A VIZINHANÇA

A VIZINHANÇA

Autor: A. S. Vieira



A vizinhança

AUTOR: A. S. VIEIRA



Quando Claire Donahue chegou à bucólica e afastada cidade de Megiddo’s Hollow, no interior do país, ficou surpresa com o tamanho do lugar. O anúncio parecia deixar claro que a cidade era pouco maior que um bairro Nova Iorquino, mas a mulher se viu diante de um lugar imenso. Até maior que Manhattan.

Megiddo’s Hollow tinha ruas limpas e arborizadas, mas, estranhamente, sem carros. As casas eram lindas, com belos jardins. Viam-se alguns adultos, porém, prevaleciam as crianças. Havia muitas delas, como se o passatempo principal daqueles cidadãos fosse procriar.

Claire suspirou, pensando em Martha e Melanie, suas filhas de 9 e 13 anos. Queria vê-las antes de se mudar para a cidade, mas seu médico fora enfático quanto ao fato de que, após seu trauma, evitasse emoções fortes. A promessa do corretor que lhe indicara a casa fora de que em breve seu marido e suas filhas estariam com ela em Megiddo’s Hollow. Era só o tempo para que conseguissem transferência em seus trabalho e escola.

O céu estava cinza e o vento soprava continuamente quando ela girou a chave na fechadura. A casa nova a acolheu silenciosamente; nem o assoalho rangeu. Era calmo, sossegado e, para uma corretora da Wall Street, era o que havia mais próximo da morte.

Como prometido, estava mobiliada. Móveis rústicos que nem de longe lembravam os de sua casa em Westchester, mas serviriam até que Mike, seu marido, chegasse e, juntos, eles resolvessem o que fariam. Estava na cidade há cinco minutos, mas já sentia falta do monóxido de carbono no ar de Nova York. E de sua família.

Largou sua mala no chão e correu até o empoeirado telefone. Porém, antes que seus dedos tocassem nas teclas, ela percebeu que estava mudo. Impacientemente, ficou pressionando o gancho na tentativa de conseguir algum sinal.

- Está mudo – falou uma voz desconhecida atrás dela.

Claire gritou, largando o telefone no chão. Havia uma senhora muito idosa à porta, trajando um comportado terninho negro.

- Eu já liguei para a companhia – continuou a senhora – Eles não devem demorar a reparar a linha. Você deve ser Claire Donahue.

- Sou... E você, quem é?

- Oh, desculpe – sorriu carinhosamente – Sou Jamile, presidente da associação dos moradores de Megiddo`s Hollow.

- Ah... – Claire riu de si mesma – Desculpe ter reagido dessa maneira, mas não ando muito bem desde o acidente.

- Já fui informada sobre isso. Um terrível desastre de carro.

- Tive sorte de sobreviver. Eu lhe ofereceria um café, mas... Acabei de chegar, como você pode ver.

- Não tem problemas, minha filha. Preparei um delicioso bolo de milho lá em casa para nós. Acompanhado de um chazinho de maçã. Gosta?

- Sim. E podemos conversar um pouco mais. Só eu sei o quanto estou a fim de jogar conversa fora.

- Ah, minha querida, então encontrou a parceira ideal. Sei de tudo sobre a cidade. Acho que pela minha idade, desde que ela foi fundada.

Claire sorriu. Apesar do susto inicial, gostou de Jamile imediatamente. Seus olhos doces e gentis lhe remetiam a sua mãe, que há muito lhe deixara.




Já era tarde e Claire se revirava na cama, sem conseguir dormir. Insônia. Em momentos de stress ela costumava perder o sono, mas aquela tarde havia sido tão relaxante e ela não via motivos para ainda estar com os olhos abertos. Porém, não tinha sono. E também não ia adiantar nada ficar na cama.

Levantou-se e se enrolou no penhoar de seda. Duas da manhã, marcava o relógio. Talvez um chá a ajudasse a dormir. E foi no caminho para a cozinha que algo lhe chamou a atenção.

Pelas cortinas abertas, ela viu que não era a única sem sono. Todos seus vizinhos estavam bem acordados e parecendo dispostos, conversando entre eles enquanto prestavam atenção nas crianças que ainda brincavam como se fosse dia claro.

Insônia coletiva? Não, ela nunca ouvira falar disso.



Pela manhã, o telefone ainda estava com defeito.

- Eu sei – falou Jamile, novamente a surpreendendo – A companhia ainda nem deu sinal de vida.

- Jamile, eu preciso falar com minha família. Tive uma noite péssima.

- Dormiu mal?

- Não dormi. E parece que ninguém dormiu essa noite. O que aconteceu?

- Ninguém dormiu? Como assim? Isso é novidade pra mim.

- Pensei que soubesse de tudo na cidade.

- Pelo visto, nem tudo. Mas vamos esquecer isso por enquanto. Que tal um passeio?

- Eu prefiro esperar pelo reparo no telefone.

- Pode demorar – ela sorriu – Venha. Está um dia tão bonito.

Claire não conseguia dizer não à sua nova vizinha.




Alguns dias se passaram e nem a companhia telefônica ou o sono haviam chegado em Megiddo`s Hollow. Se o objetivo era evitar o stress, aquela ausência de informações não ajudava muito. Seus vizinhos até que se esforçavam para animá-la, mas Claire não tirava a família da cabeça e, surpreendentemente, até do emprego sentia falta.

