A 'EXCEPTIO NON ADIMPLETI CONTRACTUS'

A 'EXCEPTIO NON ADIMPLETI CONTRACTUS'

Autora: Mauren Guedes Müller

224"

As primeiras gotas de chuva começaram a cair. O vento gélido as fazia açoitar o corpo de César, que encolheu-se dentro do casaco e olhou em volta, procurando um abrigo. Havia um bar aberto a alguns metros de onde ele estava, na mesma calçada. Apressou o passo e entrou no lugar. Sentou-se diante de uma mesa, amaldiçoando mentalmente o tempo, o inverno e a falta de dinheiro que não lhe permitia tomar um táxi. Uma garçonete jovem e feia veio atendê-lo, visivelmente de má vontade. César pediu uma garrafa de vinho tinto seco e, enquanto a moça foi buscá-lo, pensou se teria dinheiro suficiente na carteira para pagar a bebida e, depois, o ônibus que o levaria para o subúrbio onde morava.

Enquanto bebericava o vinho, o jovem pensava em sua vida. César era advogado. Tinha trinta e dois anos. Interrompera os estudos durante muito tempo, mas, finalmente, conseguira se formar, e passara no teste da OAB. Porém, trabalhava num escritório de advocacia onde o tratavam praticamente como um office boy – pagavam-lhe um salário mínimo e o mandavam levar petições ao Fórum, carregar processos, comprar material de escritório, fazer cobranças dos clientes, atender o telefone. E sabia que só conseguira aquele emprego porque sua mãe era prima da esposa do chefe – o que não lhe garantiria a vaga por muito tempo, mas, pelo menos, ajudava-o a manter-se em Porto Alegre, embora fosse só pelo fato de que sua jovem esposa também trabalhava que ele pudesse sonhar com alguma coisa melhor, alguma especialização, algum curso que lhe permitisse se arriscar a pegar alguns casos, ficar conhecido, advogar de verdade.

Mas o tempo passara. O verão se fora. O outono correra como um corisco, e agora o frio do inverno fazia com que até seus ossos congelassem, quando se abrigava no quartinho frio e úmido que alugava, deitava-se na cama de solteiro que tinha de dividir com a esposa, porque não cabia uma cama de casal naquela pecinha, e esperava que as ilusões do sono lhe devolvessem alguma fé num futuro de sucesso que lhe parecia cada vez mais improvável...

De repente, César percebeu que um vulto parara à sua frente. Levantou os olhos e assustou-se com o homem que viu. Embora a luz do bar realmente não fosse boa, pôde perceber que o sujeito à sua frente era extremamente pálido – parecia que não corria sangue naquelas veias azuladas que podia enxergar através da pele pardacenta do desconhecido. Tinha um nariz adunco e olhos penetrantes, que lhe pareceu que brilhavam como os de um gato no escuro. Estava ensaiando um sorriso, e César pode divisar-lhe os dentes amarelados, os incisivos tortos para dentro, os caninos assustadoramente pontiagudos. O homem vestia um sobretudo negro, com a gola levantada. Era alto e magro, e havia rugas profundas em torno de seus olhos e de sua boca.

– Com licença – disse o estranho. – Posso me sentar com o senhor?

César sentiu-se desconfortável com aquela presença, mas não quis ser indelicado.

– Claro – disse. – Fique à vontade.

O homem puxou uma cadeira e sentou-se à mesa, diante dele.

– Eu reparei que o senhor estava bebendo sozinho – disse o desconhecido. – Dizem que “não presta” beber sozinho.

César riu.

– É verdade, dizem. Minha avó, que Deus a tenha, sempre me dizia que, quem bebe sozinho, bebe com o diabo.

O estranho deu uma risadinha.

– Sua avó devia ser mesmo uma mulher muito sábia – comentou.

César sentiu um arrepio percorrer-lhe a espinha.

– Mas conte-me – disse o jovem, franzindo a testa –, e o senhor, o que faz na rua numa noite horrorosa como esta?

