A TERRA MORREU!

A TERRA MORREU!

Autor: JRM Torres

380"

Dia 20 de março de 2105.
Primeiro as nuvens escuras se formaram, cercando o planeta, transformando-se
num manto negro, horripilante e mortífero. Pareciam conduzidas por uma força
invisível e ignóbil.
Depois, não havia vento, nenhum tipo e em nenhum rincão do mundo. As ondas
do mar estavam calmas e inertes. As folhas das árvores não balançavam.
Naquele dia (que era noite em outros continentes), os habitantes
simplesmente não perceberam o início de toda a desgraça; inclusive os
especialistas, os que lidavam com o clima e que tinham acesso aos mais
potentes satélites. Era como se estivessem cegos, entorpecidos, ludibriados
por sua vívida arrogância e prepotência.
Os habitantes seguiam sua rotina de sempre: dormiam com a consciência
tranqüila ou agitada ou trabalhavam ou praticavam esporte ou dançavam ou
conversavam pela Internet ou faziam compras ou cometiam crimes horrendos ou
namoravam ou rezavam para seus respectivos deuses ou caminhavam a esmo ou
viajavam das mais diversas formas ou gritavam de dor ou se suicidavam ou
sorriam ou choravam ou se drogavam ou guerreavam ou imergiam na sua própria
introspecção.
Eles não se prepararam para o que iria acontecer, pois nunca souberam.
As primeiras gotas de chuva caíram quando faltavam vinte minutos para as dez
horas da noite, na área ocidental, dia nublado na área oriental.
Por uma singularidade ímpar e inusitada, bizarra até, pela primeira vez na
história chovia em todo o planeta. Para onde quer que se fosse, para onde se
observasse, a chuva caía aos borbotões, contínua e insensível.
Os habitantes abriram seus guardas-chuva, outros esperaram debaixo das
marquises, outros enfrentaram a chuva, rindo e brincando, outros trabalharam
na chuva, outros lançaram suas bombas na chuva, outros aguardaram dentro de
seus lares, de tal forma, que as atividades do planeta se manteve quase que
no mesmo ritmo de antes.
Após duas horas de chuva, os aviões começaram a pousar e poucos ousavam
levantar vôo. Os navios lançaram âncora, os trens diminuíram a marcha, os
carros (havia dois tipos: os que voavam e os normais) rasgavam o céu e as
poças d’água, ainda sem o menor indício de pânico.
Na terceira hora de chuva, os seres humanos, por meio de sua mídia,
começaram a perceber o problema. Nos Estados Unidos, um cientista chegou à
conclusão de que chovia em todo o planeta. A notícia correu o mundo, célere
e pragmática.
Na quarta hora de chuva, os primeiros contratempos: rios transbordavam, as
partes baixas alagavam, o mar aumentava de nível, os animais se agitavam nas
florestas e selvas, e as grandes metrópoles, com seus bueiros entupidos,
imergiam em lagos e engarrafamentos.
A chuva caía, em gotas grossas, torrencial e infinita.
O planeta estava alagando!
Após cinco horas de chuva, não havia nenhum avião singrando o céu (uma vez
que os aeroportos estavam interditados), poucos barcos e navios se
movimentavam (pois a chuva atrapalhava a visão e o uso dos sonares), nenhum
trem se deslocava e apenas alguns carros (os que voavam e os normais) e
ônibus rasgavam o céu e as estradas alagadas.
Aos poucos as coisas pioravam.
Pessoas e animais começaram a morrer, afogados. Os desabrigados se
multiplicaram. Ocorriam desabamentos. As águas dos rios invadiam as cidades.
Surtos de doenças surgiam.
Vários países começaram a tomar medidas de emergência. Multidões eram
conduzidas para abrigos improvisados.
E a chuva continuava.
Nunca se tinha visto tanta água cair ao mesmo tempo, em todos os lugares do
mundo!
A chuva já se prolongava por mais de dez horas. Mesmo os pontos mais altos
começaram a ser atingidos. Cidades inteiras e ilhas pequenas desapareciam
sob as águas. Navios transportavam os sobreviventes de tais lugares.
Vinte horas de chuva! Vinte!
Os chefes de estado, ao perceberam a gravidade do problema, viram que algo
precisava ser feito. Norte-americanos, canadenses, mexicanos, brasileiros,
argentinos, italianos, russos, sauditas, egípcios, camaroneses, holandeses,
suecos, alemães, japoneses, etc, por telefone, entraram em contato uns com
os outros. Chegaram à conclusão de que tinham que evacuar as pessoas para os
pontos mais altos.
Ouvia-se o pronunciamento do presidente dos Estados Unidos, o escolhido para
orientar os vinte bilhões de habitantes:
- Senhora e senhoras, caros amigos de todas as partes do planeta, ouçam com
atenção o que vou dizer. Nós, seres humanos, alcançamos o ápice do progresso
humano e científico. A AIDS foi controlada, pois temos sua vacina, a
incidência de câncer e outras doenças caiu em 80%, o que nos permite viver
