O APARTAMENTO

O APARTAMENTO

Autor: C.R. CASSANOC



O APARTAMENTO



Da narrativa a seguir, não peço crédito nem aquiescência dos leitores. Eu mesmo custo a crer em fatos tão inverossímeis, todavia, asseguro-lhes que aconteceram na exata sincronicidade com que se sucederam.

Eram quase sete da noite e Max ainda não tinha voltado para casa. Seu cachorro já estava sentindo sua falta. Dub era um bom cão. Barulhento, às vezes, mas o único companheiro de Max. No condomínio onde moravam, tinha sorte, pois os vizinhos gostavam de Dub e ninguém se importava com o alarido que fazia quando o seu dono chegava ou saia para as aulas na universidade. Maximiliano Ritter Jr. era o seu nome. Um rapaz jovem, de estatura mediana com características físicas bem definidas. Aparentava um estudante norte-americano típico, apesar de ser bem brasileiro. Louro e de olhos claros, sardas no rosto, óculos de grau com armação moderna, passava pelo olho clínico e aprovação da grande maioria das garotas que o conheciam. Alugara o apartamento havia três meses para estudar na capital. Na verdade seu pai, um pequeno empresário do ramo dos calçados do interior do estado, foi quem ajeitou as coisas para Max, que sempre foi muito introspectivo. Por sua excessiva timidez, nunca tivera namorada, apesar de ser apaixonado por uma menina de sua cidade, que nunca soube do amor que ele sentia. Sua vida era pateticamente banal em sua cidadezinha. E aqui, não era diferente. Era somente estudar, assistir ao noticiário na televisão e dormir. Buscava um estágio num conceituado escritório de contabilidade, mas queria conquistar a vaga sem a influência do pai. Às vezes, locava alguns filmes nos finais de semana, mas, invariavelmente, dormia bem antes dos bandidos serem presos ou mortos ou do casal de protagonistas viverem felizes para sempre. Também, eventualmente, passeava com Dub no parque central, bem próximo ao pequeno prédio onde moravam. A vida de Max se resumia em seis letras: ROTINA.

O apartamento era bem simples: Um quarto bem arejado e com cheiro de móveis novos, uma cozinha que mal cabia o fogão e a geladeira. Na sala, um sofá bordô em couro, estilo clássico, duas samambaias: uma próxima à janela e a outra na parede oposta; um quadro belíssimo que sua mãe o presenteara quando da última visita: uma paisagem japonesa expondo uma gueixa sorridente muito bem caracterizada, e com o monte Fuji ao fundo. Estes itens mais a TV e o DVD player no quarto davam a cara de lar ao pequeno imóvel. Dub dormia na minúscula área de serviço, o que para um cocker spanish não era lá grande coisa.

Naquela noite, Max chegou mais tarde. Foi convidado por um colega para juntos irem até sua casa. Léo, o tal colega morava com a mãe e era, de fato, a única pessoa que Max se relacionava. Seu temperamento era o oposto de Max, fazia amizades fáceis, era bem popular, andava com muita gente e tinha muitos amigos. Max relutava sempre em sair do seu mundinho, contudo, naquela sexta-feira decidiu-se por fugir um pouco das suas convicções e experimentar algo além daquela tediosa rotina. Na casa de Léo, ouviram música, trocaram idéias sobre o próximo trabalho de filosofia e enquanto aguardavam o jantar, Max descobriu entre as coisas de Léo, um álbum com selos do mundo inteiro. Manuseou, sentiu a textura dos mais raros e interessantes. Ficou fascinado, pois, adorava o assunto. Ele mesmo, quando moleque, colecionava selos e moedas antigas que acabaram no seu baú escondido no quarto na casa dos pais. O colega de turma de Max recebia os selos pelo correio numa espécie de clube de troca, com membros de todo o mundo. Mais tarde acessaram a internet para saber de um objeto de pesquisa para o trabalho de metodologia a ser entregue na próxima semana. Quando finalmente foram chamados por dona Laura para a refeição, já passava das nove. Na janta, nada de especial: fritas, arroz, bife de frango e salada verde. Ao redor da mesa, a mãe de Léo questionou Max sobre a vida no interior e demonstrou uma certa nostalgia, falando da época em que também morava num pequeno povoado do oeste do estado. A conversa, por fim, acaba quando dona Laura lamenta a violência nas grandes cidades, com a concordância do filho que já havia sofrido dois assaltos, felizmente sem graves consequências. Ainda falaram de amenidades e sobre peculiaridades do meio universitário. Léo ainda convidou Max para uma festa no campus. Era do curso de psicologia e haveria muitas meninas. Max recusou timidamente agradecendo o convite, apesar da insistência de Léo. Achava, intimamente, que já tinha feito muito por uma noite. Disse que precisava terminar um trabalho, despediu-se em seguida partiu. A noite estava bem agradável e resolveu ir caminhando até em casa, passou por bares lotados, pessoas de todos os tipos, gente bêbada e drogada, prostitutas nas esquinas, casais de namorados entrando e saindo de pizzarias, som de sirenes diversas. A metrópole mostrava a sua cara naquela sexta-feira.