– Eu sou negociante – respondeu o homem. – Na minha atividade, não se pode deixar de trabalhar debaixo de mau tempo. Posso perder um negócio valioso se deixar que a chuva ou o frio me impeçam de sair. Já quanto ao senhor, como é assalariado, não tem escolha, mesmo, não é?

– Pois é. – César tomou um gole de vinho. – Mas eu já ia pegar o ônibus para ir para casa, quando começou a chover e resolvi entrar aqui para ver se estiava um pouco...

O estranho cravou os olhos nos do jovem, de uma maneira que lhe pareceu que penetrava em sua alma.

– O senhor teria pegado o ônibus anterior, se o advogado para quem trabalha não lhe houvesse mandado digitar mais uma petição e o senhor tivesse saído do escritório na hora certa.

César estremeceu.

– Como o senhor sabe disso?

– Ah, eu o venho observando há bastante tempo, Sr. César. Tenho visto o quanto se esforçou para se tornar bacharel em Direito. Sei que o senhor tem bastante potencial. Suas notas foram ótimas na faculdade, apesar de todo o tempo que ficou sem estudar por causa das dificuldades econômicas de sua família. Sei que o senhor tem habilidade com as palavras, tem bom conhecimento das leis, sabe argumentar, enfim, sei que o senhor tem tudo para ser um ótimo advogado, rico e bem sucedido. Mas seu chefe não lhe dá uma oportunidade de mostrar o seu talento. Ele prefere explorá-lo, não é mesmo, Sr. César?

Àquela altura, César sentia o coração aos pulos e parecia que o ar lhe faltava.

– Como sabe meu nome? perguntou, num fio de voz.

O estranho olhou em volta. A garçonete estava distraída assistindo a novela das sete numa pequena televisão, e não havia nenhuma outra pessoa no lugar.

– Sr. César, eu vim lhe propor um negócio – disse.

César engoliu em seco.

– Que espécie de negócio?

– Ora, vamos, Sr. César. O senhor é um homem inteligente. Já sabe quem eu sou, e já sabe o que quero lhe oferecer.

– E também já sei em troca de quê – respondeu o jovem, sentindo-se gelar de medo.

O outro riu.

– Sr. César, há poucos minutos o senhor nem acreditava em mim. Muito menos no inferno. Nunca teve medo disso. Sempre achou que a morte fosse o fim de tudo. Se eu desaparecer, o senhor sabe que não vai correndo para uma igreja rezar um “Credo”. Não me diga que, justamente agora, agora quando surgiu a oportunidade de sua vida, vai se tornar religioso e passar a se preocupar com coisas que nunca acreditou que existissem.

O jovem encolheu-se um pouco e encarou o estranho:

– Ah, mas acontece que eu sei de muita gente que fez um pacto com o... Bem, que fez um pacto, e pagou tudo o que devia nesta vida aqui, mesmo. Ou então pagou com a própria vida. Por exemplo, sei de uma pessoa que até ficou rica, mas morreu de câncer três meses depois do acordo. Sei de uma mulher que conquistou o homem que amava há anos, mas daí a uma semana ele morreu, vítima de uma bala perdida. E sei de um cantor famoso que ficou paraplégico num acidente de carro que...

– Sr. César – interrompeu a figura sinistra –, o senhor é advogado. O senhor sabe quais são as conseqüências de um contrato mal feito. – Inclinou-se na direção do jovem e disse, baixinho: – Todas essas pessoas fizeram um contrato muito mal elaborado, Sr. César. Nenhuma delas incluiu qualquer cláusula que as protegesse. Além do mais, o Direito Civil brasileiro não incide naturalmente sobre esse tipo de contrato metafísico. Isso tem de ser estipulado pelas partes contratantes. Mas o senhor é advogado, Sr. César, e dos bons. Tenho certeza de que será capaz de pensar num contrato tão bem feito que é até mesmo possível que o senhor consiga me passar para trás.