Na sétima noite consecutiva sem sono decidiu que não ficaria na cama. Levantou-se e foi até a janela, de onde podia ver seus vizinhos alvoraçados. Mas, como ainda era relativamente mais cedo, eles não estavam vindo de parte alguma, mas indo.

Sem pensar, Claire saiu de sua casa e abordou Teresa, sua vizinha da frente.

- Pra onde todos estão indo? – perguntou ansiosa – Há alguma festa acontecendo?

- Na verdade é uma pequena reunião – respondeu Teresa de um modo que Claire percebeu não ser sincero.

- E eu poderia ir?

- Não sei se seria educado levar alguém sem perguntar antes. Eu poderia até ligar e perguntar, mas como você sabe os telefones...

- Estão mudos.

- Que bom que você compreende.

E sorrindo, ela se afastou.

Qual era o problema daquela cidade? Pensou Claire. Por que todos sempre tinham um sorriso de fada madrinha no rosto?

Claire as observou por alguns segundos até resolver ir à casa de Jamile. Talvez também ela não conseguisse dormir e estivesse indo a tal festa. No caminho, percebeu que ventava muito. Mas o vento que soprava era quente e, por vezes, sufocante. E todos estavam caminhando na mesma direção. Todos. De todas as casas, de todos os lugares da cidade.

Claire nem se deu a trabalho de bater na porta de Jamile. Sabia que ela estava indo junto com os outros cidadãos para qualquer que fosse o lugar. E já que estava sem sono, e cheia de energia, Claire seguiu o povo.

A procissão era longa. As pessoas quase não falavam no caminho e, por alguma razão interna, Claire sabia que não estavam indo para uma festa. Ainda mais quando viu uma imensa igreja, ou pelo menos foi o que pareceu aquela construção no meio do bosque, se projetar majestosa por entre as árvores. Até aquele momento ela não percebera que a procissão adentrara a floresta. Foi então que ela parou.

Teve medo da construção. Teve medo das pessoas. Teve medo do som que ouvia vindo de dentro do lugar, o que parecia ser um canto. Um canto contínuo, meio assustador, em uma língua que decididamente não era nenhuma que ela já tivesse ouvido antes. Não tinha religião, mas aquele canto soava para ela como uma oração.

Seus olhos se encheram de lágrimas enquanto ela se afastava de costas. O vento quente a golpeando. Seus pés descalços, percebeu ela. E uma mão fria tocando seu ombro. Ela se virou apavorada, quase gritando.

- Vá pra casa – disse Jamile.

- O que é aquilo?

- O que lhe parece?

- Quero que me fale!

- Vá pra casa, Claire – falou ela de forma muito doce e sorriu. Claire nunca conseguiria dizer não para aquele sorriso.

- Então conversamos pela manhã?

- Claro que sim.

A velha senhora seguiu para dentro do prédio, enquanto Claire a observava. Alguns minutos depois ela estava em casa. Sentou-se na escrivaninha e escreveu uma carta para o marido onde pedia que ele fosse buscá-la o mais rápido que pudesse. Tentaria colocá-la no correio nas primeiras horas do dia.



Quando o sol pálido nasceu, Claire saiu logo de casa. Queria ir ao centro, procurar um correio e voltar antes da visita habitual de Jamile. Jamile de quê? Enquanto escrevia a carta percebeu que não sabia o nome da velha senhora, nem de nenhum de seus vizinhos. Toda a vizinhaça se apresentava usando apenas o primeiro nome, um ato incomum na América.

Andou por horas pela cidade com a carta nas mãos e então percebeu que não havia mesmo nenhum carro na cidade. E também não havia supermercados, ou correios, ou farmácias, ou qualquer outra loja. Nada. Pelo que percebia Megiddo`s Hollow era constituída apenas de casas e mais casas, com uma estranha construção no meio do bosque.

Para se certificar, subiu em uma caixa d`água, que parecia ser o ponto mais alto da cidade. Lá de cima pode ter uma exata visão de onde estava. Em uma ilha, cercada por um oceano de casas. Até onde sua vista alcançava. Tudo iluminado pelo sol, exceto numa parte ao sul, onde o lugar era tomado por sombras.

- Onde diabos eu estou...

Uma lufada de vento então arrancou a carta de suas mãos, a levando para longe. Ela tentou agarrá-la no ar, mas por fim a deixou ir. Algo lhe dizia que não adiantaria tê-la nas mãos.

Desceu calmamente. Respirou fundo. Ainda tinha energia, apesar de todo o esforço que fizera. Então agarrou o braço de um homem, que passeava com um garotinho, e usou um tom inquisidor quando abriu a boca.

- Como eu faço para fazer compras por aqui, ou comprar remédios, ou...

- Essa cidade é residencial não sabia. Se quiser fazer compras, tem que fazer para o mês inteiro em Derry.

- Aqui não tem nenhuma loja?

- E onde estaria a paz se isso aqui fosse um comércio.

- Isso não faz sentido... E como eu vou para Derry?

- De carro, ora!

- Mas eu não tenho carro. Aliás, ninguém aqui tem.

- Quem lhe disse isso?