Vinte e três e trinta foi o horário que ele pisou no hall de entrada de seu prédio. Dub, como de costume, foi dar as boas vindas barulhentas a Max, logo que ouviu o tilintar peculiar das chaves no corredor escuro do condomínio. Como sempre Max afagava e cumprimentava seu companheiro peludo como se fosse gente. Ao entrar sentiu uma estranha sensação. Parecia que tudo estava mudado. Sentia como se nunca estivera ali antes. Os tons de cores dos móveis da sala, as sombras das samambaias na parede bege e até os cheiros peculiares da casa soavam diferentes, no entanto, nada tinha mudado. Era realmente muito estranho e, um estranho era como se sentia sentado em seu próprio sofá. Sentia um medo sem sentido, sem razão de ser. Flashes de memória o levaram de volta a primeira infância quando sua mãe o obrigou a dormir pela primeira vez num quarto só seu. Sempre dormira com os pais, mas um menino de dois anos já deveria dormir sozinho. E, mesmo com a luminária de cabeceira acesa sentiu terror e pânico aquela noite. Ouvia os gemidos e gritos de sua tia que sofria de câncer terminal, no quarto ao lado. Quando finalmente o sono o dominava, era despertado por risadas estéricas da tia moribunda que já não tinha domínio de suas faculdades mentais. Os médicos já não davam esperanças à família. Não havia nada que pudessem fazer e depois de sete meses no leito de hospital, acharam por bem mandá-la para casa. Só tinha mais duas semanas de vida e sua morte foi um alívio para toda a família, principalmente, para o pequeno. Até os dez anos tinha pesadelos freqüentes e, que aos poucos foram desaparecendo. Muito provavelmente este trauma, aliado a incompreensão dos pais tenha influído na personalidade tímida e anti-social de Max. Os pais procuraram a ajuda especializada de um psicólogo. Dr. Muller era filho de um velho conhecido da família e não poupou esforços nem tempo para a recuperação do menino. Viajavam ele e sua mãe, cento e vinte quilômetros toda a semana até a capital para as consultas. Aos poucos Max foi exorcizando seus monstros interiores e a vida seguiu seu curso normal.

Agora todo o passado parecia voltar mais denso e ameaçador do que antes. Parecia um medo concreto, palpável. Ele então sente o peso da solidão. Pela primeira vez Max se dá conta da sua condição. Pensa em retornar à casa de seu colega, mas lembra que ele, a estas horas já deveria estar rodeado de garotas na tal festa no campus. Liga para a mãe tentando afastar aquele sentimento bastante insólito e respirar um pouco de realidade. O telefone chama uma...duas...três vezes e ele desiste. Quem sabe ela e seu pai já estivessem na intimidade do quarto ou ainda, talvez neste exato momento, apostando no bingo da sexta no clube comercial. O fato é que aquela impressão não findava. Olha novamente para os objetos a sua volta e a sensação não passa. Faz uma imagem mental e dá uma ordem para si mesmo: ”Você esta na sua casa. Aqui é o lugar mais seguro desta cidade”. Olhando agora de soslaio para o quadro na parede ao lado tem a nítida impressão que o rosto da mulher no quadro é bastante familiar. É o rosto de sua tia morta. De repente Max escuta sons que não vem de fora. A coisa acontecia dentro de casa. Era como um sussurro imitando vozes. Distinguia um diálogo inaudível entre as mesmas. Sentiu um arrepio subindo dos tornozelos passando pelas pernas e coluna até a base da nuca. O tal murmúrio procedia da cozinha e ele pressentia que não se tratava de algum arrombador ou mesmo de algum parente querendo fazer alguma surpresa. O som parecia não ser humano. Sua respiração acelerou até ele estar quase arfando. Ao mesmo tempo sentiu um cheiro de podridão, de carne exposta a temperatura ambiente a dias. Um cheiro asfixiante e pegajoso como se estivesse diante de um sepulcro aberto. Lentamente, ergueu o corpo trêmulo do sofá e se dirigiu à fonte daqueles ruídos. Deslizava trôpego sobre a forração macia do corredor e já avistava o piso xadrez da cozinha, quando, inerte, se deteve na porta. Seu sangue gelou nas veias, teve náuseas e mergulhou num mar de insanidade e terror. Diante de seus olhos, duas criaturas do tamanho de ratos pendiam da luminária por cordas (ou seriam teias), tinham o corpo disforme e cinzento, garras afiadas, olhos vermelhos como sangue fresco e a expressão debochada, própria de todos os demônios.

- Este deve ser o humano que viemos buscar! – aponta cinicamente, a criatura de aspecto mais medonho.

- Não percamos mais tempo vamos terminar o que viemos fazer. – incita a outra, com a voz lembrando alguém se afogando na lama.