César franziu a testa e ensaiou um sorriso. De repente, sentia uma certa auto-confiança crescer dentro de si.

– Bem – disse –, supondo que eu aceitasse a sua oferta, com certeza eu exigiria no mínimo mais uns cinqüenta anos de vida próspera, saudável e feliz.

O outro afastou o corpo do de seu interlocutor e o olhou de uma forma que denotava alguma espécie de contrariedade.

– Acontece que eu não posso prometer vida – disse. – Vida é algo que Ele dá, e Ele sempre poderá tirar na hora em que quiser.

– Então, nesse caso, não tem acordo comigo – respondeu César, decidido, já fazendo menção de levantar-se.

– Calma – interveio o outro. – Não posso prometer vida. Mas posso prometer proteção contra todas as formas de morte que o senhor conseguir imaginar.

– Como assim? perguntou César, sentindo-se vagamente interessado.

– Posso lhe prometer, por exemplo, que o senhor não será acometido por qualquer espécie de doença, seja causada por agentes internos ou externos. Posso lhe prometer que nenhum golpe ou artimanha de qualquer inimigo irá atingi-lo, seja usando revólver, arma branca, veneno, explosivo ou o que for. Também posso protegê-lo de ataques de animais. Posso protegê-lo do fogo, da água, das pedras, dos desabamentos, dos esmagamentos, em suma, posso cobri-lo de tantas garantias que com certeza o senhor vai viver, próspero, saudável e feliz, muito mais do que os cinqüenta anos que me pediu.

– Sei – disse César. – E qual é o truque?

– Não há truque – respondeu o sujeito. – Gosto de lidar com gente inteligente, gente que confia em sua própria capacidade. – Olhou-o em tom de desafio. – Vamos, melhore a minha proposta, Sr. César. Sei que é capaz de criar um acordo que lhe seja plenamente favorável em todos os sentidos.

– Então, quero que incidam as normas gerais das obrigações do Direito Civil Brasileiro, na forma em que eu as conheço – disse César, em tom irônico. – Especialmente a cláusula da exceptio non adimpleti contractus. A exceção de contrato não cumprido. Ou seja, se o senhor não cumprir com qualquer item do acordo, eu posso alegar isso em meu favor, e resguardo a minha alma.

– A exceptio non adimpleti contractus está expressamente admitida, Sr. César.

– Bem, além de todos os itens que o senhor já mencionou, acrescente proteção contra acidentes de carro, de barco e de avião.

– Bem lembrado, Sr. César.

– E estenda todos esses itens a todas as pessoas da minha família.

O outro fez uma careta.

Todas as pessoas da sua família? O senhor está tentando vender a sua alma bem caro, Sr. César. Acha que ela vale tanto assim?

– Sem isso, não há acordo.

– Bem, vamos negociar. Seu pai já é falecido, e posso lhe garantir que não tenho a intenção de me meter com sua esposa, até porque sei que o senhor não a ama tanto assim. – Fez uma pausa. – Portanto, se eu estender minha proteção à sua mãe e aos filhos que o senhor vier a ter, está bom, não está?

– É, está razoável.

– Certo. Que mais?

– Um amplo apartamento de cobertura no bairro Bela Vista.

O camarada sorriu.

– Isso é fácil, Sr. César.

– Um BMW importado. Uma conta bancária bem gorda.

– O senhor está pedindo muito pouco.

– Em um mês.

O outro franziu a testa.

– Em um mês? Tudo isso? Bem, acho que dá.

– E quero que minha fortuna só aumente. Não quero que se passe um dia sequer em que eu tenha menos dinheiro do que na véspera.

– Serve mais patrimônio do que na véspera, Sr. César?

César sorriu. Estava gostando da conversa, especialmente quando o homem usava termos jurídicos. Sentia a confiança crescer dentro de si. A cada momento que passava, parecia-lhe que se convencia mais de sua inteligência, de sua capacidade, de sua habilidade em forjar um pacto no qual o próprio demônio fosse prejudicado.