- Basta olhar as ruas.

- Você é nova aqui, né? Todos temos carros, só não o usamos para manter o silêncio e o ar puro. Uma opção coletiva. Como você chegou aqui?

- O corretor que me vendeu a casa me trouxe... Eu acho.

- Então peça que a leve à Derry. Olha, se estiver precisando de algo com urgência eu e minha esposa podemos...

- Não, obrigada. Não preciso de nada.

Voltou então pra casa, enfiando tudo o que podia de volta na mala, mas ao mesmo tempo não tendo noção do que estava nela. Batidas na porta. Ela as ignorou. Chorando, fechou a mala.

- Claire – chamou Jamile – sou eu. Ainda está dormindo?

Batidas mais fortes. Ela sabia que Claire não dormia há dias e aquela noite em especial havia sido ainda mais incômoda.

- Claire...

Não iria responder, talvez ela fosse embora.

- Se está chateada por ontem à noite...

Não respondeu. Batidas impacientes agora.

- Sei que você está em casa, Claire. Não seja infantil. Rita a viu chegar. Se não abrir a porta, vou pedir que a arrombem.

- Não quero conversar! – respondeu enfim.

- Tudo bem – seu tom agora parecia ainda mais sereno – Quando quiser conversar, estarei em casa.

Claire pensou no carro. Todos tinham um, segundo aquele homem na cidade.

- Não, espere!

Abriu a porta, tentando parecer bem.

- Eu fiquei preocupada.

- Desculpe, Jamile, mas essa falta de sono está me fazendo mal.

Mentira. Nunca se sentira melhor disposta em toda sua vida.

- Soube que foi ao centro da cidade?

- Como sou... – respirou fundo – Eu queria colocar uma carta no correio.

- Não temos correios aqui. Só em Derry. Talvez devesse esperar pelo carteiro. Ele passa todas as quintas feiras.

- Na verdade, eu preciso de remédio e fazer compras também.

- Mas quando soube de sua chegada, me encarreguei de encher sua despensa.

- Eu sei, mas há remédios...

- Os remédios estão no armário do banheiro e...

- Eu quero fazer as compras! – gritou ela – Será que eu posso?

- Desculpe – Jamile parecia assustada – Pode, claro. Pode ir à Derry a qualquer hora.

- Pois eu quero ir agora.

- Então vá.

- Eu não estou com meu carro, não percebeu? – respirou fundo, dizendo o mais calma que conseguiu – Não poderia me emprestar o seu?

- Claro – Jamile sorriu – por que não pediu antes?

Por algum motivo, Claire achou que sofreria alguma objeção. Mas não.

- Queira me desculpar por minhas atitudes, Jamile – desculpou-se ela no caminho até a casa da vizinha – Mas eu não ando muito bem. Estou me recuperando desse trauma e, você sabe. Não vi aqui pra ficar e eu sin...

- Claire, minha querida, não precisa se explicar. De verdade Acho que um passeio de carro fará muito bem à você. O carro não é meu, é do meu filho. Não sei dirigir, mas posso aproveitar que vai à Derry e talvez possamos assistir a um filme no cinema. Há anos não vou a cinema. Acho que a última vez Clark Gable fazia juras de amor à Vivien Leigh.

A idéia era boa, Claire admitiu. Cinema... Ela precisava de uma boa comédia. No que estava pensando afinal? Qual é o problema de estar numa cidade pacata e residencial? Tanto tempo convivendo com o lixo de Nova York e desacostumara quanto ao descanso e a cordialidade.


O carro de Jamile era um chevrolet velho, mas devia fazer bem seu serviço. Esperou alguns segundo para a senhora trazer as chaves, então abriu a porta. Mas ao entrar e tocar as mãos no volante, começou a tremer e chorar. Seu corpo inteiro parecia temer aquele carro.

Logo ela se viu dirigindo pela ponte do Brooklin, nas primeiras horas do dia numa típica manhã na capital do mundo e, como sempre, já ao celular. Sorria, apesar de não lembrar com quem falava. Era alguém que ela gostava, certamente. Só podia ser. E a conversa estava tão boa que ela nem viu uma moradora de rua, empurrando um carrinho com latas, se precipitar pela calçada. Quando a percebeu, já estava próxima de seu pára-choque. Claire largou o celular e gritou, girando o volante em seguida. A guinada violenta na pista fez com que seu carro capotasse três vezes. Ela podia sentir ainda o vidro quebrado rasgando seu rosto, enquanto o volante era enterrado no seu peito. O trânsito ficou parado por mais de seis horas. O que ela conseguia ouvir era que tinha muito sorte de estar viva. E se lembrava de dizer a si mesma que nunca mais tocaria no volante de um carro.

E agora estava ali. Novamente em contato com tudo aquilo, enquanto tremia e chorava incontrolavelmente.

- Claire, o que houve? – chamou Jamile preocupada – Fale comigo.

- Eu... Eu não posso...

Chorando, ela deslizou para fora do carro e caiu no chão da garagem em pânico. Jamile a abraçou imediatamente.

- Não dá... Eu não consigo...

- Calma, calma.

- Eu pensei que eu podia.

- Você passou por um trauma muito grande, minha filha.

- Por favor, Jamile... Me tire daqui.

