A MUTANTE

A MUTANTE

Autor: JURANDIR ARAGUIA



Sempre temi que Vera virasse uma samambaia. Meu receio se explica. Assim que começamos a namorar soube que não seria um relacionamento comum. A parte mais difícil foi entrar em acordo sobre nossas preferências alimentares. O normal é convidar a garota para uma pizza, um restaurante, ou um X-Tudo, conforme o porte do bolso. Ela abriu logo o jogo:


- Sou vegetariana.


Devo dizer que parecia apenas um detalhe ao qual não dei maior importância. Afinal, em outros aspectos me atraía. Era bonita, sem dúvida. Não digo que era a mais linda do mundo. Nenhuma é. Mas sua cor clara, cabelos loiros e ondulados alcançando a altura da cintura, corpo esguio, cintura fina, lábios delgados, nariz empinado e olhos castanho-claros, quase um tom verde, eram puro encanto. Um homem sabe quando está perdido. Eu me entreguei sem opor resistência.

Os dotes morais e do espírito fui descamando aos poucos e, quanto mais me aprofundava, mais interessado ficava.

Tinha lá sua mística.

Usava uns vestidos longos, túnicas indianas, trajes lembrando motivos do Tibet. Era budista e pacifista. Vários dos seus amigos eram figuras exóticas: monges, hare krishnas, seicho-no-iês e artistas plásticos.

Foi curioso o modo como nos conhecemos. Aconteceu em uma exposição de arquitetura. Eu queria uma escrivaninha moderna e ela um sofá. Um caderno espiral que eu carregava enganchou no seu vestido de rendas. Sentimos um encontrão. Sem querer, na ânsia de me soltar, enganchei meu braço em sua bolsa. O caderno acabou, na outra extremidade, fixando-se também na alça da bolsa. Ficamos embaraçados. Ela ria da situação. Qualquer outra ficaria irada. Soube, pela vibração da sua voz, que era uma mulher interessante. Soltamo-nos. Imediatamente, com a desculpa de me reparar pelo incidente, convidei-a para tomar um suco. Sorriu dizendo sim. O que me pareceu um acaso, para ela era providência do destino. O resto foi acontecendo, apesar dos universos diferentes.

Eu sou um contador, o que ninguém nasce para ser. É uma profissão que acontece quase por acidente. Meu pai também o era e, por achar sua vida um tédio, acreditei que fugiria da sua influência. No entanto, aos doze anos fui trabalhar com ele. Dois anos depois começou a sofrer do coração. Passei a dominar ofício, herdei os seus clientes e, quando percebi, era um contador formado.

Vera era o oposto. Diziam que éramos complementares. Ela me chamava de meu pequeno Ying. Creio que o que ela mais amou em mim foi a minha paciência, o caráter abnegado e a sinceridade com a qual eu a tratava.

Aprendi a freqüentar variados ambientes esotéricos. Uma de suas amigas jogava Tarô. Fui arrastado a uma sessão que, segundo ela, seria fundamental para nos conhecermos melhor. Em uma tendinha repleta de motivos estranhos: mulheres com seis braços, homens com cabeça de elefante, druidas, serpentes, almofadas por todo o lado, sentamo-nos ao chão em volta de pequena mesa circular, uma cabala sobre ela.

A mulher tirou cartas. Vera sorria excitada. Eu, com cara de “o que eu estou fazendo aqui”? A adivinha exclamava:

- Oh! Oh!

E Vera:

- Conta, conta!

Com lágrimas nos olhos a cigana (Será? Pelo menos parecia.) levantou-se e disse, antes de sair correndo e chorando:

- Ele é o homem que cuidará de você por toda a sua vida...

O resultado foi: casamento.

O evento foi engraçado. Minha família de um lado e a fauna dela do outro. Só faltaram as araras e papagaios voando. Minhas tias lançavam olhares tortos. Foi uma cerimônia ao ar livre, em chácara de amigos dela. Como a noiva mandava, dois monges budistas, um falando em japonês e outro em português, dividiram o culto com um padre. Este só realizou a cerimônia em prol dos muitos anos de catolicismo fervoroso da minha mãe. Tivemos incenso, cânticos e da outra parte o velho e bom “sim”.

Com o passar dos anos foi radicalizando, nem mesmo sorvete ou chocolate comia mais. Passou ao vegetal puro. Gradativamente evoluiu, não sei se é o termo correto, para sementes e grãos. Nossa dispensa parecia casa de passarinho. Pedia para que eu não comesse carne em sua presença. Respeitei e, como geralmente almoçava fora, limitava-me em casa, a refeições leves. (trabalhar melhor)

Vera foi mudando, de início aos poucos, quase imperceptivelmente. A pele adquiriu tonalidade esverdeada, os olhos ficaram mais claros, quase transparentes. Talvez eu não quisesse ver, cego pelo amor, mas ela enfraquecia. Outra hipótese é a rotina. Não percebemos, por exemplo, que uma árvore cresce na nossa rua. Quando notamos, ela já vai a grande altura. Chegou a desmaiar por duas vezes. Insisti para que visitasse um médico. Ela resistia. Sua pele tornou-se fria, um tanto pegajosa. O cabelo adquiriu a tonalidade do capim dourado. Meus amigos diziam:

- A continuar assim, vai morrer.

Tentei argumentar com a sua família. Todos eram estranhos, trancados em seu mundo de paz e beleza. A mãe de Vera, que só faltava voar na vassoura, chegou a dizer:

- Ela escolheu viver assim, namastê!

Certa noite, chegando mais tarde do trabalho, encontrei-a enrolada em um cobertor de folhas. Parecia uma múmia verde. Levei um susto.

- O que é isso?

Não era um cobertor, era ela se transmudando. Um velho monge, cuja presença não havia notado, ministrava incenso através de um pêndulo. Tentei argumentar, mas ele só falava tibetano ou japonês. Fiquei nervoso e pedi para que saísse. Vera, fraca como nunca, chamou-me:

- Deixe, deixe. Ele está facilitando o trânsito. Você promete que cuida de mim?

Não houve alternativa. No dia seguinte, auxiliado pelo monge, plantei-a em um vaso com motivos orientais, doação de minha sogra. Não é bem uma samambaia, está mais para um tipo de bananeira. Uma linda árvore com cachos dourados...


FIM

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