CANÇÃO DE NINAR
CANÇÃO DE NINAR
Autora: SILVIA RANDAZZO
Canção de Ninar
(Por Silvia Randazzo)
Marilyn estava deitada sobre a divisória velha e abandonada, no
depósito do ferro-velho da cidade. Observava a lua minguante, de luz
opaca e ligeira, que insistia em se mostrar por entre as nuvens que
sapateavam com o vento. Pegou seu maço, retirou um cigarro e o
acendeu. A noite estava fria, era inverno; ela, no entanto, usava
apenas uma camisola de seda azul-marinho, deixando o corte da gelada
brisa tocar sua pele. Passou a mão na franja loura, puxando-a para
trás, enquanto cantarolava:
"No chão do quarto, esperanças jogadas,
As mentiras, tantas, espalhadas,
As cartas de amor foram todas rasgadas,
As lágrimas que caem, desconsoladas..."
Continuou a canção apenas com a melodia, balbuciando, hora ou outra,
uma palavra solta no meio dos tananás. Olhou para as próprias mãos. A
unha, por fazer, ainda guardava partes marrons; os anéis prateados,
vários, dispostos pelos dedos. Um dos anéis começava na base do
indicador, e terminava quando o dedo já havia se completado, formando
uma garra. Começou a brincar com os dedos como se dedilhasse um
teclado imaginário.
Fechou os olhos e deixou sua vida passar por sua cabeça. Nascera em
1816? Ou foi um pouco depois? Não se lembrava mais, sequer sabia sua
idade. Filha de burgueses, família que havia se enriquecido através do
comércio com a Índia e seus tecidos baratos de alta qualidade. Sua mãe
era próxima somente quando ela era uma pequenina criança, e costumava
vesti-la como a uma boneca de porcelana, adornando-a com peças caras e
anelando sua lisa cabeleira. Desde muito jovem, Marilyn estudou piano,
criando um certo apego às sonatas de Chopin, seu compositor predileto.
Na adolescência adorava ir a recitais, convidar as amigas para o chá
das cinco e conversar sobre as últimas fofocas da família real. Estava
sempre junto de sua ama, Rose, que mais parecia sua mãe do que a
própria, devido à amizade de ambas. Passava dias inteiros no parque a
arriscar pinceladas em telas, reproduzindo as imagens que via,
acrescentando um toque de sua imaginação pessoal, a todo momento.
Geralmente, nos fins de semana, ia ao clube das senhoras, aprender a
cozer, costurar, organizar e administrar a casa, como toda senhora de
casa que se preze. Lá também jogava críquete, com suas companheiras
associadas. Estudava o francês e o latim, dominava as línguas, e as
falava e escrevia como se morasse na França, ou tivesse vivido na Roma
antiga. Adorava leitura. Devorava romances inteiros e acompanhava as
novelas que os jornais postavam semanalmente.
Outro passatempo que a agradava era jogar xadrez com seu pai as
segundas à noite. Marilyn dava-se fantasticamente bem com o pai. Esse
sempre deu muito valor à filha, matriculando-a nos melhores colégios
da região de Londres, e tratando-a como a um igual. Ele era um homem
moderno e discordava da maneira com a qual a sociedade enxergava as
mulheres. Quando a jovem completou dezoito anos, seu pai decidiu que
já era hora de levá-la aos bailes da alta sociedade para que ela fosse
apresentada aos homens e, dentre os pretendentes, escolhesse o marido.
Ela era aversa à idéia de se casar, mas achou interessante ir a bailes
e, assim, expandir seu círculo de convivência.