- Claro, claro. Vamos lá pra dentro.


A sala da casa de Jamile era bem arrumada, sem sujeiras e exibia uma coleção de pratos de porcelana. Todos os móveis eram de madeira, bem envernizados e com paninhos tricotados sobre eles. Jamile devia ser uma mulher bem caprichosa, era o que Claire pensaria se não estivesse tentando entender a razão daquele pavor súbito. Já havia conhecido pessoas que sofriam de síndrome do pânico, traumas, mas nunca imaginava que pudesse ser uma delas um dia. Não ela.

- Quando a companhia telefônica fizer o reparo na linha – disse Jamile vindo da cozinha com uma xícara de chá – acho que você deveria se consultar com um psicólogo.

- Você acha? – bebericou o chá.

- Não a conheço há muito tempo, Claire, apenas há alguns dias, mas há algo estranho com você.

- E estou percebendo isso. Se agrava por essa ausência de sono, que todos...

- Claire, não há insônia coletiva. As pessoas vão até a igreja de noite, ficam até um pouco tarde, mas depois voltam e dormem normalmente. É um costume aqui em Megddo`s Hollow.

- Mas você não me deixou entrar lá.

- As pessoas não gostam muito de gente sem religião no nosso refúgio de oração.

- Oh, desculpe.

- Não precisa se desculpar, mas tente não manter essa sua mania de perseguição. A cidade é muito pacata e acolhedora. Queremos que ela continue assim. Beba isso – lhe deu um comprimido – vai fazer você descansar.

Ainda com lágrimas nos olhos, Claire pegou o comprimido branco e o engoliu. Logo entrou em um sono profundo e sem sonhos, onde, de certa forma, tinha consciência do que estava acontecendo a sua volta.


Despertou assustada, mas extremamente disposta. A noite já estava firme no céu, com sua lua cheia e suas estrelas. O mesmo vento quente soprava.

- Jamile... – chamou ela.

Mas sabia que ela não estava em casa. Já devia ter ido a tal igreja. Não havia pessoas andando na rua, portanto, todos deveriam estar no bosque. Uma cidade tão grande e todos seguiam a mesma religião. Coisa estranha, ela sabia, mas não queria questionar mais nada.

Já se preparava para voltar pra casa quando a curiosidade bateu. O que poderia ter de interessante na casa de Jamile? Sem questionar, começou a mexer em tudo, mas tomando cuidado de deixar os objetos no mesmo lugar onde estavam.

Revirou fotos, papéis e então passou pelos quartos. Dois. O de Jamile e o de seu filho, bem arrumado. No primeiro encontro das duas, Jamile lhe confidenciara que Roni estudava em Londres e ia à cidade apenas nos feriados. Não havia nada de interessante nos quartos ou no segundo andar. Ali só restava uma escada para o sótão.

O que poderia haver no sótão de uma senhora idosa? Estava disposta a descobrir. Rindo de si mesma, como se tivesse seis anos, subiu degrau por degrau até alcançar o sótão, que no geral costumam ser cômodos sujos e bagunçados. Não ali.

Claire se assustou quando se viu em um cômodo maior que o habitual, moderno e bem arrumado. Repleto de arquivos.

- O que vem a ser isso?

A mulher então, tomada de uma curiosidade ainda maior, começou a remexer nos arquivos, repletos de fichas de pessoas que ela jamais vira antes. Quem eram elas e porque Jamile mantinha registro de todas elas ali?

Na mesa do que seria um escritório, havia algumas pastas. Claire se aproximou da mesa, sentou-se na cadeira e olhou as fichas. Havia o que seriam registros de pessoas que estavam chegando à Megiddo`s Hollow, com fotos, endereços anteriores e, estranhamente, uma lista de todos os atos praticados pelas pessoas. Bons e maus atos, na verdade. Ela largou as fichas, intrigada. Remexou um pouco mais nos papéis, até que encontrou a sua ficha.

Todos seus dados estavam lá: filiação, endereço, árvore genealógica... Mas a data de chegada e seus atos, bons ou maus, estavam em branco. Então, quando já se preparava para ir embora de vez, achou duas fichas que a deixaram intrigadas: Marlon e Violet Carmichael, seus pais. E havia algo que a intrigou: a data de chegada deles na cidade.

- Mas eles estão mortos... Que palhaçada é essa?

Pode-se dizer que Claire pensou muito, mas não. A decisão que tomou não levou sequer cinco segundos. Sabia que o lugar para respostas estava em algum lugar na vizinhança. Mais especificamente na construção, aquela espécie de igreja, no bosque. E foi para onde seguiu.

Antes de adentrar o bosque, pode ouvir o canto. Aquele que a assustava. Era o mesmo de antes, ela sabia, mas agora parecia ainda mais assustador. Naquele momento ele parecia fúnebre.

E a majestosa construção. Essa parecia um imenso mausoléu com portas nada convidativas. No entanto, Claire as empurrou. Não havia nada além da escuridão. Olhando com mais calma, viu que havia vários corredores, caminhos que levavam para diferentes lugares. Resolveu usar o canto como guia e, cautelosamente, tomou o corredor da esquerda.

Era como caminhar descalça sobre cacos de vidro, pois cada passo que dava era mais difícil do que o outro. Talvez devesse desistir, talvez devesse voltar... Mas porque tinha tanto medo daquela igreja? Foi então que alcançou o salão principal e, em choque, entendeu o porquê.

