CANÇÃO DE NINAR

CANÇÃO DE NINAR

Autora: SILVIA RANDAZZO



Canção de Ninar

(Por Silvia Randazzo)





Marilyn estava deitada sobre a divisória velha e abandonada, no

depósito do ferro-velho da cidade. Observava a lua minguante, de luz

opaca e ligeira, que insistia em se mostrar por entre as nuvens que

sapateavam com o vento. Pegou seu maço, retirou um cigarro e o

acendeu. A noite estava fria, era inverno; ela, no entanto, usava

apenas uma camisola de seda azul-marinho, deixando o corte da gelada

brisa tocar sua pele. Passou a mão na franja loura, puxando-a para

trás, enquanto cantarolava:


"No chão do quarto, esperanças jogadas,

As mentiras, tantas, espalhadas,

As cartas de amor foram todas rasgadas,

As lágrimas que caem, desconsoladas..."


Continuou a canção apenas com a melodia, balbuciando, hora ou outra,

uma palavra solta no meio dos tananás. Olhou para as próprias mãos. A

unha, por fazer, ainda guardava partes marrons; os anéis prateados,

vários, dispostos pelos dedos. Um dos anéis começava na base do

indicador, e terminava quando o dedo já havia se completado, formando

uma garra. Começou a brincar com os dedos como se dedilhasse um

teclado imaginário.

Fechou os olhos e deixou sua vida passar por sua cabeça. Nascera em

1816? Ou foi um pouco depois? Não se lembrava mais, sequer sabia sua

idade. Filha de burgueses, família que havia se enriquecido através do

comércio com a Índia e seus tecidos baratos de alta qualidade. Sua mãe

era próxima somente quando ela era uma pequenina criança, e costumava

vesti-la como a uma boneca de porcelana, adornando-a com peças caras e

anelando sua lisa cabeleira. Desde muito jovem, Marilyn estudou piano,

criando um certo apego às sonatas de Chopin, seu compositor predileto.

Na adolescência adorava ir a recitais, convidar as amigas para o chá

das cinco e conversar sobre as últimas fofocas da família real. Estava

sempre junto de sua ama, Rose, que mais parecia sua mãe do que a

própria, devido à amizade de ambas. Passava dias inteiros no parque a

arriscar pinceladas em telas, reproduzindo as imagens que via,

acrescentando um toque de sua imaginação pessoal, a todo momento.

Geralmente, nos fins de semana, ia ao clube das senhoras, aprender a

cozer, costurar, organizar e administrar a casa, como toda senhora de

casa que se preze. Lá também jogava críquete, com suas companheiras

associadas. Estudava o francês e o latim, dominava as línguas, e as

falava e escrevia como se morasse na França, ou tivesse vivido na Roma

antiga. Adorava leitura. Devorava romances inteiros e acompanhava as

novelas que os jornais postavam semanalmente.

Outro passatempo que a agradava era jogar xadrez com seu pai as

segundas à noite. Marilyn dava-se fantasticamente bem com o pai. Esse

sempre deu muito valor à filha, matriculando-a nos melhores colégios

da região de Londres, e tratando-a como a um igual. Ele era um homem

moderno e discordava da maneira com a qual a sociedade enxergava as

mulheres. Quando a jovem completou dezoito anos, seu pai decidiu que

já era hora de levá-la aos bailes da alta sociedade para que ela fosse

apresentada aos homens e, dentre os pretendentes, escolhesse o marido.

Ela era aversa à idéia de se casar, mas achou interessante ir a bailes

e, assim, expandir seu círculo de convivência.

O primeiro baile foi na casa dos burgueses Becckett. Marilyn dançou,

tocou piano, cantou, recitou poemas, conquistou alguns pretendentes,

fez novas amizades, dançou mais um pouco e chegou a casa exausta. O

segundo e o terceiro foram iguais aos primeiros. Ela fez exatamente a

mesma coisa. Nos próximos, nada mudou. Depois de alguns meses a

novidade deixou de surpreendê-la, e ir a esses eventos se tornou mera

obrigação para realizar os desejos do pai de casá-la. Todas as

formalidades que existem numa festa estavam a entediando

profundamente. E então, ela amuou. Procurava dar desculpas para fugir

dos bailes. Sentia dores, inventava febres e mal-estares, mas nem

sempre conseguia fugir das festas. E então veio um grandioso evento:

no salão oficial da nobreza se realizaria o reveillon, como era feito

todo ano. Marilyn se animou, pois seria a primeira vez que ela iria

numa comemoração de tal porte, onde encontraria a rainha. Encomendou

novo vestido à costureira, em tom prata; escolheu novas jóias e

acessórios; contratou um dos melhores cabeleireiros da localidade para

atendê-la no dia da festividade. Acordou eufórica, mandou telegramas

para as amigas, que responderam no mesmo dia, combinaram de se

encontrar logo que chegassem ao baile e quase não comeu o dia inteiro,

tamanha a ansiedade para que a tão esperada hora chegasse.

Às dez horas em ponto, Marilyn estava na porta do grande salão, onde

entrou em grande estilo, sendo anunciada como a Senhorita Bellford,

herdeira legítima da Bellford Comércios. Suas amigas chegaram logo

depois, e elas se cumprimentaram como se não se vissem há décadas.

Umas elogiavam às outras com seus vestidos novos e os cabelos feitos

com muito zelo. Estavam exaltadas com a festa de ano novo, que

prometia o inicio de novos planos para serem concretizados na nova

data que correria. A rainha foi anunciada, e deu-se início à dança. E

foi justamente naquele momento que ela conheceu Sean, um desconhecido

que entrou ao baile como pertencente da família Steves, fazendeiros de

renome dentro do país. Ele entrou com sua roupa de gala preta, uma

flor branca enfeitando o terno, o cabelo castanho comprido amarrado

atrás da nuca, os passos leves como os de uma garça. Sean a tirou

para dançar e ela aceitou, intrigada com rapaz de olhos

interrogativos. Ele tinha uma aura de mistério que a deixava curiosa,

e ela sentia-se hipnotizada pelo seu gesticular sereno.

Dançaram durante muito tempo, e conversaram. Marilyn estava muito

concentrada em descobrir mais sobre seu companheiro, e percebia-se

tímida por estar se apaixonando. No entanto, era aquilo que havia

ocorrido. Ela se apaixonara ao colocar os olhos naquela criatura

encantadora, e agora arriscava dizer que estava amando. Justo ela, que

não acreditava em nada à primeira vista, cética que era com as paixões

repentinas, virara refém de sua própria descrença, deixando o coração

inundar de vontade de ficar ali, assim, com aquele homem, por todo o

tempo possível.Conheceram-se melhor, riram juntos e, de tão entretidos

que estavam, somente aperceberam-se do tempo decorrido quando

começou-se a contagem para a virada do ano. Foi quando ele soltou, ao

pé do ouvido de Marilyn um "eu a amo" carinhoso e sincero, pegando em

sua mão. A moça corou, ficou envergonhada, mas retribuiu o carinho e a

frase, respondendo "eu também". Sean abraçou-a e completou: "Eu a

observo há muito, muito tempo. Desejo que sejas minha por toda a

eternidade." Aquelas palavras foram exatamente o que a jovem queria

ouvir, "por toda a eternidade", e a idéia de pertencer àquele

misterioso sedutor fazia seu coração sair à boca, e um frio em seu

estômago instalou-se. Sean começou a guiar Marilyn para fora do salão.

Ela não protestou, apenas o seguiu, e seus sentidos estavam dançando a

valsa da paixão, pois ela havia conhecido alguém que mexesse com ela,

que a intrigasse, uma pessoa que a fizesse ter vontade de mais e mais.

Queria fugir dali com ele, e tinha certeza de que era isso que

ocorreria. Entretanto, em primeiro momento, ele a levou para o jardim

real, escondendo-se atrás das árvores de um pequeno bosque, buscando

privacidade. E, entre os raios de luar, ele mostrou suas garras.

Grandes caninos brilhavam, saltavam de sua boca, caninos que

procuravam o saciar dos almejos da carne. Cravou os dentes na moça,

que soltou um curto gemido, cortando, logo depois, sua língua com os

dentes, ordenando a Marilyn: "Beije-me!"