O primeiro baile foi na casa dos burgueses Becckett. Marilyn dançou,
tocou piano, cantou, recitou poemas, conquistou alguns pretendentes,
fez novas amizades, dançou mais um pouco e chegou a casa exausta. O
segundo e o terceiro foram iguais aos primeiros. Ela fez exatamente a
mesma coisa. Nos próximos, nada mudou. Depois de alguns meses a
novidade deixou de surpreendê-la, e ir a esses eventos se tornou mera
obrigação para realizar os desejos do pai de casá-la. Todas as
formalidades que existem numa festa estavam a entediando
profundamente. E então, ela amuou. Procurava dar desculpas para fugir
dos bailes. Sentia dores, inventava febres e mal-estares, mas nem
sempre conseguia fugir das festas. E então veio um grandioso evento:
no salão oficial da nobreza se realizaria o reveillon, como era feito
todo ano. Marilyn se animou, pois seria a primeira vez que ela iria
numa comemoração de tal porte, onde encontraria a rainha. Encomendou
novo vestido à costureira, em tom prata; escolheu novas jóias e
acessórios; contratou um dos melhores cabeleireiros da localidade para
atendê-la no dia da festividade. Acordou eufórica, mandou telegramas
para as amigas, que responderam no mesmo dia, combinaram de se
encontrar logo que chegassem ao baile e quase não comeu o dia inteiro,
tamanha a ansiedade para que a tão esperada hora chegasse.
Às dez horas em ponto, Marilyn estava na porta do grande salão, onde
entrou em grande estilo, sendo anunciada como a Senhorita Bellford,
herdeira legítima da Bellford Comércios. Suas amigas chegaram logo
depois, e elas se cumprimentaram como se não se vissem há décadas.
Umas elogiavam às outras com seus vestidos novos e os cabelos feitos
com muito zelo. Estavam exaltadas com a festa de ano novo, que
prometia o inicio de novos planos para serem concretizados na nova
data que correria. A rainha foi anunciada, e deu-se início à dança. E
foi justamente naquele momento que ela conheceu Sean, um desconhecido
que entrou ao baile como pertencente da família Steves, fazendeiros de
renome dentro do país. Ele entrou com sua roupa de gala preta, uma
flor branca enfeitando o terno, o cabelo castanho comprido amarrado
atrás da nuca, os passos leves como os de uma garça. Sean a tirou
para dançar e ela aceitou, intrigada com rapaz de olhos
interrogativos. Ele tinha uma aura de mistério que a deixava curiosa,
e ela sentia-se hipnotizada pelo seu gesticular sereno.
Dançaram durante muito tempo, e conversaram. Marilyn estava muito
concentrada em descobrir mais sobre seu companheiro, e percebia-se
tímida por estar se apaixonando. No entanto, era aquilo que havia
ocorrido. Ela se apaixonara ao colocar os olhos naquela criatura
encantadora, e agora arriscava dizer que estava amando. Justo ela, que
não acreditava em nada à primeira vista, cética que era com as paixões
repentinas, virara refém de sua própria descrença, deixando o coração
inundar de vontade de ficar ali, assim, com aquele homem, por todo o
tempo possível.Conheceram-se melhor, riram juntos e, de tão entretidos
que estavam, somente aperceberam-se do tempo decorrido quando
começou-se a contagem para a virada do ano. Foi quando ele soltou, ao
pé do ouvido de Marilyn um "eu a amo" carinhoso e sincero, pegando em
sua mão. A moça corou, ficou envergonhada, mas retribuiu o carinho e a
frase, respondendo "eu também". Sean abraçou-a e completou: "Eu a
observo há muito, muito tempo. Desejo que sejas minha por toda a
eternidade." Aquelas palavras foram exatamente o que a jovem queria
ouvir, "por toda a eternidade", e a idéia de pertencer àquele
misterioso sedutor fazia seu coração sair à boca, e um frio em seu
estômago instalou-se. Sean começou a guiar Marilyn para fora do salão.
Ela não protestou, apenas o seguiu, e seus sentidos estavam dançando a
valsa da paixão, pois ela havia conhecido alguém que mexesse com ela,
que a intrigasse, uma pessoa que a fizesse ter vontade de mais e mais.
Queria fugir dali com ele, e tinha certeza de que era isso que
ocorreria. Entretanto, em primeiro momento, ele a levou para o jardim
real, escondendo-se atrás das árvores de um pequeno bosque, buscando
privacidade. E, entre os raios de luar, ele mostrou suas garras.
Grandes caninos brilhavam, saltavam de sua boca, caninos que
procuravam o saciar dos almejos da carne. Cravou os dentes na moça,
que soltou um curto gemido, cortando, logo depois, sua língua com os
dentes, ordenando a Marilyn: "Beije-me!"