Havia uma multidão de pessoas, de todas as idades, de todas as cores, de todos os tipos, nus. Completamente despidos, diante de pequenas fogueiras individuais para onde eles direcionavam o cante, ou oração. E choravam, gritavam, entravam em êxtase... Ainda assim cantando. E aquilo apavorou Claire. Mas então outra visão a fez esquecer o pavor e a deixou furiosa.

Onde deveria ser o altar principal, Jamile, de olhos fechados, comandava o canto como uma pastora para seus fiéis. E cada vez mais o tom do canto parecia subir dando uma sensação de pânico à Claire.

Porém, tentando não se deixar atingir por aquilo, Claire se dirigiu ao altar principal, desviando-se das pessoas com suas fogueiras e cantos inebriantes. Enquanto caminhava, ela percebeu algo nas chamas. Elas não aqueciam, ou queimavam. Ao invés disso, mostravam pálidas imagens de pessoas em diferentes lugares, praticando diferentes ações. Algumas em escolas, outras em casas, outras em viagens... O que era estranho, pois era para elas que o canto era direcionado. Assustada, Claire pensou em correr para fora da igreja. E nesse ato acabou tropeçando em uma menina, que, ao abrir olhos, gritou intensamente. Em poucos segundos, todos abriram os olhos e gritavam também, em um uníssono ensurdecedor.

- Parem de gritar – berrou Jamile e, quando se fez silêncio, voltou-se à Claire – O que você faz aqui? Achei que tinha sido clara quanto...

- Por que você mantém um registro de todos nessa cidade?

- Do que você...

- Disso – e mostrou alguns arquivos – Como teve acesso a essas informações e como tem fichas de meus pais, que já morreram há muitos anos.

- Claire, há coisas que você ainda desconhece sobre nós.

- E não vou ficar aqui pra conhecer. Com ou sem carro, Jamile, estou indo embora dessa cidade agora.

Jamile vestiu uma manta.

- Não, não está.

- Como assim?

- Você não vai sair dessa cidade, Claire. Não até que seja decidido que você deve partir. Por enquanto você fica.

- Isso é o que você pensa. Eu não ligo para ordens médicas e estou indo embora.

Mas ao se virar para sair, havia dois homens, jovens e bonitos, bloqueando sua saída. Usavam roupas negras e sorriam. Apesar de aquele sorriso ser usado para transmitir paz, aterrorizou ainda mais Claire.

- Quem são vocês?

- O que faremos com ela? – perguntou um deles à Jamile.

- Leve-a para o porão da igreja. Ela simplesmente não pode ir embora.

- O que? – falou ela aterrorizada – Não podem me prender! Isso é cárcere privado, ouviu?

Mas percebeu que não adiantaria falar. Tentou correr pelo caminho oposto, mas os dois homens se ergueram no ar, voando, e a seguraram.

- O que é isso?! Quem são vocês?!

- Não grite, Claire – pediu Jamile.

- Eu quero ir pra casa!

- Você está em casa.

- Minha casa! – e se voltou à multidão de pessoas – Por favor! Façam alguma coisa! Me ajudem!!!

Mas ninguém falou nada. Todos a olhavam sem emoção, enquanto os homens a erguiam no ar. Gritando, chorando e se debatendo, Claire foi levada um lance de escadas abaixo e jogada no porão. A porta foi trancada em seguida.

- Desgraçados!!! – gritou ela, com lágrimas – Vocês não sabem com quem estão lidando!!! Eu vou processar todos vocês! Todos vocês!

- Não vai adiantar – disse a voz de uma jovem mulher.

Só então Claire percebeu que não estava sozinha no porão. Havia com ela pelo menos umas trinta pessoas.

- Quem são vocês?

- Pessoas que descobriram algo errado nessa cidade – falou a mulher – Algo que não podemos explicar.

Claire sentou-se, respirando fundo.

- Que tipo de coisas estranhas?

- A cidade não tem lojas – falou um homem robusto – Não tem hospitais, nem prefeitura... Jamile, que nem diabos sobrenome tem, parece ser a responsável por tudo aqui.

- E tem aqueles policiais – disse uma senhora bem idosa – Aqueles jovens de negro. Eles me dão arrepios. E voam. Pessoas não podem voar!

- Eles não são pessoas – tornou a falar a jovem mulher – E eu já disse o que acho.

- Besteira! – resmungou o homem.

- O que você acha? – perguntou Claire, intrigada, mas mais calma em ter pessoas na mesma situação que ela.

- Acho que estamos mortos. Todos nós.

Houve um burburinho geral.

- Eu já disse – continuou o homem – Isso é besteira. Não podemos estar mortos.

- É mesmo? Então porque não conseguimos contato com nossas famílias desde os nossos acidentes? Quem nos trouxe aqui foi o mesmo corretor, com aquela conversa esquisita de lugar para relaxar. Estamos mortos!

- Isso não faz sentido.

- Até faz – concordou Claire respirando fundo e jogando os arquivos no chão – Encontrei essas coisas na casa de Jamile. Ela tem arquivo de milhões de pessoas nessa cidade – vendo que os arquivos passavam de mão em mão, ela continuou – Essas pessoas aí mais velhas, são meus pais. Há a data de chegada deles na cidade.