E assim ela se tornara diferente, fugiu de casa. Virou um ser da

noite, que vagava na escuridão à procura de indivíduos sozinhos para

se satisfazer na luxúria de sangue. As frutas de verão já não lhe

apeteciam mais. O cheiro dos legumes cozidos já não abria seu apetite.

Mas ouvir o palpitar de um coração, ou captar o odor de suor a

deixavam faminta. Seus sentidos, agora aguçados, permitiam que ela

percebesse cada pulsar da vida, cada florescer da primavera, cada

casca de ovo quebrada - anunciando um novo bebê. E cada vez mais ela

se inebriava com as novas descobertas, sempre sorvendo o líquido

violeta que corria nas veias dos seres.

Amava Sean como nunca amou a ninguém, e precisava dele para continuar

desfrutando os sabores da existência sombria, privados da luz do sol.

Eles formavam um casal perfeito, de tão sincronizados que eram.

Juntos, destruíram famílias inteiras. Usavam da influência que suas

famílias tinham no país para se aproximarem das pessoas, faziam

amizades e ganhavam a confiança deles, para, depois de infiltrados no

seio familiar, se alimentarem abundantemente. Ou caçavam nos subúrbios

das cidades pelas quais passavam, se aproveitando de bêbados,

prostitutas e transeuntes, pessoas de quem ninguém sentiria falta. Iam

a operas, peças de teatro e bailes da alta sociedade somente para

escolherem as vítimas que os agradavam mais. Gostavam de sangue

burguês e de sangue nobre. Divertiam-se optando por quem atacariam em

seguida, usando como critérios idade, vaidade, arrogância, status e

beleza. Riam das notícias de jornal, que comentavam horrorizadas das

matanças que estavam ocorrendo em todo o país, acusando uma praga

desconhecida, que deixavam seus doentes secos, sem resquícios de

sangue no corpo. Viviam harmoniosamente com sua condição de predador e

eram felizes, um com o outro, e ambos amaldiçoados.

Um dia, no entanto, Sean dirigiu o olhar para a moça, cético e mudado.

"Pode fazer o que desejar de sua vida, Marilyn, eu vou embora, não te

amo mais." Foi o que ele disse. Deu as costas à garota e desapareceu

entre as sombras da noite. O mundo dela ruiu. Entrou num frenesi sem

fim, se alimentando escassamente, durante décadas. Matava mais do que

era necessário para se alimentar durante a noite e fazia isso para

descontar sua raiva de ter sido abandonada, de uma hora para outra,

sem explicação, por alguém que lhe presenteara com a liberdade e a

eternidade, e, depois, partira sem ao menos se despedir

apropriadamente. Ela não entendia o que acontecera com ela, que era

tão feliz e realizada, e, de repente, caiu no desgosto dos sonhos

rompidos.

Marilyn apagou o cigarro. Voltou de suas lembranças ao ouvir o grande

relógio dando suas baladas de cinco e meia da manhã. Levantou-se e

acarinhou o rosto de Sean, acorrentado, ao seu lado.

- Não adianta tentar escapar, meu amor. Eu fiz correntes tão fortes

que nenhum vampiro poderá quebrá-las.

- Marilyn, por que faz isso? O que você quer de mim?

- O que eu quero de você? Quero apenas ficar ao seu lado, para sempre...

- Você me quer de volta? Mas para quê? Faz tanto tempo que

terminamos... Será que ainda não superou? Solte-me, por favor...

- Não, meu amor, eu não posso soltá-lo. Se eu soltá-lo, vou perdê-lo

novamente. Levei tantos anos para te encontrar, não deixaria que

fugisse de mim, assim, tão facilmente.

A jovem vampiro continuava a cantarolar sutilmente.

- Lembra-se de como éramos, meu amor? De nossas aventuras? Lembra-se

de Kate, aquela criança tão tenra, que matamos juntos, de tanto que a

desejávamos?... Por que foi embora, por que fugiu de mim, Sean? Você

me prometeu amor eterno...

- Eu cometi um erro, Marilyn, na época eu realmente achava que te

amaria para sempre, mas não foi assim que aconteceu... As coisas

mudam, eu mudei, e meu sentimento por você morreu...