E assim ela se tornara diferente, fugiu de casa. Virou um ser da
noite, que vagava na escuridão à procura de indivíduos sozinhos para
se satisfazer na luxúria de sangue. As frutas de verão já não lhe
apeteciam mais. O cheiro dos legumes cozidos já não abria seu apetite.
Mas ouvir o palpitar de um coração, ou captar o odor de suor a
deixavam faminta. Seus sentidos, agora aguçados, permitiam que ela
percebesse cada pulsar da vida, cada florescer da primavera, cada
casca de ovo quebrada - anunciando um novo bebê. E cada vez mais ela
se inebriava com as novas descobertas, sempre sorvendo o líquido
violeta que corria nas veias dos seres.
Amava Sean como nunca amou a ninguém, e precisava dele para continuar
desfrutando os sabores da existência sombria, privados da luz do sol.
Eles formavam um casal perfeito, de tão sincronizados que eram.
Juntos, destruíram famílias inteiras. Usavam da influência que suas
famílias tinham no país para se aproximarem das pessoas, faziam
amizades e ganhavam a confiança deles, para, depois de infiltrados no
seio familiar, se alimentarem abundantemente. Ou caçavam nos subúrbios
das cidades pelas quais passavam, se aproveitando de bêbados,
prostitutas e transeuntes, pessoas de quem ninguém sentiria falta. Iam
a operas, peças de teatro e bailes da alta sociedade somente para
escolherem as vítimas que os agradavam mais. Gostavam de sangue
burguês e de sangue nobre. Divertiam-se optando por quem atacariam em
seguida, usando como critérios idade, vaidade, arrogância, status e
beleza. Riam das notícias de jornal, que comentavam horrorizadas das
matanças que estavam ocorrendo em todo o país, acusando uma praga
desconhecida, que deixavam seus doentes secos, sem resquícios de
sangue no corpo. Viviam harmoniosamente com sua condição de predador e
eram felizes, um com o outro, e ambos amaldiçoados.
Um dia, no entanto, Sean dirigiu o olhar para a moça, cético e mudado.
"Pode fazer o que desejar de sua vida, Marilyn, eu vou embora, não te
amo mais." Foi o que ele disse. Deu as costas à garota e desapareceu
entre as sombras da noite. O mundo dela ruiu. Entrou num frenesi sem
fim, se alimentando escassamente, durante décadas. Matava mais do que
era necessário para se alimentar durante a noite e fazia isso para
descontar sua raiva de ter sido abandonada, de uma hora para outra,
sem explicação, por alguém que lhe presenteara com a liberdade e a
eternidade, e, depois, partira sem ao menos se despedir
apropriadamente. Ela não entendia o que acontecera com ela, que era
tão feliz e realizada, e, de repente, caiu no desgosto dos sonhos
rompidos.
Marilyn apagou o cigarro. Voltou de suas lembranças ao ouvir o grande
relógio dando suas baladas de cinco e meia da manhã. Levantou-se e
acarinhou o rosto de Sean, acorrentado, ao seu lado.
- Não adianta tentar escapar, meu amor. Eu fiz correntes tão fortes
que nenhum vampiro poderá quebrá-las.
- Marilyn, por que faz isso? O que você quer de mim?
- O que eu quero de você? Quero apenas ficar ao seu lado, para sempre...
- Você me quer de volta? Mas para quê? Faz tanto tempo que
terminamos... Será que ainda não superou? Solte-me, por favor...
- Não, meu amor, eu não posso soltá-lo. Se eu soltá-lo, vou perdê-lo
novamente. Levei tantos anos para te encontrar, não deixaria que
fugisse de mim, assim, tão facilmente.
A jovem vampiro continuava a cantarolar sutilmente.
- Lembra-se de como éramos, meu amor? De nossas aventuras? Lembra-se
de Kate, aquela criança tão tenra, que matamos juntos, de tanto que a
desejávamos?... Por que foi embora, por que fugiu de mim, Sean? Você
me prometeu amor eterno...
- Eu cometi um erro, Marilyn, na época eu realmente achava que te
amaria para sempre, mas não foi assim que aconteceu... As coisas
mudam, eu mudei, e meu sentimento por você morreu...