até aos 100, 120 anos, graças às avançadas técnicas de nossa medicina;
também já conseguimos transformar água do mar em água potável (onde cada
morador tem seu aparelho em casa); temos chips em nossos cérebros, que nos
permite controlar as doenças, nos identificar e localizar em qualquer parte
do mundo; nossos carros voam (movidos pelo bio-combustível artificial, que
substituiu o petróleo), evitando os engarrafamentos; nossa agricultura está
evoluída, com imensas plantações sobre plataformas no mar; fazemos compras e
nos comunicamos pela Internet, pois nosso dinheiro é agora virtual (com
cartões magnéticos à prova de falsificações); o terrorismo foi controlado;
e, apesar de existirem alguns países onde a fome e a guerra ainda perdurem,
estamos vivendo um mundo bem melhor e mais ordeiro. No entanto, esse mundo,
o nosso mundo, comumente chamado de Planeta Terra, está atravessando a pior
crise de sua história. Estamos sendo vitimados pelo mais devastador dilúvio
de todos os tempos. Trata-se de uma chuva única, torrencial, devastadora,
que cai continuamente há mais de vinte horas e não sabemos quando irá parar.
Muitas pessoas já morreram, infelizmente. Nenhum cientista até agora
conseguiu entender o motivo desse dilúvio, que nos pegou de surpresa,
confesso, mas estamos estudando e planejando a melhor forma de evacuação
global dos habitantes do planeta para os pontos mais altos. Peço-lhes que
não entrem em pânico, pois, apesar do que parece ser uma espécie de castigo
divino, daremos um jeito nessa situação. Rezem, rezem bastante, porém, acima
de tudo, tenham a tranqüilidade de se deslocarem, sem atropelos, para os
locais que as autoridades de suas cidades determinarem e tudo dará certo.
Que Deus tenha piedade de nossas almas! Obrigado.
E assim começaram a proceder.
Os mais altos edifícios, as montanhas, serras, torres, etc, ou seja,
qualquer estrutura alta o suficiente passou a ser utilizado como abrigo para
as pessoas. Todos corriam, entre choros e desesperos, para os pontos
indicados. Muitos entraram nos imensos navios cargueiros, nos quais haviam
estoque de comida para um mês. Havia comida nos edifícios e montanhas. No
auge do caos, pessoas corriam e morriam atropeladas e pisoteadas. Outros
tentavam fugir pelos próprios meios, utilizando os carros voadores ou carros
normais. A maioria morria afogada. Havia uma balbúrdia mundial.
Vinte e seis horas de chuva.
O vento apareceu, subitamente, e começou a soprar, tornando revoltas as
águas dos oceanos e rios.
As guerras cessaram por completo. Pela primeira vez na história não havia
uma só guerra em todo o planeta. A paz, a paz tão sonhada, tão almejada por
todos, fora alcançada! Incrível! Os seres humanos rezavam, choravam,
entravam em desespero, lutavam por suas vidas e pararam de lutar entre si.
Não se ouvia o ribombar das bombas, o troar dos fuzis, nem os mortos caindo
aos montes, vitimados pelos da própria espécie.
Via-se, sim, pessoas e animais morrendo, mas afogadas, soterradas ou
dizimadas por doenças.
Após três dias de chuva, as pessoas esperavam.
Dos vinte bilhões de moradores do Planeta, somente dois bilhões conseguiram
alcançar os pontos mais altos.
Os cadáveres flutuavam sobre as águas. Corpos e mais corpos, inchados e
desfigurados, perfazendo uma cena grotesca.
Os oceanos, com suas ondas agitadas pelo vento, transbordaram.
Cidades como Veneza, Amsterdã, Florianópolis, Creta, Nova Orleans, São Luís,
Havana, Wellington, Kioto, Malvinas, etc, sumiram do mapa!
Países como Cuba, Nova Zelândia, Jamaica, Malásia, Malta, etc, sumiram do
mapa!
E a chuva continuava. E mais cidades iam sendo engolidas!
Os mais poderosos políticos, postados no mais altos edifícios, esperavam.
Todos estavam com medo, um medo angustiante, que lhes tirava o raciocínio.
Os russos tiveram a idéia de embarcarem num foguete, para ficarem flutuando
no espaço, até o dilúvio passar. O presidente da Rússia, seus parentes e
mais trinta políticos embarcaram. Não deu certo. O foguete explodiu e todos
morreram.
Os japoneses tentaram algo parecido. O foguete também explodiu
misteriosamente, como se uma força estranha danificasse a sua estrutura.
Já o presidente dos Estados Unidos se recusou a embarcar num foguete. Disse
que não iria fugir, para abandonar o seu povo naquele momento angustiante.
Se fosse o caso, morreria ali, na terra onde nasceu. Delirava, os olhos
vidrados, e já antevia a própria morte. Passou seus últimos dias olhando
para a chuva que caía, a esposa afagando seus cabelos.
Não havia mais energia elétrica, nem Internet, nem qualquer outro meio de
comunicação.
Toda a vida organizada da Terra deu lugar ao caos!

