TEMPESTADE DE FEITICEIRA

TEMPESTADE DE FEITICEIRA

Autora: ANDREIA SANTOS






Tempestade de Feiticeira



Não conseguia ver o caminho. Por mais que tentasse não conseguia distinguir nada à sua volta! Maldita hora em que decidiu deixar a lanterna em casa.. alias, maldita hora em que tinha concordado com aquela ideia estapafúrdia!

Tudo tinha começado ao jantar. Depois de uns copos a mais o Dinis tinha-se lembrado de jogarem ao jogo “verdade e consequência”, que tinha levado a partidas hilariantes, ate que alguém se tinha lembrado de lhe perguntar se ainda gostava da Laura. Recusava-se a falar sobre isso, tentava nem se lembrar que ela existia... o que era difícil quando chegava a casa todas as noites e cheirava o perfume dela na almofada. Escolheu a consequência e o Tiago lembrou-se de o mandar ao cemitério que ficava ao lado da casa do Dinis, tinha de trazer uma flor de uma campa. Ao tropeçar pela milionésima vez pensou que talvez deve-se ter escolhido a verdade.

Quando conseguiu sair do denso arvoredo que separava a casa do pequeno cemitério a luz da lua deixou-lhe ver finalmente o caminho. Pareceu-lhe anormalmente brilhante, como se alguém tivesse perdido largas horas do seu tempo a limpar cuidadosamente cada pedra de mármore do largo carreiro.

Como já não precisava de olhar atentamente para onde punha os pés, caminhava mais desconfiadamente. Vieram-lhe à memória as histórias que a avó lhe contava quando era criança, foi como se ouvisse a voz sussurrante da avó a dizer-lhe ao ouvido: numa noite de lua cheia, se roubares uma flor de um defunto a guardiã das portas do inferno virá. Ri-se baixinho, esperava que a tal guardiã fosse jeitosa pelo menos!

Começou a ver os contornos escuros das grandes pedras tumulares, e mais uma vez parecia que alguém as tinha esfregado até brilharem na escuridão com um tom fantasmagórico. Não pela primeira vez perguntou-se quem se daria ao trabalho. Tanto quanto sabia aquele era um cemitério que já não era utilizado há muito tempo; ali só estavam os pobres homens do mar que tinham parecido nas ondas ate 1870, depois disso todas as famílias tinham de ir para o cemitério municipal. Ao lembrar-se disso reparou noutra coisa: todas as campas tinham flores, flores frescas por sinal. Era de esperar que devido à falta de uso não existissem quaisquer oferendas aos defuntos, aliás devia ser por isso mesmo que o Tiago lhe tinha proposto a mórbida tarefa. Mas era possível ver em cada uma das campas ramos de flores silvestres frescas, cujas pétalas e folhas se agitavam levemente ao sabor da brisa nocturna como se o saudassem ou como se o instigassem a dar meia volta e voltar para trás. Esperava que fosse a primeira opção.

Depois de algum tempo a serpentear por entre as antigas pedras tumulares quebradas pelo tempo, deparou-se com uma que lhe chamou à atenção: não podia dizer que era uma pedra tumular, era antes uma estátua, em tamanho real de uma mulher de tal forma detalhada que por momentos julgou a veria suspirar.

Estava de pé, usava um longo vestido, onde o artista teve o cuidado de talhar todas as pregas e rugas que um vestido feminino tinha na realidade, o que conferia a ilusão de o vestido estar a ser agitado pela brisa de meia-noite como as flores que repousavam a seus pés; os longos cabelos caiam-lhe pelas costas e o rosto estava voltado para as estrelas, os olhos fitavam o infinito e os lábios retraíam-se ao formar um pequeno sorriso de cumplicidade, como se a dama estivesse a partilhar um segredo com as estrelas do céu; as mãos estavam afastadas no corpo viradas para cima como se estivesse eternamente à espera do abraço de um amante que nunca chegou.

A segunda coisa que lhe chamou a atenção foram as flores aos pés da estátua: não eram flores de campo como as restantes, eram orquídeas. Um enorme ramo de orquídeas negras raiadas de vermelho escuro. Nunca tinha visto flores daquelas!

Mas que raio! Quem havia de gastar um dinheirão com orquídeas negras para pôr numa campa que pelo que podia ver era de 1658?

Já tinha ouvido falar de apego pelos defuntos mas isto parecia-lhe um cadinho demais!

Bem, ao menos já tinha uma flor para levar, uma florzita do campo podiam dizer que tinha apanhado pelo caminho, agora uma orquídea devia comprovar que tinha conseguido cumprir a tarefa.

Baixou-se e tirou um grande cale em cuja extremidade pendia uma enorme flor, que por momentos pareceu reflectir aquele brilho fantasmagórico da luz da lua. Quando puxou a flor a fita carmim que compunha o ramo desatou-se e as restantes flores caíram espalhadas aos pés da estatua. Ao levantar-se teve a sensação que o vestido da dama tinha dançado com o vento. Uma tontura, a pedra não mexe.

Ao fitar de novo a dama pediu-lhe desculpas e já estava a rodar sobre si mesmo para voltar pelo mesmo caminho quando estranhou qualquer coisa, os braços da estatua já não estavam afastados no corpo mas sim caídos junto ao corpo. O pensamento fê-lo sorrir, devia estar a fazer confusão com outra escultura parecida.