- Tudo por causa daquela garota ingênua! – Ela interrompeu. Aquela
menina que você conheceu naquele parque, que te virou a cabeça. Ela
conseguiu te enganar com aqueles olhos falsos. Mas a mim ela não
enganou. Tanto que eu pus um fim nela, e arranquei dela o olhar, o
verde folha que tinha em suas vistas...
- Não foi aquela garota, Marilyn. Eu não me apaixonei por ela. Eu
simplesmente enxerguei que eu não mais precisava de ti para continuar
a minha jornada.
A vampiro lançou a mão no rosto de Sean, com sua força brutal.
- Mentira! Você sempre precisou de mim para tudo! E eu sempre vivi em
função de ti. Larguei tudo que eu tinha de mais precioso, meu pai,
meus irmãos, todos, para seguir contigo. Abri mão da minha vida mortal
acreditando na sua promessa de amor eterno, e como age comigo?
Abandona-me, sem mais nem menos, como se eu nunca tivesse representado
nada para você.
- Se pareceu a você dessa forma, Marilyn, me perdoe. Eu não tive
intenções de te repudiar daquela maneira. Apenas queria te dar a
liberdade para que fizesse o que achasse melhor de sua vida.
- Chegou a me perguntar se eu queria essa liberdade? Sean, meu amor, o
que eu fiz para que você me largasse daquela forma... Onde eu errei?
Marilyn parecia transtornada.
- Você não errou, querida, não fez nada. O sentimento apenas morreu.
São coisas que acontecem...
- Mas não era para ter acontecido entre nós, meu amor. Não entre nós.
A moça começou a chorar. Sean observava o céu atentamente. Temia o
nascer do sol, e as nuvens já estavam clareando. Tentou convencer
Marilyn.
- Marilyn, não precisava ter feito o que fez, se me queria de volta,
era só me procurar e conversar comigo.
- Como? Toda vez que eu chegava perto você fugia e eu tinha que
começar minhas investigações novamente, para encontrá-lo. Mas dessa
vez eu cheguei sem que você percebesse, e aproveitei a luz do dia,
para usar meus subalternos e te prender, para que você não fugisse
novamente...
- Eu fazia aquilo com a esperança de você me esquecer, querida. Não
era mal intencionado. Por favor, solte-me. O sol já vai nascer e
precisamos procurar abrigo...
Os primeiros raios já despontavam, mostrando sua ameaça àquelas
criaturas, filhas da noite.
- Querida, vamos nos abrigar. Eu vou ficar com você... Prometo que não
fugirei mais. Serei seu, para toda a eternidade, como eu havia
prometido.
- O que eu fiz, ela repetia, o que eu fiz para ser abandonada?
- Esqueça isso, Marilyn, vamos passar uma borracha nisso tudo, e
voltemos a levar nossa vida de casal, como levávamos antes, o que
acha? Você tem toda razão. Não merecia o que eu fiz, eu fui o tolo
aqui, ao permitir deixar você sofrer como você sofreu.
- Nós vamos, meu amor, ficar juntos por toda a eternidade, isso sou eu
quem te prometo...
- Sim, querida, juntos, por toda a eternidade. Mas, para isso, eu
preciso que você me solte. Precisamos procurar abrigo urgente. Logo o
sol vai nos matar...
Marilyn olhou para o céu. Sim, ele estava chegando.
- Eu vou te soltar, sim, meu amor. Você será livre. Contanto que me
prometa que ficaremos juntos até o fim dos tempos.
- Sim, sim, eu prometo, mas ande rápido, solte-me, pois já estou
sentindo o incômodo em minha pele.
Marilyn soltou as correntes. No entanto, agarrou-o em seus braços.
Sean sentia-se fraco, e não conseguia sequer se mover adequadamente.
- O que fez comigo, Marilyn?
- Sangue... dei à você sangue de alguém que estava sob o efeito do
ópio, meu amor. Como eu disse, eu não ia deixá-lo ir tão facilmente...
Eu não confio mais em você... Beije-me, e sele nossa união pela
eternidade...
A vampiro encostou seus lábios nos lábios do rapaz de aparência jovem
e saudável, logo depois de cortar sua língua e deixar seu sangue
escorrer entre os dentes. Do beijo, faíscas saíram, e eles se tornaram
cinzas, cinzas que se misturaram com o vento, tornando-se um só...