– Serve – respondeu.

– Então, temos um acordo, Sr. César. Pacta sunt servanda.

– Os contratos têm de ser cumpridos – concordou o jovem.

O homem levantou-se e estendeu-lhe a mão. César também se levantou e apertou a mão magra, ossuda e acinzentada. Quando o cumprimentou, uma estranha sensação percorreu seu corpo, algo que ao mesmo tempo parecia congelá-lo e lhe produzir um choque elétrico, como se fosse uma anti-energia, como se o próprio frio da morte o estivesse atravessando naquele instante.

No dia seguinte, César nem se lembrava mais do encontro da véspera com o sujeito quando chegou no escritório. Assim que chegou, o chefe mandou chamá-lo à sua sala. César entrou, sentindo-se vagamente inquieto. O chefe estava com uma expressão estranha, parecia assustado com alguma coisa.

– César – disse ele –, preciso que tires fotocópias de todo esse processo – entregou-lhe os autos de um inventário em cinco volumes. – Agora mesmo.

– Sim, senhor.

– É muito importante. Vou ter de levar para casa. Sabes o Marco Aurélio?

– O Dr. Marco Aurélio, seu sócio?

– Sim. – O chefe o encarou, pálido. – Era o Marco Aurélio que estava tentando destrinchar esse inventário. Só que o Marco Aurélio faleceu ontem à noite, e agora eu não sei como vou desenrolar esse negócio.

César arregalou os olhos.

– O Dr. Marco Aurélio faleceu? Como?

– Teve um enfarte.

César estremeceu.

– A que horas foi isso? perguntou.

– Bem, a mulher dele disse que estava assistindo a novela das sete quando o ouviu gemer. Ela chamou a ambulância, mas, quando chegou no hospital, parece que ele já estava morto.

– Na hora da novela das sete... – murmurou César, sentindo-se arrepiar.

– Mas não percas tempo, César. Vai lá tirar o xerox agora mesmo, que eu tenho que devolver os autos ao Fórum e analisar esse raio desse inventário!

César obedeceu. Porém, enquanto o atendente da papelaria próxima ao escritório tirava as fotocópias, o jovem ia examinando as peças do processo. Realmente, era um inventário bastante complicado.

Mas, de repente, toda a solução dos entraves do processo, desde a partilha até o pagamento dos impostos, parecia surgir diante de seus olhos, como num passe de mágica...

César terminou de extrair as fotocópias, voltou ao escritório e sentou-se diante de um computador. Em minutos, elaborou uma petição em que resolvia todo aquele imbróglio, e apresentou-a ao chefe. O velho advogado leu o papel e olhou para o jovem, espantado.

– Como raios o Marco Aurélio não pensou nisso?... murmurou, enquanto assinava. – Bem, rapaz, não sei se vai dar certo, mas pelo menos o juiz vai ficar impressionado conosco!...

Nos dias que se sucederam, César percebeu que tudo parecia conspirar a seu favor. Não só aquele inventário foi solucionado como outros apareceram. O chefe não demorou a reconhecer-lhe a habilidade e a torná-lo seu sócio. Em poucos dias, foi preso um famoso traficante, em flagrante delito de homicídio, e chegou-lhe às mãos a oportunidade de impetrar o habeas corpus. César livrou o sujeito da cadeia e ele foi bastante generoso em recompensá-lo. Mas já se haviam passado vinte e sete dias, e ele ainda não tinha todo o dinheiro que pedira ao desconhecido.

Naquela noite, quando voltava para casa, resolveu comer um cachorro-quente e, quando ia jogar a embalagem numa lata de lixo, qual não foi a sua surpresa quando encontrou dentro dela uma maleta aparentemente nova. Pegou-a, levou-a para casa e a abriu. Estava cheia de dinheiro.