- Tudo por causa daquela garota ingênua! – Ela interrompeu. Aquela

menina que você conheceu naquele parque, que te virou a cabeça. Ela

conseguiu te enganar com aqueles olhos falsos. Mas a mim ela não

enganou. Tanto que eu pus um fim nela, e arranquei dela o olhar, o

verde folha que tinha em suas vistas...

- Não foi aquela garota, Marilyn. Eu não me apaixonei por ela. Eu

simplesmente enxerguei que eu não mais precisava de ti para continuar

a minha jornada.

A vampiro lançou a mão no rosto de Sean, com sua força brutal.

- Mentira! Você sempre precisou de mim para tudo! E eu sempre vivi em

função de ti. Larguei tudo que eu tinha de mais precioso, meu pai,

meus irmãos, todos, para seguir contigo. Abri mão da minha vida mortal

acreditando na sua promessa de amor eterno, e como age comigo?

Abandona-me, sem mais nem menos, como se eu nunca tivesse representado

nada para você.

- Se pareceu a você dessa forma, Marilyn, me perdoe. Eu não tive

intenções de te repudiar daquela maneira. Apenas queria te dar a

liberdade para que fizesse o que achasse melhor de sua vida.

- Chegou a me perguntar se eu queria essa liberdade? Sean, meu amor, o

que eu fiz para que você me largasse daquela forma... Onde eu errei?

Marilyn parecia transtornada.

- Você não errou, querida, não fez nada. O sentimento apenas morreu.

São coisas que acontecem...

- Mas não era para ter acontecido entre nós, meu amor. Não entre nós.

A moça começou a chorar. Sean observava o céu atentamente. Temia o

nascer do sol, e as nuvens já estavam clareando. Tentou convencer

Marilyn.

- Marilyn, não precisava ter feito o que fez, se me queria de volta,

era só me procurar e conversar comigo.

- Como? Toda vez que eu chegava perto você fugia e eu tinha que

começar minhas investigações novamente, para encontrá-lo. Mas dessa

vez eu cheguei sem que você percebesse, e aproveitei a luz do dia,

para usar meus subalternos e te prender, para que você não fugisse

novamente...

- Eu fazia aquilo com a esperança de você me esquecer, querida. Não

era mal intencionado. Por favor, solte-me. O sol já vai nascer e

precisamos procurar abrigo...

Os primeiros raios já despontavam, mostrando sua ameaça àquelas

criaturas, filhas da noite.

- Querida, vamos nos abrigar. Eu vou ficar com você... Prometo que não

fugirei mais. Serei seu, para toda a eternidade, como eu havia

prometido.

- O que eu fiz, ela repetia, o que eu fiz para ser abandonada?

- Esqueça isso, Marilyn, vamos passar uma borracha nisso tudo, e

voltemos a levar nossa vida de casal, como levávamos antes, o que

acha? Você tem toda razão. Não merecia o que eu fiz, eu fui o tolo

aqui, ao permitir deixar você sofrer como você sofreu.

- Nós vamos, meu amor, ficar juntos por toda a eternidade, isso sou eu

quem te prometo...

- Sim, querida, juntos, por toda a eternidade. Mas, para isso, eu

preciso que você me solte. Precisamos procurar abrigo urgente. Logo o

sol vai nos matar...

Marilyn olhou para o céu. Sim, ele estava chegando.

- Eu vou te soltar, sim, meu amor. Você será livre. Contanto que me

prometa que ficaremos juntos até o fim dos tempos.

- Sim, sim, eu prometo, mas ande rápido, solte-me, pois já estou

sentindo o incômodo em minha pele.

Marilyn soltou as correntes. No entanto, agarrou-o em seus braços.

Sean sentia-se fraco, e não conseguia sequer se mover adequadamente.

- O que fez comigo, Marilyn?

- Sangue... dei à você sangue de alguém que estava sob o efeito do

ópio, meu amor. Como eu disse, eu não ia deixá-lo ir tão facilmente...

Eu não confio mais em você... Beije-me, e sele nossa união pela

eternidade...

A vampiro encostou seus lábios nos lábios do rapaz de aparência jovem

e saudável, logo depois de cortar sua língua e deixar seu sangue

escorrer entre os dentes. Do beijo, faíscas saíram, e eles se tornaram

cinzas, cinzas que se misturaram com o vento, tornando-se um só...


FIM

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