***

Do espaço, eles souberam. E observaram.
Os astronautas, cerca de quarenta, de inúmeros países, enclausurados nas
diversas plataformas espaciais, viam tudo do espaço.
Na verdade, nada viam, a não ser uma sombra negra cercando a Terra. Ficaram
abismados com aquilo. Era como um monstro sanguinário, negro e sombrio,
ávido em destruir e aniquilar. Todos se arrepiaram.
Rezavam, trêmulos, pois tudo indicava que um dilúvio estava se abatendo
sobre a Terra.

***

Cinco dias de chuva.
A água tomava conta do planeta.
Metade do continente australiano e africano foi inundado, assim como 40% das
Américas. 30% da Europa e Ásia foram inundados. Os pólos Norte e Sul
sumiram!
A água já batia na metade dos edifícios mais altos.
Dez dias de chuva.
Não havia mais dúvida, principalmente na cabeça dos mais renomados
cientistas, de que as terríveis águas não cessariam, até que toda a vida no
planeta deixasse de existir. Para os religiosos (de todas as religiões e
crenças!), era o fim do mundo, o castigo de Deus, o segundo dilúvio. Todos
enlouqueciam lentamente. Muitos se suicidaram.
As águas invadiam tudo e subiam gradativamente.
Quinze dias de chuva.
Os seres humanos comiam enlatados e bebiam a água da chuva. Os navios e
similares, mais de vinte mil, flutuavam perto dos edifícios. Os barcos
menores viravam, devido ao poderio das ondas.
As pessoas que estava nas partes mais baixas dos prédios queriam subir, mas
eram repelidas pelos exércitos. Muitos morriam pelos tiros dos fuzis dos
soldados e eram lançados no imenso oceano. Ouvia-se seus gritos de
desespero. Os que caíam nas águas e tentavam flutuar, eram devorados pelos
peixes.
Vinte dias de chuva.
A comida e a bebida dos navios começavam a escassear. As pessoas começaram a
beber apenas a água da chuva.
Trinta dias de chuva.
Praticamente 80% das terras do planeta estavam submersas. As pessoas iam
morrendo de fome, pois a comida estocada não era suficiente. Os animais
terrestres faleceram. Até os pássaros morreram, pois não sabiam onde pousar.
Somente os peixes sobreviviam, sem entenderem o motivo da expansão de seu
território marítimo.
O Brasil, assim como a maioria dos países, desapareceu sob as águas, e quase
todos os seus habitantes pereceram, aí incluindo o seu presidente. Este
morreu antes, vitimado pela peste bubônica. Morreu delirando, numa agonia
indescritível e suas últimas palavras foram: “Deus castigou a Terra!”. Só
estavam vivos os que se abrigaram nos navios.
Restava, neste momento, aproximadamente quatrocentas mil pessoas vivas no
planeta.
Todas esperavam e rezavam.
Quarenta dias de chuva.
Era chegado o momento em que a morte cercava a todos. Nos navios, as pessoas
vivas comiam as mortas, num canibalismo extremo e bizarro, e bebiam água da
chuva. Os cadáveres se amontoavam e eram jogados no oceano. Gritos de
desesperos se ouviam nos navios.
E eis que todas as pessoas que estavam nos prédios e demais estruturas
morreram: presidentes, reis, rainhas, príncipes, padres, cardeais, soldados,
milionários, artistas, cientistas e as pessoas comuns. A maioria morreu
afogada; outros, de doenças como peste bubônica e cólera.
Na terra, apenas uma estrutura era vista fora d’água: o maior prédio do
mundo, localizado em Washington, Estados Unidos. Naquele prédio, quinhentas
pessoas se amontoavam, apavoradas, dentre elas o presidente.
Mas ele sabia que não tinha chance. Sabia que ia morrer, assim como seus
companheiros de abrigo. E segurava as lágrimas, mesmo chorando por dentro.
Cinqüenta dias de chuva.
O prédio de Washington submergiu. As águas tomaram a edificação e o
presidente dos Estados Unidos, lançado nas águas, pereceu, devorado pelos
tubarões. Seus gritos foram ouvidos longe, a carne do corpo dilacerada pelos
dentes dos enormes peixes.
Os navios, que flutuavam nas águas infinitas, se tornaram depósitos de
moribundos. Dos vinte mil navios espalhados pela Terra, que agora era
completamente dominada pelas águas, só havia vida em aproximadamente
oitenta.
Oitenta navios, lotados de pessoas doentes e desesperadas.
Sessenta dias de chuva.
Um único navio.
Naquele navio, constituído de aço e ferro, quarenta e uma pessoas rezavam.
Vinte e dois homens e dezenove mulheres. A maioria jovens. Os sobreviventes
do dilúvio. Todos nasceram na Dinamarca. Todos loiros. Estavam magros,
pálidos e em pânico.
E mesmo estes morreram. Comendo uns aos outros. Doentes. Vomitando sangue. O
último ser vivo sobre a Terra, um homem de quarenta anos, enlouquecido,
enfiou um punhal no próprio coração.
Fez-se o silêncio sepulcral.