Estremeceu. Deu-se conta de que, provavelmente, tratava-se do preço de um resgate. Com certeza, alguém havia sido seqüestrado, encontrava-se em poder de criminosos, e a família fora orientada a deixar o dinheiro naquela maleta, naquela lata de lixo. Se não a devolvesse àquele lugar, ou se não procurasse a polícia para que armasse uma emboscada para os bandidos, a pessoa seqüestrada poderia ser morta... Mas contou o dinheiro e se surpreendeu. Com o que havia ganho nos inventários, com a recompensa do traficante e com o conteúdo daquela maleta, dava para comprar um apartamento de cobertura na Bela Vista, um BMW importado, e ainda sobraria aproximadamente duzentos mil de reais...

Quem censurava César a todo instante era sua esposa Alice. Era uma jovem bastante religiosa, e incomodava-a o fato de que boa parte da fortuna que o marido amealhara em tão pouco tempo tinha alguma coisa a ver com morte – a morte do advogado que houvera trabalhado no inventário, as mortes dos próprios inventariados, a morte que o traficante causara. E isso que ela não sabia nada sobre a maleta. César lhe mentira que havia ganho o dinheiro na loteria. Mas, três dias depois do achado, o jovem lera nos jornais uma notícia de um empresário que fora encontrado morto, com um tiro na cabeça, boiando no Guaíba, após ter permanecido vários dias em poder de seqüestradores, sendo que a família desesperada jurava que pagara o resgate, embora depois os bandidos houvessem feito contato e afirmado o contrário...

Ao mesmo tempo em que enriquecia, César tornava-se cada vez mais frio, com os empregados, com os servidores de cargos menos elevados do Fórum, com as pessoas pobres com que cruzava na rua, e inclusive com Alice. Esta, por sua vez, apegava-se cada vez mais à sua fé. César irritava-se em vê-la cada vez mais religiosa, cada vez mais cristã, cada vez mais próxima de Deus. Ela o convidava para orarem juntos. Ele recusava, mas sabia que a esposa o incluía em suas súplicas. Todos os dias, pela manhã, Alice se levantava, punha-se de joelhos ao lado da cama e dizia:

– Que o Sangue de Cristo nos cubra com seu poder e nos defenda de todo mal.

Aquela menção ao Sangue de Cristo parecia fazer com que seu próprio sangue fervesse em suas veias. Sua raiva se incendiava cada vez que ela dizia aquilo. Aos poucos, Alice foi-lhe parecendo cada vez mais feia, cada vez mais burra, cada vez menos adequada para ser a esposa do advogado de renome em que ele estava se tornando. Tinha vergonha de quando saía com ela e ela começava a falar em Jesus Cristo. Chegava a dizer-lhe que tinha ciúmes desse Deus que parecia ocupar a mente dela mais do que o próprio marido. Mas Alice tudo suportava com paciência, e isso o incomodava ainda mais.

Certa manhã, quando ela fez sua oração costumeira, César exclamou:

– Chega, mulher! Eu não quero saber de sangue nenhum em cima de mim!...

Alice o olhou, surpresa e indignada.

– Pois não parece – respondeu ela.

César levantou-se e a encarou.

– Como?

Alice baixou os olhos.

– César – disse, baixinho –, quanto sangue teve de ser derramado para que pudesses fazer fortuna?...

César chegou a levantar a mão para esbofeteá-la. Alice se encolheu. Então, César se lembrou que a lei estava mais severa para com maridos que batem nas esposas. Fez um gesto de impaciência.

– Vai fazer o meu café – disse. – E vê se pára de me incluir nessas tuas rezas! Eu não quero e não preciso desse tipo de proteção!...

A esposa vestiu um robe e foi até a cozinha. César ligou o chuveiro. Sentia-se exausto, já àquela hora da manhã. Impressionante como a simples menção ao nome de Cristo era capaz de irritá-lo, e como essa irritação era capaz de roubar-lhe as forças daquela maneira. Enquanto a água quente corria por seu corpo, pensou: “Eu tinha que ter me lembrado de acrescentar ao contrato um jeito de me livrar dessa infeliz.”

Mas nada o impedia de livrar-se ele mesmo do incômodo que sua mulher representava.