FIM
Autora: SILVIA RANDAZZO
Canção de Ninar
(Por Silvia Randazzo)
Marilyn estava deitada sobre a divisória velha e abandonada, no
depósito do ferro-velho da cidade. Observava a lua minguante, de luz
opaca e ligeira, que insistia em se mostrar por entre as nuvens que
sapateavam com o vento. Pegou seu maço, retirou um cigarro e o
acendeu. A noite estava fria, era inverno; ela, no entanto, usava
apenas uma camisola de seda azul-marinho, deixando o corte da gelada
brisa tocar sua pele. Passou a mão na franja loura, puxando-a para
trás, enquanto cantarolava:
"No chão do quarto, esperanças jogadas,
As mentiras, tantas, espalhadas,
As cartas de amor foram todas rasgadas,
As lágrimas que caem, desconsoladas..."
Continuou a canção apenas com a melodia, balbuciando, hora ou outra,
uma palavra solta no meio dos tananás. Olhou para as próprias mãos. A
unha, por fazer, ainda guardava partes marrons; os anéis prateados,
vários, dispostos pelos dedos. Um dos anéis começava na base do
indicador, e terminava quando o dedo já havia se completado, formando
uma garra. Começou a brincar com os dedos como se dedilhasse um
teclado imaginário.
Fechou os olhos e deixou sua vida passar por sua cabeça. Nascera em
1816? Ou foi um pouco depois? Não se lembrava mais, sequer sabia sua
idade. Filha de burgueses, família que havia se enriquecido através do
comércio com a Índia e seus tecidos baratos de alta qualidade. Sua mãe
era próxima somente quando ela era uma pequenina criança, e costumava
vesti-la como a uma boneca de porcelana, adornando-a com peças caras e
anelando sua lisa cabeleira. Desde muito jovem, Marilyn estudou piano,
criando um certo apego às sonatas de Chopin, seu compositor predileto.
Na adolescência adorava ir a recitais, convidar as amigas para o chá
das cinco e conversar sobre as últimas fofocas da família real. Estava
sempre junto de sua ama, Rose, que mais parecia sua mãe do que a
própria, devido à amizade de ambas. Passava dias inteiros no parque a
arriscar pinceladas em telas, reproduzindo as imagens que via,
acrescentando um toque de sua imaginação pessoal, a todo momento.
Geralmente, nos fins de semana, ia ao clube das senhoras, aprender a
cozer, costurar, organizar e administrar a casa, como toda senhora de
casa que se preze. Lá também jogava críquete, com suas companheiras
associadas. Estudava o francês e o latim, dominava as línguas, e as
falava e escrevia como se morasse na França, ou tivesse vivido na Roma
antiga. Adorava leitura. Devorava romances inteiros e acompanhava as
novelas que os jornais postavam semanalmente.
Outro passatempo que a agradava era jogar xadrez com seu pai as
segundas à noite. Marilyn dava-se fantasticamente bem com o pai. Esse
sempre deu muito valor à filha, matriculando-a nos melhores colégios
da região de Londres, e tratando-a como a um igual. Ele era um homem
moderno e discordava da maneira com a qual a sociedade enxergava as
mulheres. Quando a jovem completou dezoito anos, seu pai decidiu que
já era hora de levá-la aos bailes da alta sociedade para que ela fosse
apresentada aos homens e, dentre os pretendentes, escolhesse o marido.
Ela era aversa à idéia de se casar, mas achou interessante ir a bailes
e, assim, expandir seu círculo de convivência.