- E daí? – o homem parecia incrédulo.

- E daí que é a mesma data que eles morreram, há anos atrás.

- Eu disse, eu disse – falou a jovem mulher.

E o silêncio que se seguiu foi terrível. Finalmente, o homem o quebrou.

- Se estamos mortos... A que isso nos leva? O que estamos fazendo aqui?

- Eu não sei – falou a senhora – mas ainda não acredito que estamos mortos. Duas noites atrás eu consegui dormir e vi minha família de alguma forma. E sei que não estou morta. Além do mais – ela exibiu o braço – eu me cortei esses dias e sangrei. Eu sangraria se estivesse morta?

- Isso não faz sentido. Não faz mesmo – falou o homem – Precisamos de respostas.

A porta então foi destrancada e se abriu. Por ela, Jamile entrou. Todos pareciam furiosos com ela, mas nenhum deles disse nada. Apenas a olhavam com um misto de pavor e ódio.

- O dia já está nascendo – falou ela – Vocês estragaram nossa noite, mas não podemos deixá-los aqui. Voltem para suas casas.

- Queremos sair da cidade – falou o homem.

- Não vou discutir isso de novo com você.

- Então nos responda – disse a jovem mulher – estamos mortos ou não? Por que realmente parece que estamos.

- Pela milésima vez, Tracy, não! Vocês não estão mortos! E pelo que me consta, vocês estão aqui de passagem, portanto, ajam como bons convidados e se comportem.

- Queremos saber mais sobre essa maldita cidade – gritou Claire.

- Essa “maldita cidade” está recebendo vocês de braços abertos. E, a menos que decidam ficar aqui pra sempre, não saberão nenhum dos segredos de Megiddo`s Hollow. Agora vão! Direto para suas casas!

Todos saíram do porão, um a um, mas Claire ficou. Estudou Jamile por alguns segundos em silêncio, até que a velha senhora falou:

- Vou trancar o porão. Se quiser ficar aqui por mais tempo...

- Meus pais estão aqui, não estão?

- Por que não estariam?

- Porque estão mortos!

Ela riu.

- Já disse, Claire. A menos que decida ficar pra sempre, não saberá nada sobre essa cidade.

- Não posso ficar. Tenho uma família...

- Se desprenda e aprenda. Quando ficamos presos ao passado, não evoluímos.

Claire não falou mais nada. Apenas saiu do porão e então da igreja. Caminhou pelo bosque e, já na cidade, Tracy a esperava acompanhada da velha senhora e do robusto homem.

- Que bom que esperaram por mim.

- Sou Tracy, como deve saber. Estes são Ruth e Donnie. Eu sou do Texas e eles são do Kansas.

- E eu sou Claire, de Nova York.

- Claire, conversamos com os outros – falou Donnie – mas eles não quiseram. Estão com medo. Mas nós decidimos ir pra casa. Vamos fugir dessa cidade ainda hoje.

- Mas como conseguiremos?

- Daremos um jeito – falou Ruth – só queremos saber se está conosco.

Ela sorriu, aliviada.

- Sim. Estou com vocês sim.

Instintivamente todos olharam para as ruas da cidade, onde dezenas de jovens, homens e mulheres, andavam com trajes negros.

- Até ontem eu não havia reparado neles – murmurou Claire.

- Bom – completou Tracy – parece que ele não tem mais porque se esconder.

- É melhor voltarmos pra casa então – falou Ruth apreensivamente.

- Boa idéia. Nos encontramos então na caixa d`água lá no centro da cidade à noite, quando esse povo todo tiver ido para a igreja. No vemos lá então? Ruth?

- Sim, é claro.

- Donnie?

- Pode contar comigo.

- Claire?

- Sem dúvida. O que eu mais quero é sair dessa cidade.

- Então nos vemos à noite.

E sem se falar mais, os quatro seguiram em direções opostas. Nenhum deles percebeu que Jamile os observou escondida atrás de uma árvore. Assim que chegou às ruas, um dos jovens de negro se aproximou dela.

- Os quatro estavam conversando, Jamile.

- E eu ouvi tudo.

- Quer que nós façamos alguma coisa?

- Sim. Quero que todos venham à igreja essa noite e deixem as ruas livres.

- Mas aí eles poderão sair da cidade.

- Acredite, eles vão sair da cidade. E é melhor pra eles que saiam. E para nós também.

Jamile se afastou calmamente.

- Ah, Jamile!

- Sim?

- Os pais de Claire querem falar com você.

- Não, não... Por que eles não podem simplesmente ficar quietos e esperar como todos os outros? A filha tem mesmo a quem puxar.



Claire esteve inquieta por todo o dia. A toda hora um dos “policiais” passava por sua janela e fazia questão de cumprimentá-la. Ela nunca quis que a noite chegasse tão rápido. E assim que as primeiras sombras da noite surgiram, ela ficou alerta. Assim que as primeiras pessoas começaram a sair de casa, ela ficou esperançosa. Assim que as ruas ficaram desertas, ela partiu.

Ninguém nas ruas. Absolutamente ninguém. Só o mesmo vento quente, aquela noite um pouco mais forte. Não teve dificuldades em chegar à caixa d`água, onde Tracy e Donnie a esperavam.