Passou o dia inteiro maquinando um plano. Sua esposa era uma mulher franzina, sempre fora meio adoentada. Não seria difícil de acreditarem que sofria do coração. Bastava que desse um jeito de matá-la sem levantar suspeitas e subornasse um médico que atestasse que a causa mortis fora enfarte. Alice não tinha pais vivos e seu único irmão estava morando há muitos anos em São Paulo. Ninguém iria desconfiar.

Um cliente seu, astuto criminoso, forneceu-lhe discretamente o veneno. César chegou em casa mais cedo. Como imaginava, Alice não estava em casa àquela hora. Provavelmente, tinha ido à Igreja. César foi até a geladeira. Havia uma jarra com um restinho de suco de limão. Sabia o quanto Alice gostava daquela bebida. Despejou na jarra todo o conteúdo do vidrinho que o bandido lhe fornecera. O sabor ácido da fruta disfarçaria o do veneno.

Foi para a sala que utilizava como seu escritório, deixou a porta aberta e ficou examinando alguns processos. Daí a pouco, ouviu Alice chegar. As horas foram-se passando, até que, finalmente, a esposa veio avisá-lo de que o jantar estava à mesa.

César sentou-se e começou a comer. Andava enjoado da comida que Alice fazia. Queria comer pratos finos, elaborados. Mas sua esposa ainda não aprendera a cozinhá-los. Estava fazendo um curso de culinária, e teve de admitir que a torta que ela serviu por último estava deliciosa, tanto que repetiu. Mas Alice não comeu quase nada e nem tocou na sobremesa.

– O que foi? perguntou. – Não estás com fome?

– Não sei – respondeu ela, olhando com certa repulsa para a mesa farta. – Parece que alguma coisa no almoço não me caiu bem...

“Provavelmente, ela já tomou o suco, e o veneno já está começando a fazer efeito”, pensou ele.

– Desde que horas que estás te sentindo mal?

– Não sei... Mas acho que desde que eu voltei da Igreja...

– Vai ver que foi o Sangue de Cristo que não te sentou – provocou ele.

– Que horror, César! Não digas uma blasfêmia dessas.

Levantou-se, devagar.

– Aonde vais? perguntou ele.

– Vou me deitar um pouco. Pode ser que passe.

Alice caminhou lentamente para o quarto. César viu quando ela entrou e fechou a porta. Dirigiu-se para seu escritório, que ficava no outro extremo do espaçoso apartamento. Entrou e trancou-se, satisfeito por haver mandado isolar acusticamente a peça e instalar uma porta a prova de som. Não queria ser incomodado pelos eventuais gemidos de sua esposa agonizante.

Olhou com displicência para os processos sobre a escrivaninha. Aproximou-se do aparador e serviu-se de um copo de uísque. Sentou-se no confortável sofá de veludo e começou a beber.

De repente, ouviu uma voz dizer atrás de si:

– Dizem que, quem bebe sozinho, bebe com o diabo.

Levantou-se, sobressaltado, e voltou-se na direção da voz. O estranho com quem se havia encontrado no bar, há mais ou menos dois meses, o encarava com um ar cínico.

– O senhor? murmurou, trêmulo. – O que está fazendo aqui?

O homem fez a volta no sofá e sentou-se, cruzando as pernas.

– Vim visitá-lo, Sr. César. Aliás, acho que agora devo dizer Doutor César.

– Com certeza – respondeu o jovem, arrogante. – Mas quem lhe deu permissão para entrar aqui, e como conseguiu?

O sujeito deu uma risada.

– Parece que sua velha avó estava certa, Dr. César. A chave que me abriu as portas de seu apartamento é essa que o senhor tem nas suas mãos.

César olhou com certa repulsa para o copo de uísque e largou-o rapidamente sobre a escrivaninha.

– Bem, se o senhor veio me ver, já me viu. Agora, peço que me dê licença...