O primeiro baile foi na casa dos burgueses Becckett. Marilyn dançou,
tocou piano, cantou, recitou poemas, conquistou alguns pretendentes,
fez novas amizades, dançou mais um pouco e chegou a casa exausta. O
segundo e o terceiro foram iguais aos primeiros. Ela fez exatamente a
mesma coisa. Nos próximos, nada mudou. Depois de alguns meses a
novidade deixou de surpreendê-la, e ir a esses eventos se tornou mera
obrigação para realizar os desejos do pai de casá-la. Todas as
formalidades que existem numa festa estavam a entediando
profundamente. E então, ela amuou. Procurava dar desculpas para fugir
dos bailes. Sentia dores, inventava febres e mal-estares, mas nem
sempre conseguia fugir das festas. E então veio um grandioso evento:
no salão oficial da nobreza se realizaria o reveillon, como era feito
todo ano. Marilyn se animou, pois seria a primeira vez que ela iria
numa comemoração de tal porte, onde encontraria a rainha. Encomendou
novo vestido à costureira, em tom prata; escolheu novas jóias e
acessórios; contratou um dos melhores cabeleireiros da localidade para
atendê-la no dia da festividade. Acordou eufórica, mandou telegramas
para as amigas, que responderam no mesmo dia, combinaram de se
encontrar logo que chegassem ao baile e quase não comeu o dia inteiro,
tamanha a ansiedade para que a tão esperada hora chegasse.
Às dez horas em ponto, Marilyn estava na porta do grande salão, onde
entrou em grande estilo, sendo anunciada como a Senhorita Bellford,
herdeira legítima da Bellford Comércios. Suas amigas chegaram logo
depois, e elas se cumprimentaram como se não se vissem há décadas.
Umas elogiavam às outras com seus vestidos novos e os cabelos feitos
com muito zelo. Estavam exaltadas com a festa de ano novo, que
prometia o inicio de novos planos para serem concretizados na nova
data que correria. A rainha foi anunciada, e deu-se início à dança. E
foi justamente naquele momento que ela conheceu Sean, um desconhecido
que entrou ao baile como pertencente da família Steves, fazendeiros de
renome dentro do país. Ele entrou com sua roupa de gala preta, uma
flor branca enfeitando o terno, o cabelo castanho comprido amarrado
atrás da nuca, os passos leves como os de uma garça. Sean a tirou
para dançar e ela aceitou, intrigada com rapaz de olhos
interrogativos. Ele tinha uma aura de mistério que a deixava curiosa,
e ela sentia-se hipnotizada pelo seu gesticular sereno.
Dançaram durante muito tempo, e conversaram. Marilyn estava muito
concentrada em descobrir mais sobre seu companheiro, e percebia-se
tímida por estar se apaixonando. No entanto, era aquilo que havia
ocorrido. Ela se apaixonara ao colocar os olhos naquela criatura
encantadora, e agora arriscava dizer que estava amando. Justo ela, que
não acreditava em nada à primeira vista, cética que era com as paixões
repentinas, virara refém de sua própria descrença, deixando o coração
inundar de vontade de ficar ali, assim, com aquele homem, por todo o
tempo possível.Conheceram-se melhor, riram juntos e, de tão entretidos
que estavam, somente aperceberam-se do tempo decorrido quando
começou-se a contagem para a virada do ano. Foi quando ele soltou, ao
pé do ouvido de Marilyn um "eu a amo" carinhoso e sincero, pegando em
sua mão. A moça corou, ficou envergonhada, mas retribuiu o carinho e a
frase, respondendo "eu também". Sean abraçou-a e completou: "Eu a
observo há muito, muito tempo. Desejo que sejas minha por toda a
eternidade." Aquelas palavras foram exatamente o que a jovem queria
ouvir, "por toda a eternidade", e a idéia de pertencer àquele
misterioso sedutor fazia seu coração sair à boca, e um frio em seu
estômago instalou-se. Sean começou a guiar Marilyn para fora do salão.
Ela não protestou, apenas o seguiu, e seus sentidos estavam dançando a
valsa da paixão, pois ela havia conhecido alguém que mexesse com ela,
que a intrigasse, uma pessoa que a fizesse ter vontade de mais e mais.
Queria fugir dali com ele, e tinha certeza de que era isso que
ocorreria. Entretanto, em primeiro momento, ele a levou para o jardim
real, escondendo-se atrás das árvores de um pequeno bosque, buscando
privacidade. E, entre os raios de luar, ele mostrou suas garras.
Grandes caninos brilhavam, saltavam de sua boca, caninos que
procuravam o saciar dos almejos da carne. Cravou os dentes na moça,
que soltou um curto gemido, cortando, logo depois, sua língua com os
dentes, ordenando a Marilyn: "Beije-me!"