- Cadê a Ruth? – perguntou ela.

- Ainda não chegou. Vamos esperar uns...

- Ela está vindo – apontou Donnie – Ainda bem.

- E então – falou Ruth – Podemos ir?

- Claro – disse Tracy – Alguém sabe como sair daqui?

- De carro? – sugeriu Donnie.

- Legal, Donnie, mas nenhum de nós tem carro aqui ou consegue dirigir. Alguma idéia melhor? Claire?

- Podemos ir, quem sabe, até a estrada que vai para Derry e andar até conseguirmos carona. É uma idéia. E pelo menos estaríamos longe daqui, desse lugar.

- Vamos então. Logo!

Os quatro então seguiram pelas ruas, em silêncio, estranhando a ausência dos homens de negro. Mas ninguém falou nada, apenas seguiram por horas pela cidade, passando por um sem número de casas e mais casas. Nenhum deles se sentia cansado. Então finalmente, depois do que pareceu uma eternidade, saíram da cidade e chegaram a uma rodovia.

A felicidade de ver carros e caminhões passando estava estampado no rosto de todos, porém, a tentativa de conseguir carona foi inútil. Nenhum veículo parou.

- Vamos andar. Alguém vai parar mais cedo ou mais tarde.

- Não sei, Tracy. Acho melhor voltarmos e conseguirmos um carro.

- Não seja tola, Ruth. Vamos seguir a rodovia até conseguirmos voltar pra casa. E isso não é uma sugestão.

- Vejam – falou Claire – Uma parada de caminhões.

Sorrindo ainda mais, todos correram até a parada de caminhões. Havia um posto de gasolina de aspecto abandonado e um restaurante chamado Nocturno.

- Pessoal – falou Donnie – não sei se é uma boa idéia pedirmos carona.

- O que sugere então?

- Não sei, Tracy. Não quero ouvir nãos desses caras ou expor vocês, mulheres.

- Podemos ver o destino deles e entrar escondido nas caçambas deles, junto com as cargas – sugeriu Claire – Descemos quando eles pararem.

- Eu concordo – finalizou Tracy.

E como ninguém mais disse nada, partiram para a escolha dos caminhões. Virem as placas. Vancouver, Minessota, Wyoming, Kansas... Foi naquele que eles esconderam Ruth e Donnie.

- Boa sorte pra vocês dois.

- Você também, Claire.

Tracy subiu em um que estava indo para Houston e apenas sorriu para Claire. Elas sabiam que não se veriam tão cedo. Claire não teve dificuldades em conseguir embarcar como candlestina. Entrou em um caminhão de roupas que ia para o Queens. O veículo demorou duas horas mais ou menos para partir, mas quando o fez, ela suspirou aliviada. Iria conseguir sua paz. Fim, foi o que pensou sorridente enquanto o caminhão deixava aquilo tudo pra trás.


Claire então chegou em seu bairro. O sol já havia nascido e ela se sentia muito. As ruas estavam vazias, pois estava cedo demais para as pessoas saírem de casa em um... Afinal, em que dia da semana estava? Não importava.

Assim que avistou sua casa, ela correu. A porta se abriu. Ela sorriu, chorando de excitação. Duas belas meninas saíram da casa, com mochilas, certamente indo para a escola.

- Martha! Melanie! – gritou ela.

As meninas não ouviram. Mike saíra logo atrás e todos entraram no carro estacionado em frente.

- Mike, espere! – gritou ela.

Mas Mike também não a ouviu. Ela correu ainda mais, mas quando alcançou seu jardim, o carro já estava na pista.

- A escola...

Claire sempre conheceu bons atalhos em seu bairro, por isso não teve problemas em chegar ao lugar no mesmo momento em que sua família. As meninas já estavam descendo do carro, mas ela não ia deixar Mike partir sem falar com ela. Antes que o carro partisse novamente, ela abriu uma das portas traseiras e se enfiou no veículo, batendo a porta.

- O que é isso?!

- Mike, eu voltei.

Mike a encarou e sorriu. Por um momento ela pensou que havia acordado daquele pesadelo, mas Mike não estava sorrindo para ela. Estava sorrindo para si mesmo.

- Idiota – falou consigo mesmo – Tenho de parar de me assustar o tempo todo.

- Mike? Estou aqui. Quer parar com essa brincadeira idiota? Você não sabe o que eu tenho passado.

O carro partiu.

- Ok. Quer continuar com isso, tudo bem. Estou aqui quando quiser se desculpar.

Mas Mike manteve seu silêncio. Parou rapidamente numa floricultura, comprou Lírios, as flores preferidas de Claire, e voltou para o carro. Claire pensou que ele se manifestaria, mas continuou em silêncio. Aquilo não era normal. De maneira alguma.

Olhou para seus pés. Andara parte da noite e eles não tinham uma bolha sequer. Nada daquilo era normal. Será que estava morta?

- Alô – disse Mike ao celular – sou Mike Donahue. Tudo bem. Só estou ligando para avisar que vou visitar Claire antes do trabalho, se não for um incômodo. Não? Ótimo, estou a caminho.

Então não estava morta. Era bom que aquela brincadeira tivesse uma boa razão, pois ela já estava começando a desconfiar da própria sanidade.