Neste exato instante Max sente que vai desfalecer. O medo o paralisa e a realidade parece não ter mais sentido nenhum. Os dois seres, a feição de aranhas, balançam nos fios por eles produzidos e arremetem na direção do garoto em estado de choque. Com toda loucura e horror da situação, Max sai do estado letárgico foge em desabalada carreira pelo corredor, tropeça na mesinha de centro da sala e cai. Olha por um segundo na direção da cozinha e por este instante imagina ter sido um terrível pesadelo. Ouve um ganido agudo e familiar. Lembra que Dub deveria estar na área de serviço. Visualiza o corredor e assiste uma cena digna dos piores filmes de terror que já assistira: Os seres apanham o cão e o imobilizam rapidamente tecendo um emaranhado de fios brancos em volta do seu pequeno corpo. Os latidos ecoam muito alto no condomínio inteiro, mas cessam meio minuto depois. No chão do corredor do apartamento 302 locado por Maximiliano Ritter, jazia um corpo inerte, já sem vida mumificado em um casulo fétido. Era do melhor amigo de Max. O garoto assustado, e já quase sem forças, começa a gritar em desespero, quando uma das criaturas se dirige a porta de saída, nitidamente com o propósito de bloquear a possível fuga de Max. A outra se dirige sorrateira na direção dele que sobe no sofá. Aumentam os gritos e alguns vizinhos escutam. O avanço rápido dos seres, encurrala Max contra a janela da sala. Neste momento os vizinhos do mesmo andar, alarmados pela algazarra, já se dirigem a entrada do apartamento. A velha senhora do 304 liga para a polícia. Max sobe no parapeito da janela e começa a pedir ajuda chamando a atenção de transeuntes que passam. Os pequenos demônios elevam-se no ar com asas negras como morcegos e avançam na direção da janela onde, Max pende quase sem forças.

- Iremos te arrastar agora para a terra das sombras de onde nunca deveria ter saído Max!!! – vocifera o mais sinistro.- Sua tia querida te espera ansiosa!!

Neste instante, cada um dos visitantes vomita uma espécie de gosma branca por sobre o corpo de Max que perde o equilíbrio e mergulha no vazio. Um urro lancinante se propaga pelo bairro inteiro.

Meia-noite e dez minutos o corpo de Max se estatela na calçada, rachando o crânio em duas partes. Pessoas que acompanham o episódio choram alarmadas e não entendem. Cria-se uma tremenda confusão quando a policia chega e sobe imediatamente à casa de Max. Dois inspetores: um calvo e alto com um bigodinho bem peculiar e o outro mais jovem com aparência nitidamente assustada sobem rapidamente, saltando de dois em dois degraus no prédio sem elevadores. Arrombam a porta e adentram no apartamento. Começam a procurar algum indicio do que, de fato, poderia ter acontecido. Aparentemente tudo está em ordem. Vasculham o quarto, a cozinha e nada de pistas. Atrás do sofá, na sala, encontram Dub muito assustado e ninguém mais. Agora procuram ouvir o testemunho dos vizinhos. Interrogam quatro testemunhas que não esclarecem os fatos. Tudo leva para a hipótese de suicídio. Na calçada o corpo de Max estirado é observado agora por dezenas de curiosos enquanto não chega o carro da perícia. O trânsito no local, apesar do horário, fica caótico já que o acidente acontece bem próximo a uma grande avenida. Uma vizinha, solteirona, que simpatizava com o garoto se oferece para cuidar do cão.

Uma e quinze da madrugada de sábado: chega finalmente o carro do departamento médico legal. No pequeno prédio de três andares a comoção é geral. Funcionários e paramédicos juntam um corpo esfacelado na calçada sob os olhares alarmados de casais, jovens, punks e outras tribos noturnas que saíram de casa naquela sexta para se divertir.

Cinco e meia da manhã. Um mendigo passa catando coisas, de preferência, comestíveis nas cestas de lixo da rua. Nenhum vestígio do acidente. Ele passa desapercebido em frente ao prédio de Max. Em uma das mãos uma garrafa de aguardente quase vazia e na outra um punhado de jornais velhos. Dirige-se ao parque central com passos cambaleantes. Atravessa a avenida e já avista o seu banco de praça favorito. Dobra os jornais e faz deles um improvisado travesseiro. Deita-se impávido na sua alcova ao ar livre. Uma das páginas cai ao relento. Justamente a primeira página do jornal mais importante da cidade. No rodapé, junto às noticias de esporte, uma pequena manchete se salienta já com a aurora de um novo dia:


NOVA MODALIDADE DE TRÁFICO.

Desbaratada uma quadrilha holandesa de traficantes de drogas. Ela passava o LSD (acido lisérgico) através de selos postais. A droga liquida era gotejada nos selos não perdendo as propriedades quando em contato com o ar. Veja mais detalhes na pág. 28.



FIM

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