E assim ela se tornara diferente, fugiu de casa. Virou um ser da
noite, que vagava na escuridão à procura de indivíduos sozinhos para
se satisfazer na luxúria de sangue. As frutas de verão já não lhe
apeteciam mais. O cheiro dos legumes cozidos já não abria seu apetite.
Mas ouvir o palpitar de um coração, ou captar o odor de suor a
deixavam faminta. Seus sentidos, agora aguçados, permitiam que ela
percebesse cada pulsar da vida, cada florescer da primavera, cada
casca de ovo quebrada - anunciando um novo bebê. E cada vez mais ela
se inebriava com as novas descobertas, sempre sorvendo o líquido
violeta que corria nas veias dos seres.
Amava Sean como nunca amou a ninguém, e precisava dele para continuar
desfrutando os sabores da existência sombria, privados da luz do sol.
Eles formavam um casal perfeito, de tão sincronizados que eram.
Juntos, destruíram famílias inteiras. Usavam da influência que suas
famílias tinham no país para se aproximarem das pessoas, faziam
amizades e ganhavam a confiança deles, para, depois de infiltrados no
seio familiar, se alimentarem abundantemente. Ou caçavam nos subúrbios
das cidades pelas quais passavam, se aproveitando de bêbados,
prostitutas e transeuntes, pessoas de quem ninguém sentiria falta. Iam
a operas, peças de teatro e bailes da alta sociedade somente para
escolherem as vítimas que os agradavam mais. Gostavam de sangue
burguês e de sangue nobre. Divertiam-se optando por quem atacariam em
seguida, usando como critérios idade, vaidade, arrogância, status e
beleza. Riam das notícias de jornal, que comentavam horrorizadas das
matanças que estavam ocorrendo em todo o país, acusando uma praga
desconhecida, que deixavam seus doentes secos, sem resquícios de
sangue no corpo. Viviam harmoniosamente com sua condição de predador e
eram felizes, um com o outro, e ambos amaldiçoados.
Um dia, no entanto, Sean dirigiu o olhar para a moça, cético e mudado.
"Pode fazer o que desejar de sua vida, Marilyn, eu vou embora, não te
amo mais." Foi o que ele disse. Deu as costas à garota e desapareceu
entre as sombras da noite. O mundo dela ruiu. Entrou num frenesi sem
fim, se alimentando escassamente, durante décadas. Matava mais do que
era necessário para se alimentar durante a noite e fazia isso para
descontar sua raiva de ter sido abandonada, de uma hora para outra,
sem explicação, por alguém que lhe presenteara com a liberdade e a
eternidade, e, depois, partira sem ao menos se despedir
apropriadamente. Ela não entendia o que acontecera com ela, que era
tão feliz e realizada, e, de repente, caiu no desgosto dos sonhos
rompidos.
Marilyn apagou o cigarro. Voltou de suas lembranças ao ouvir o grande
relógio dando suas baladas de cinco e meia da manhã. Levantou-se e
acarinhou o rosto de Sean, acorrentado, ao seu lado.
- Não adianta tentar escapar, meu amor. Eu fiz correntes tão fortes
que nenhum vampiro poderá quebrá-las.
- Marilyn, por que faz isso? O que você quer de mim?
- O que eu quero de você? Quero apenas ficar ao seu lado, para sempre...
- Você me quer de volta? Mas para quê? Faz tanto tempo que
terminamos... Será que ainda não superou? Solte-me, por favor...
- Não, meu amor, eu não posso soltá-lo. Se eu soltá-lo, vou perdê-lo
novamente. Levei tantos anos para te encontrar, não deixaria que
fugisse de mim, assim, tão facilmente.
A jovem vampiro continuava a cantarolar sutilmente.
- Lembra-se de como éramos, meu amor? De nossas aventuras? Lembra-se
de Kate, aquela criança tão tenra, que matamos juntos, de tanto que a
desejávamos?... Por que foi embora, por que fugiu de mim, Sean? Você
me prometeu amor eterno...
- Eu cometi um erro, Marilyn, na época eu realmente achava que te
amaria para sempre, mas não foi assim que aconteceu... As coisas
mudam, eu mudei, e meu sentimento por você morreu...