Mike seguiu pelas ruas de Manhattan até que parou diante de um prédio antigo, mas ainda sim arrumado. Desceram. Mike cumprimentou o porteiro, as recepcionistas, tomou um elevador. Claire estava apavorada. Ninguém parecia vê-la. Ao chegarem ao seu destino, Mike abriu uma porta e entrou em um quarto. Claire estava reticente. Sabia o que veria antes mesmo de entrar.

No quarto, Mike conversava com um médico enquanto depositava suas flores ao lado de uma cama, onde ela viu a si mesma deitada, jazendo cheia de aparelhos.

- Nenhum sinal de melhora, doutor? – perguntou Mike.

- Não sabemos se ela conseguirá sair do coma.

- Mas sabe que essa noite eu tive um bom pressentimento – ele sorriu, chorando algumas lágrimas – Sonhei que ela estava lutando para voltar pra mim e as meninas.

- Isso é bom. Não se pode perder as esperanças.

Claire se aproximou de si mesma, chorando. Então era isso. O acidente a havia deixado em coma. Ela não estava nem morta, nem viva. Apenas presa entre um lado e o outro. O que ela poderia fazer? O que?

Ela então mergulhou em seu corpo, tentando voltar a si. Nada aconteceu. Gritou, mexeu e nada. Olhou para Mike, que estava se despedindo do médico. Ela precisava fazer alguma coisa, qualquer coisa para chamar sua atenção. Ela precisava gritar seu nome.

- Mike... MIKE!

E então eles a olharam. Olharam para seu corpo. O corpo gritara o nome de Mike.

- Ela acordou! Ela acordou!

- Eu acho que...

Então os aparelhos começaram a apitar.

- Droga, não!

O médico apertou um botão vermelho e logo alguns médicos entraram no quarto para ajudá-la.

- O que aconteceu? – perguntou um deles.

- Ela pareceu acordar, gritou, mas algo deu errado. Estamos perdendo ela. Precisamos fazer algo! Tirem ele daqui.

Mike foi levado para fora do quarto. Claire observa a si mesma, sendo massageada, levando choques com o desfibrilador, mas nada parecia funcionar. Havia um clima de tensão, medo, mas ela se sentia calma. Já sabia o que iria acontecer. Atravessou o quarto quando o médico a anunciou, encontrou seu marido chorando do lado de fora e o abraçou demoradamente. Como se ele pudesse sentir sua presença, ficou mais calmo e sussurrou:

- Claire... Eu te amo.

- Eu também te amo – ela sorriu – E vou esperar por você e pelas meninas. Mas não se preocupem. Podem demorar bastante.

O médico então saiu do quarto. Ela foi embora. Não queria ver Mike recebendo a notícia de sua morte. Iria fazer muito mal a ela. Sabia o que precisava fazer por sua família e só havia um lugar para onde ir.


Quando voltou à Megiddo´s Hollow já era a manhã de um novo dia. A porta de sua casa estava aberta e Jamile a esperava para o chá.

- Eu já sabia que estava chegando. Sente-se.

- Por que não me contou antes que eu estava morta?

- Porque você não estava. Pelo menos ainda não. Por isso eu disse que contaria quando você viesse para ficar. Não poderia contar nossos segredos à você, havendo a possibilidade de você acordar e contá-los. As pessoas têm a péssima mania de contar suas experiências pós-coma, o que nos causa alguns problemas.

- Entendo. Mas agora eu vim para ficar.

- Isso é bom e mau. Vai ter de conviver com a saudade, como os outros.

- E como vou fazer isso? – perguntou tristemente.

- Vai se reunir para rezar por eles, orar por suas vidas... Como todos nós fazemos.

Claire a olhou, com lágrimas nos olhos.

- E quanto a Tracy?

- Estava em coma também. Acidente com rapel. Esporte perigoso, você sabe, mas acordou há algumas horas.

- Fico feliz por ela.

- Todos ficamos. Quando eles chegam ou quando voltam. Sempre são momentos felizes.

- Mas diga, Jamile, o que é exatamente essa cidade?

- Aqui? Um lar de espera. Espera para o momento do julgamento final, onde todos responderão por seus atos em vida. Atos bons ou ruins. Você subiu na caixa d`água, lembra?

- Sim.

- Deve ter visto a zona escura. Rezamos mais pela aquela gente na igreja, pois são os que mais precisam. Cometeram crimes hediondos ou então tiraram a própria vida. Somos uma boa comunidade, Claire. Todos no mundo vêm pra cá e tem seus lugares para ficar. Pensamos nos vivos, mas cuidamos de nós mesmos. Afinal, nosso crescimento espiritual é muito importante.

- Então, todos os mortos estão aqui?

- Sim – ela riu.

- Ok – Claire meio que chorou, meio que riu – então será que eu poderia ver meus pais?

Jamile se levantou, sorrindo com entusiasmo.

- Mas é claro. Sua mãe não fala de outra coisa. Eles estão loucos para rever você.

Apenas sorrindo, as duas fecharam a porta daquela casa e seguiram para uma outra na mesma Megiddo´s Hollow. A cidade dos mortos; a vizinhança daqueles que aguardam o derradeiro julgamento.

FIM

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