O ESCRAVO

O ESCRAVO

Autora: Rvânia

182"

Era uma linda noite de lua cheia. Cris encontrava-se sentada no terreiro, defronte à humilde casa de barro batido em que residia com os pais e mais quatro irmãos menores. O pequeno lugarejo de nome Charneca não dispunha ainda de luz elétrica, água encanada ou saneamento básico, era tudo muito rústico.

O cheiro de querosene chegava às narinas de Cris, através da fumaça dos candeeiros que iluminavam a casa, e ela gostava daquele aroma tão conhecido, assim como o cheiro do mato, a terra molhada e aquela brisa deliciosa que refrescava seu corpo enquanto ela fitava o céu e se encantava com o brilho das maravilhosas estrelas que piscavam no céu. Cris costumava fazer isso todas as noites, após fazer a refeição noturna juntos aos pais e irmãos, buscando um pouco de tranquilidade, longe da bagunça das crianças. Ela nunca imaginou que essa noite seria muito diferente das outras e que viveria o maior terror de sua vida.

Perdida em seus pensamentos, sem se dar conta do tempo passando, Cris de repente deu-se conta do silêncio ao seu redor. Achou estranho não ouvir o barulho das crianças dentro de casa e sua pobre mãe gritando o tempo todo para que ficassem quietos... não era possível que todos já houvessem deitado e adormecido. Resolveu levantar-se e ir ver o motivo da paz repentina... ao chegar à porta sentiu-se envolvida por um cheiro ocre e putrefato, um arrepio tomou todo o seu corpo deixando-a gelada e com uma sensação sufocante de pavor. Com dificuldade, forçou-se a andar, tendo que vencer o medo que a possuía, resistindo a vontade de dar meia volta e sair correndo pra longe dali. Assustou-se ainda mais ao ver um vulto negro e enorme cortar a sala em direção ao quarto dos seus pais. Foi uma cena rápida que deixou-a em dúvida se viu mesmo aquilo ou era fruto de sua mente apavorada.

-Pai! Mãe! – chamou em voz baixa, como se evitasse que mais alguém além deles ouvisse seu chamado. – Vocês estão aí? – Indagou indo em direção ao quarto.

Havia apenas um candeeiro aceso em toda a casa, e este encontrava-se na cozinha. Não tendo coragem de entrar no quarto escuro, ela dirigiu-se até a cozinha para pegá-lo. Ao voltar-se, já com o candeeiro nas mãos, para dirigir-se ao quarto, viu outra vez o vulto, dessa vez com mais clareza. Não fora fruto de sua imaginação, ela realmente viu algo parecido com um homem muito alto e meio encurvado. O grito congelou-se em sua garganta e ela tremia tanto que nem conseguia mover-se. Ficou parada, aterrorizada aguardando aquela coisa voltar e vir em sua direção. O que não ocorreu e permitiu que ela se acalmasse um pouco após alguns minutos, conseguindo voltar a mover-se.

Foi caminhando passo-a-passo em direção ao quarto dos pais, torcendo para que eles estivessem apenas dormindo e a coisa não estivesse lá, ou melhor, nem sequer existisse. Fosse apenas fruto de sua mente apavorada.

Chegando à porta do quarto, Cris levou o candeeiro à frente do rosto para clarear toda a extensão do aposento. O medo já havia diminuído, afinal ela era uma mulher forte e corajosa, que não acreditava em seres de outro mundo. Estava quase rindo para si mesma e pensando em como era boba por se assustar com sua própria imaginação. Foi quando sentiu um sopro quente, como se alguém ou algo estivesse respirando bem próximo ao seu rosto. Não teve coragem de virar-se pro lado e ver o que era, apenas fechou o olhos e chamou em voz baixa:

-Pai?!? – como resposta teve apenas um grunhido rouco e feroz. Sem saída, Cris foi obrigada a virar-se e olhar o que estava ao seu lado... deparou-se com um negro horrendo. Ele a fitava com ódio nos olhos injetados de sangue, a boca aberta como a de um cão rosnando mostrava os dentes quebrados e tortos. O rosto apresentava cicatrizes de cortes e machucados. Paralisada de terror, sem conseguir mover um só músculo do corpo e com um grito preso na garganta, a jovem permaneceu ali, fitando a criatura sem esboçar nenhuma reação... foram segundos que pareceram uma eternidade, até que perdeu os sentidos e não viu mais nada.

Quando abriu os olhos, completamente atordoada, Cris viu que já era dia e que estava em sua cama. Lembrando imediatamente da cena horrível, soltou finalmente o grito que estava preso em sua garganta. Todos, mãe, pai e irmãos apareceram na porta de seu quarto assustados.

-Filha - falou a mãe, tomando-a em seus braços – o que aconteceu? Encontramos você desmaiada na porta do nosso quarto ontem à noite, ficamos muito assustados...