***

E após setenta dias, eis que a chuva pára.

***

O dilúvio chegou ao fim, deixando atrás de si um rastro de morte.

***

O sol despontou no céu. As águas começaram a baixar.
As águas levaram sete dias para baixar, evaporadas pelo calor. Sete dias de
sol intenso, em que as coisas se modificavam. Os continentes emergiram
(terras e estruturas artificiais apontando para um novo horizonte) e os
oceanos voltaram ao seu nível normal. Vinte bilhões de cadáveres estavam
espalhados por todos os lados, sem contar os dos animais irracionais. O
fedor era insuportável. O gás dos corpos em decomposição podia ser visto do
espaço.
A Terra tornou-se um mundo em polvorosa, abandonado e solitário.
Navios eram vistos em todos os lugares. Prédios, aeroportos, palácios,
estádios, etc... vazios. Montanhas, serras, pântanos, desfiladeiros, etc...
vazios. Ou repleto de cadáveres. Pareciam coisas mal-assombradas num lugar
grotesco e sobrenatural.
Uma visão simplesmente horripilante!!!

***

Eles souberam. E observaram.
Sabiam do dilúvio.
Os astronautas notaram a dispersão das nuvens. Comunicavam-se entre si, por
meio de transmissão virtual, e um avisava o outro. Ansiosos, procuraram
captar, visualmente, as imagens. Focaram as câmeras diretamente sobre o
planeta. Aumentaram a potência das luzes. E o que viram, pelas telas
inseridas nas plataformas espaciais, lhes embrulhou o estômago.
As imagens eram... repugnantes!
E todos choraram, principalmente pelos entes queridos, mas também por todos
os seres da Terra. Não havia mais vida na Terra. Nenhum ser humano, nenhum
animal. Só corpos e mais corpos. Um planeta vazio, abandonado à própria
sorte.
Trêmulos, perguntaram-se o porquê dessa tragédia global: maldição divina?
Castigo de Deus? Efeito estufa? Destino? Não tinham a resposta. E não
queriam saber.
Aquelas quarenta pessoas, das quais nove mulheres, de várias nacionalidades,
só sabiam de uma coisa: cabia a eles a missão de recomeçar. E tomaram sua
decisão.
Dois meses após do término da chuva, tristes e deprimidos, iniciaram a
viagem para a Terra.

FIM

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