- Tudo por causa daquela garota ingênua! – Ela interrompeu. Aquela
menina que você conheceu naquele parque, que te virou a cabeça. Ela
conseguiu te enganar com aqueles olhos falsos. Mas a mim ela não
enganou. Tanto que eu pus um fim nela, e arranquei dela o olhar, o
verde folha que tinha em suas vistas...
- Não foi aquela garota, Marilyn. Eu não me apaixonei por ela. Eu
simplesmente enxerguei que eu não mais precisava de ti para continuar
a minha jornada.
A vampiro lançou a mão no rosto de Sean, com sua força brutal.
- Mentira! Você sempre precisou de mim para tudo! E eu sempre vivi em
função de ti. Larguei tudo que eu tinha de mais precioso, meu pai,
meus irmãos, todos, para seguir contigo. Abri mão da minha vida mortal
acreditando na sua promessa de amor eterno, e como age comigo?
Abandona-me, sem mais nem menos, como se eu nunca tivesse representado
nada para você.
- Se pareceu a você dessa forma, Marilyn, me perdoe. Eu não tive
intenções de te repudiar daquela maneira. Apenas queria te dar a
liberdade para que fizesse o que achasse melhor de sua vida.
- Chegou a me perguntar se eu queria essa liberdade? Sean, meu amor, o
que eu fiz para que você me largasse daquela forma... Onde eu errei?
Marilyn parecia transtornada.
- Você não errou, querida, não fez nada. O sentimento apenas morreu.
São coisas que acontecem...
- Mas não era para ter acontecido entre nós, meu amor. Não entre nós.
A moça começou a chorar. Sean observava o céu atentamente. Temia o
nascer do sol, e as nuvens já estavam clareando. Tentou convencer
Marilyn.
- Marilyn, não precisava ter feito o que fez, se me queria de volta,
era só me procurar e conversar comigo.
- Como? Toda vez que eu chegava perto você fugia e eu tinha que
começar minhas investigações novamente, para encontrá-lo. Mas dessa
vez eu cheguei sem que você percebesse, e aproveitei a luz do dia,
para usar meus subalternos e te prender, para que você não fugisse
novamente...
- Eu fazia aquilo com a esperança de você me esquecer, querida. Não
era mal intencionado. Por favor, solte-me. O sol já vai nascer e
precisamos procurar abrigo...
Os primeiros raios já despontavam, mostrando sua ameaça àquelas
criaturas, filhas da noite.
- Querida, vamos nos abrigar. Eu vou ficar com você... Prometo que não
fugirei mais. Serei seu, para toda a eternidade, como eu havia
prometido.
- O que eu fiz, ela repetia, o que eu fiz para ser abandonada?
- Esqueça isso, Marilyn, vamos passar uma borracha nisso tudo, e
voltemos a levar nossa vida de casal, como levávamos antes, o que
acha? Você tem toda razão. Não merecia o que eu fiz, eu fui o tolo
aqui, ao permitir deixar você sofrer como você sofreu.
- Nós vamos, meu amor, ficar juntos por toda a eternidade, isso sou eu
quem te prometo...
- Sim, querida, juntos, por toda a eternidade. Mas, para isso, eu
preciso que você me solte. Precisamos procurar abrigo urgente. Logo o
sol vai nos matar...
Marilyn olhou para o céu. Sim, ele estava chegando.
- Eu vou te soltar, sim, meu amor. Você será livre. Contanto que me
prometa que ficaremos juntos até o fim dos tempos.
- Sim, sim, eu prometo, mas ande rápido, solte-me, pois já estou
sentindo o incômodo em minha pele.
Marilyn soltou as correntes. No entanto, agarrou-o em seus braços.
Sean sentia-se fraco, e não conseguia sequer se mover adequadamente.
- O que fez comigo, Marilyn?
- Sangue... dei à você sangue de alguém que estava sob o efeito do
ópio, meu amor. Como eu disse, eu não ia deixá-lo ir tão facilmente...
Eu não confio mais em você... Beije-me, e sele nossa união pela
eternidade...
A vampiro encostou seus lábios nos lábios do rapaz de aparência jovem
e saudável, logo depois de cortar sua língua e deixar seu sangue
escorrer entre os dentes. Do beijo, faíscas saíram, e eles se tornaram
cinzas, cinzas que se misturaram com o vento, tornando-se um só...
FIM
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