– Calma, Dr. César. Eu acabei de chegar. O senhor nem me deu tempo de perguntar-lhe como se sente.

César ia responder que estava bem, mas, subitamente, sentiu uma tontura.

– Não precisa falar, Dr. César. Eu sei como o senhor se sente. Sei que está sentindo um mal-estar, uma náusea, uma vertigem, uma falta de ar. Acho melhor que o senhor se sente, Dr. César.

César obedeceu, cada vez mais pálido.

– O que está acontecendo? perguntou, num fio de voz. – O senhor me prometeu que eu nunca ficaria doente.

– O que o senhor está sentindo não se deve a qualquer espécie de doença, Dr. César.

– Então...?

O homem levantou-se e aproximou-se do jovem. César encolheu-se, ao mesmo tempo em que o outro parecia crescer por cima dele.

– O senhor foi envenenado, Dr. César.

César arregalou os olhos e estremeceu.

– Mas... Como...? Quem...?

– Estava deliciosa aquela torta que o senhor comeu na sobremesa do jantar, não estava, Dr. César? perguntou o sujeito, com malícia. – Não sentiu um ligeiro gostinho ácido, provavelmente de limão?...

César levantou-se, aterrorizado, e imediatamente sentiu um aperto no peito. Caiu de joelhos e escorregou para o chão, sentindo-se cada vez mais sufocado.

– Sua esposa usou o suco de limão que o senhor envenenou para fazer a torta, Dr. César. Ela não comeu nem um pedaço. Mas o senhor comeu bastante. Devo dizer que cometeu o pecado da gula, Dr. César. Se não tivesse repetido a sobremesa, a dose que o senhor ingeriu não teria sido letal. Mas...

– Socorro! gritou César.

Mas o escritório era a prova de som...

– Eu... Eu invoco... a exceptio... non adimpleti... contractus – disse César, ofegante, sentindo o ar fugir de seus pulmões, como que para não voltar, a cada palavra que dizia.

– Lamento muito, Dr. César. Mas eu cumpri integralmente a minha parte no contrato.

– Como... se eu estou... envenenado...?

– Ora, Dr. César, eu havia prometido protegê-lo de qualquer ataque que viesse de seus inimigos. Mas não havia prometido protegê-lo do senhor mesmo, Dr. César. Foi o senhor mesmo quem colocou veneno no suco de limão. E foi o senhor mesmo quem comeu dois pedaços da torta, Dr. César...

César ainda o olhou, com terror, antes de mergulhar na escuridão. O sujeito levantou-se e sacudiu a cabeça, com desdém.

– Eles sempre deixam um furo na hora de elaborar o contrato – murmurou.

No meio da noite, Alice deu pela falta do marido e bateu na porta do escritório. Como não houvesse resposta, por mais que ela insistisse, arrombou-a. Encontrou-o caído e imediatamente chamou a ambulância, mas quando o levaram para o hospital, já há muito tempo não restava mais o que fazer. Todos se surpreenderam com o que havia acontecido – todos, inclusive o médico que fora subornado por César para diagnosticar um enfarte como a causa mortis de sua esposa, o qual percebeu que alguma coisa no plano dele havia saído errado, mas achou por bem cumprir com sua parte no trato: já que fora pago para diagnosticar uma morte por enfarte, diagnosticou uma morte por enfarte, antes que a polícia desconfiasse que estivera metido numa tentativa de envenenamento...

Depois do velório, Alice chegou em casa, amparada por algumas de suas amigas da Igreja, e, na falta de outra coisa, quis oferecer-lhes um pedaço de torta de limão. Mas, estranhamente, a torta havia mofado, e ela teve de jogá-la fora. E nenhuma daquelas mulheres piedosas teve a oportunidade de provar a guloseima que tanto havia agradado a seu marido na véspera...

MAIO DE 2007

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Nota: esta é uma obra de ficção, que não retrata necessariamente minhas crenças, idéias ou opiniões; qualquer semelhança com fatos ou pessoas reais terá sido mera coincidência.

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