos segundos , pois já ouvia uma voz aguda chegando aos seus ouvidos .


-Lá vem ela com aquela ladainha habitual . E enquanto pensava na irmã , começou a morder levemente o canto da boca , como sempre fazia quando se sentia nervoso , e ele sempre se sentia nervoso na presença dela.


Ela passou por ele como um raio nem sequer olhando em sua direção. E quando ela passou ele sentiu algo( além é claro do velho perfume barato ) . A princípio não pode explicar o que era, um calafrio , um temor , uma saudade sem razão de ser , sentiu um medo que somente ( e mais tarde ele saberia que tinha razão ) , pessoas que enfrentam a morte sabem como é. Ficou ali, parado , sentindo aquela gama de emoções entorpecerem sua mente frágil sem conseguir arredar o pé nem um centímetro do corredor . Sua cabeça começava a doer fortemente e seu estômago revirava de um jeito que começou a sentir a saliva quente e viscosa na boca . Pé por pé conseguiu chegar à porta do banheiro. Examinou- a lentamente , observando cada reentrância daquela madeira velha como nunca havia feito antes ( sentia que seus sentidos, todos, estavam muito aguçadas naquela manhã ). Bateu primeiro levemente, chamou, começou a ficar impaciente e quando percebeu gritava e chutava violentamente a porta , suas mãos quase abrindo passagem a força. Chamou pela mãe , não obteve resposta. Sua cabeça era um mar de pensamentos desencontrados. Perdera o controle. Sempre foi um cara paciente, não sabia, não entendia porque o ódio o consumia naquela estranha manhã . Quando a porta se abriu e ele já se preparava para talvez até uma briga física constatou perplexo que ela novamente passou por ele sem lhe dar o menor crédito, notou apenas que ao roçar levemente o braço no seu, ela olhando em sua direção mas estranhamente parecendo ver através dele, passou as mãos nos braços como geralmente se faz quando se sente um arrepio indesejável e continuou seu caminho sem olhar para trás. Olhou para baixo e notou assustado que já se formava uma mancha escura na frente de sua calça .


-Era só o que me faltava. - Disse, já desabotoando a calça enquanto entrava no banheiro.


Quando se preparava para fechar aquela bendita porta , quase foi jogado ao chão tamanha a força com que ela foi empurrada pela mãe, que entrou aflitivamente no banheiro. Observou perplexo a mãe por cerca de uns cinco minutos sem sequer ser notado. Um terror começou a se formar em sua mente e ele, caindo em si percebeu que não se lembrava de nada, absolutamente nada. Sua mente havia por alguma razão que ele desconhecia apagado toda e qualquer lembrança de qualquer data e tempo. Correu para fora do banheiro já com a certeza de que algo inexplicável estava acontecendo, quando chegou à cozinha seus sentidos já pareciam ser os de algum ( qualquer ) , animal acuado. Sua respiração era forte e pesada, suas mãos tremiam e apavorado com o que podia ser talvez uma brincadeira de péssimo gosto ( se bem que sua mãe jamais concordaria com um absurdo destes ) . Vislumbrou no pai que se encontrava sentado à mesa . O fim daquele martírio psicológico! Correu ao seu encontro , correu... correu... correu...



-Meu nome é Pedro, tenho perto de trinta anos , talvez mais talvez menos. Sou um pouco lento ao pensar ( me desculpe ). No dia em que tudo se apagou, só me lembro de ver papai à mesa como sempre fazia pela manhã. Lembro do seu olhar triste ( ia da folha de jornal que estava por cima da mesa até mim ). Ele me viu , e mais chorou. Nunca havia visto meu pai chorar antes ( nem mesmo quando vovó caiu da escada, depois de tropeçar no meu par de patins. Que deus a tenha! Lembro que mamãe se referia a ela assim, mas não sem antes me lançar um olhar que me gelava o sangue). O que narrei foi à primeira manhã dos 40 dias que passei neste dilema que me assombrou os dias e noites .Ninguém me notava, eu cheguei ao ponto de pensar que nunca existi ou talvez já tivesse deixado esta terra. Duke, o nosso cachorro sempre brincava comigo, era o único que me enxergava ( se bem que já ouvi dizer que os animais podem ver os mortos ). Aos poucos fui tomando conhecimento do que realmente aconteceu. O tal jornal que meu pai tristemente olhava naquela manhã , trazia na manchete a foto do que restou do nosso velho Santana 86. Bem amassado. Eu diria retorcido. Parece que eles morreram ( pelo menos é o que diz o jornal) , na tarde de 25 de maio de 200 , uma noite antes deu acordar para minha nova realidade .Até hoje tento me adaptar, eles não me veem , não falam comigo a não ser por ontem ... Estranhamente mamãe sussurrou algo em meu ouvido. Eu achei o que ela me pediu. Nunca tinha pegado uma arma antes. Ela anda me pedindo coisas estranhas. Tenho medo da dor mis vou acabar cedendo talvez lá eu possa abraçá- los. Até mais mamãe , já vou . Um beijo. Um beijo é o que eu quero e hoje eu vou tê-lo .




FIM

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