O VIAJANTE

O VIAJANTE

Autor: PAULO SORIANO



O VIAJANTE
Para Mauren Guedes Müller.

Dizia chamar-se Petrus Iliescu e me pareceu levemente tocado pelo álcool.

Assim que acendeu o cachimbo, vi que o viajante trajava um surrado sobretudo de gola alta, que um dia fora negro, mas que agora
apresentava uma tonalidade indefinida, entre o cinza e o castanho.
Mas não apenas o sobretudo era desbotado. Quando Iliescu extraía do cachimbo um trago mais profundo, a fagulha escarlate projetava-lhe o fulgor sobre a face ossuda, permitindo um rápido vislumbre de uma pele crespa, destituída de um matiz uniforme – aqui cinza, ali levemente amarelado –, embora, no conjunto, ressaltasse uma mórbida e angustiante palidez. Sem dúvida, Petrus Iliescu padecia de uma grave enfermidade.

Iliescu encolheu o pescoço sob as abas de seu sobretudo, ajustando-as acima do queixo. Como o compartimento em que estávamos era perfeitamente calafetado – e mesmo era possível dizer-se que fazia calor –, interpretei aquele gesto impertinente como puramente instintivo, típico dos que sofrem constantemente os rigores do inverno. Assim mergulhados um no outro, homem e casaco – ambos rotos e descoloridos – pareciam compor uma única substância acinzentada, que tremulava por trás da cortina indecisa de fumaça. Iliescu prosseguiu, puxando para perto dos olhos a aba de seu descorado chapéu de feltro:

- Estou cansado. Quero chegar logo a Busten – confidenciou-me, apagando a fagulha que restava no cachimbo com um polegar. – Ao me hospedar em Azuga, vindo de Bran, sentia-me perfeitamente bem. Mas dormi mal. Tive terríveis pesadelos. E hoje, quando despertei, senti todos os sintomas que invariavelmente acompanham a febre – especialmente o frio –. embora sem qualquer elevação perceptível na temperatura corporal.

Quando o trem retomou os movimentos, Iliescu afundou, ainda mais, o corpo longelíneo na poltrona. E, em pouco tempo, ressonava.
Aproveitei o ensejo para melhor examinar o meu excêntrico companheiro de viagem. Acendendo um fósforo, tive uma visão mais precisa do viajante. Constatei que era ainda jovem – talvez na casa dos trinta e cinco anos – e, a julgar pelo estado lastimável de sua vestimenta, era irremediavelmente pobre. Mas me parecia um homem instruído e polido. Imaginei que Petrus Iliescu era mais um daqueles poetas tão decadentes quanto talentosos, influenciados por um garoto francês chamado Rimbaud.

Mas o que me chamou atenção foi o singular ferimento que Iliescu trazia no flanco esquerdo do pescoço. Dois pequeninos furos, como se resultantes de uma picada de serpente.

- Iliescu, desculpe-me acordá-lo – sussurrei, acercando-me dele, e lhe tocando levemente no ombro. – Mas, queira dizer-me: você esteve no campo? Perambulou pela zona rural?

- Não, não estive no campo – ele me respondeu, voltando imediatamente a ressonar.

Senti a necessidade e a urgência de fazer alguma coisa. Eu teria de agir com enorme presteza.

Acendi novamente o fósforo - o único que me restava – e procedi a um novo exame. Mas foram os dentes caninos de Iliescu, agora crescidos, que reagiram ao lume pálido e efêmero da labareda.

Tremi.

A chama se extinguiu imediatamente.

Já agora o trem se aproximava da estação de Busten.

Logo haveria luzes.

Trago comigo um punhal de madeira para estas especiais ocasiões. E, antes que o solavanco da frenagem despertasse o viajante, mergulhei em seu coração a haste longa e pontiaguda. Iliescu arregalou os olhos, despertando dos negros pesadelos que precedem à transconsubstanciação. Mas foi por apenas um segundo. Afundei o punhal com maior vigor. E senti, na empunhadura da arma de madeira, o reverberar dos violentos estertores. Eu acabara de abortar um não-morto.

Então ganhei a noite.

E agora, quando percebo os caninos deslizarem ao nuto da sede angustiante e doce, sinto-me seguro. Em Busten, meu covil, não há lugar para dois predadores de minha espécie.

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