Cris abraçou forte a mãe, soluçando num choro incontrolável. Olhava a família toda reunida à sua volta, com mil perguntas na cabeça e sem conseguir articular uma palavra sequer. Algum tempo depois, controlou-se um pouco e conseguiu falar.

-Mãe, pai! Pensei que nunca mais iria vê-los outra vez... o que aquele homem fez com vocês? Quem era ele? Nunca havia visto nada tão assustador em minha vida...

Os pais olharam-se sem entender nada. A mãe perguntou:

-Que homem, filha? Não tinha ninguém aqui! Do que você está falando?

-Mãe, tinha sim, eu vi. Era um negro muito alto, cheio de cicatrizes, uma criatura horrenda, eu o vi.

-Filhinha – falou o pai – você deve ter tido um pesadelo. Estávamos todos na cozinha quando ouvimos um baque. Corremos e encontramos você caída na porta de nosso quarto. Não havia ninguém aqui.

-Mas, pai! Eu entrei em casa por estranhar o silêncio... chamei por vocês e ninguém respondeu. Fui até a cozinha e não havia ninguém, peguei o candeeiro e fui procurar vocês no quarto, foi quando vi a criatura... ele estava bem pertinho de mim... eu vi!

Os pais entreolharam-se sem entender nada, achando que a filha estava atordoada por causa do desmaio e confundindo sonho com realidade. Ela continuou seu relato, tentando controlar o nervosismo.

-Mãezinha... eu pensei que nunca mais veria vocês, que aquela coisa tinha feito mal a vocês... - e voltou a chorar copiosamente.

-Filha, - disse a mãe abraçando-a – fique calma. Seja o que for que você viu, não está mais aqui e não nos fez mal algum.

Depois de muita conversa e muito carinhos dos pais e dos irmãos, Cris finalmente acalmou-se. Mas, não conseguiu tirar aquela imagem horrível do pensamento.

Os dias foram passando e o acontecimento foi tornando-se mais ameno na mente de Cris, os afazeres do dia-a-dia, a preocupação com os irmãos não deixavam tempo para indagações sobre o ocorrido, até porque nunca mais voltou a acontecer nada de estranho na casa.

Até que uns dois meses depois, Cris acordou no meio da noite com um frio que congelava até sua alma. Encontrou dificuldade para conseguir levantar e pegar outro lençol, pois o corpo inteiro tremia sem parar. Encolhida no lençol, foi até o canto do pequeno aposento e retirou da caixa de papelão onde guardava os lençóis e pegou um. Ao voltar-se em direção da cama, o medo paralisou-a outra vez. Lá estava o negro, sentado em sua cama com a cabeça baixa e as mãos cruzadas entre os joelhos.

Apesar do susto, Cris notou que desta vez não foi tomada pelo pavor, pois o negro não estava com aquela expressão de ódio da outra vez. Seu semblante era de abandono, tristeza, sofrimento, carência, menos ódio. Sem conseguir mover os pés do lugar, Cris ficou olhando aquela criatura sentada na cama sem se mover... até que ele levantou o rosto e fitou-a. O que ela viu foram olhos molhados de lágrima no rosto de um menino-grande.

Num fio de voz, achando que nem seria ouvida, Cris perguntou: - Quem é você?

O negro fitando-a nos olhos, respondeu com um lamento que a fez arrepiar-se:

-Quero ir pra perto de minha gente...

-Quem é sua gente... de onde você veio...? - perguntou mais uma vez, com a voz trêmula.

O negro levantou-se, e num pulo, a face mais uma vez transfigurada pela ira, quase encostou em Cris. Olhou-a com todo o ódio que poderia conter numa criatura, deu um berro horrendo e despareceu. Mais uma vez, Cris desfaleceu no meio do quarto.

Ao abrir os olhos já era dia, e sua família estava ao redor de sua cama, aflita.

-Filha, você desmaiou outra vez... - disse a mãe, chorosa.

-Mãe, eu o vi de novo, mãe. Ouço até agora aquela voz e aquele grito pavoroso em meus ouvidos. Não me deixe sozinha, mãe, não quero mais ver aquilo!

Os pais de Cris resolveram procurar o padre da paróquia, pois sabiam que a filha estava à beira de um colapso nervoso, e toda a família estava apavorada com receio de encontrar a terrível criatura.

O padre informou que não era a primeira vez que ouvia esses relatos. Que havia um cemitério escravo nas proximidades e que outra família já o havia procurado com relatos parecidos. Disse que não adiantou reza nem água benta e a família teve mesmo que deixar o lugar.

E assim, com tristeza no olhar e um futuro incerto, a família de Cris juntou os poucos pertences que tinha e abandonou o casebre. Preferiram arriscar a falta de uma moradia a ver a filha enlouquecer, pois Cris não queria mais dormir, nem ficar sozinha. E entrava em desespero quando a noite começava a cair...

FIM

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