Já estava a voltar para trás quando um barulho o fez parar, parecia o som de uma porta velha a fechar. Olhou para trás, mas não conseguiu entender de onde tinha vindo o som. Encolheu os ombros com uma sensação de que algo estava mal mas resolvido a voltar para casa. O som fez-se ouvir, desta vez mais alto ou então mais perto. Voltou-se de repente na esperança de surpreender o que quer que estivesse a fazer o tal barulho mas quem ia caindo para trás com a surpresa foi ele: desta vez não tinha desculpas, tanto que viu a estatua a mexer que ela já não estava lá. Durante segundos intermináveis (ou assim pareceu) não conseguiu pensar em nada, não se conseguiu mexer, logo a sua mente começou a trabalhar a 100km/h para arranjar uma justificação para o que tinha acabado de ver. Era uma partida! Sim! Era isso! Aqueles estúpidos tinham pago a uma daquelas saltimbancos que ficam na baixa a fingir que são estatuas em troca de dinheiro. Era isso mesmo!! Como é não viu logo?? O realismo da roupa, da expressão de felicidade maquiavélica! Claro que lhe parecia que ela ia suspirar a qualquer momento! Tornou a encaminhar-se para a saída, de maxilares cerrados, treinando tudo o que ia dizer aqueles parvos que diziam ser seus amigos.

Ia tão embrenhado na sua raiva que só reparou que não estava lá nenhum portão quando alcançou o sitio onde este devia estar. Olhou em redor pensando que se tinha enganado mas a lua parecia que se tinha escondido e a única coisa que ele conseguia ver eram os contornos e as sombras das pedras tumulares e dos altos ciprestes que rompiam a terra de tempo a tempo. Olhou para baixo e viu que o carreiro continua ali, a brilhar àluz de uma lua que agora, tapada pelas nuvens escuras não existia. Pela segunda vez naquela noite a voz da avo sou-lhe aos ouvidos: o primeiro sinal de que ela chegou é a tempestade de feiticeira... Tornou a levantar os olhos para as nuvens de uma tonalidade preta-azulada que tapavam a lua. Tempestade de Feiticeira.

De novo o som, desta vez de algo a arranhar uma porta, e desta vez não teve qualquer duvida, o som estava mais perto.

Olhou freneticamente para todos os lados sem conseguir distinguir nada na escuridão. Começou a andar mais depressa para o centro do pequeno cemitério, onde o terreno sofria uma pequena elevação, com o propósito de conseguir ver do cimo o maldito portão enferrujado da saída. Começou a ouvir passos mas quando olhava para trás o caminho de mármore estava deserto. Recomeçou a andar tão depressa que por fim já estava a correr em direcção à estranha campa das orquídeas negras. Quando lá chegou notou que transpirava e que a sua respiração estava descontrolada. Controla-te homem! Disse de si para si. Controla-te, não te deixes levar pela imaginação, é isso que aqueles paspalhos querem.

Ao chegar à pequena elevação as flores continuavam espalhadas pela base de pedra mas da maldita saltimbancos nem sinal. Olhou em volta, demasiado ansioso para alguém que dizia estar perfeitamente calmo. Até onde a sua visão conseguia alcançar só via o muro à volta do cemitério, não conseguia ver qualquer abertura. O coração começou a bater mais rapidamente, respirou fundo. Concentrou-se no caminho de pedras brancas; parecia serpentear por entre os túmulos degradados até que finalmente viu um troço que se afastava das campas. Era por ali que tinha se seguir. Encaminhou-se naquele sentido, muito mais calmo agora, quando a voz da infância à muito esquecida lhe voltou a sussurrar: quando a tempestade desaparecer é hora de morrer... As nuvens destaparam a enorme lua prateada e ele viu- a...se mais tarde lhe perguntassem ele não saberia dizer se a viu ou se a ouviu primeiro...

Vinha na sua direcção a subir o carreiro de pedras brancas que agora parecia brilhar mais no meio da escuridão que bruxuleava à volta dela. Era branca como o mármore mais puro, o vestido longo era da cor da meia-noite e deixava-lhe os ombros marmóreos de fora. O cabelo liso e da cor da asa de um corvo caia-lhe pelas costas até alcançar a cintura. Os lábios carnudos de um vermelho profundo. Trazia uma orquídea negra na mão, e cantava. Cantava uma melodia de tempos imemoriais, o som da criação do mundo, um som que o deixou com os cabelos da nuca arrepiados de terror.

Podia continuar a pensar que era uma mulher, uma partida dos amigos até a fitar nos olhos. Não eram negros, simplesmente não tinham cor, eram o nada.

Incapaz de se mexer viu-a avançar na sua direcção até parar a escassos metros. Parou de cantar, e olhou-o nos olhos. O mesmo sorriso cúmplice apareceu-lhe nos lábios pouco a pouco à medida que o fitava, os olhos vazios pareciam brilhar de antecipação e por momentos ele era capaz de jurar que viu relâmpagos vermelhos no meio das trevas daquele olhar.

Quando falou foi como se o vento do norte tivesse chegado mais cedo, gelando-o ate aos ossos:

Que queres mortal? Porque me chamas e depois foges?

Eu não chamei ninguém!

Claro que chamaste! Chamaste quando rompeste o ramo de flores na minha campa....

As ultimas palavras confundiram-se com a brisa nocturna da noite

Eu devolvo a flor! Não a quero! Era só uma brincadeira estúpida- disse ele recuando, fazendo intenções de se afastar dela o mais possível. A feiticeira moveu-se tão depressa que ele não a viu. De repente não se conseguia mover de novo e ela estava ali, parada tão perto que conseguia ver os seus cabelos a agitarem-se com a sua respiração.

A eternidade é tão solitária - as palavras foram-lhe sussurradas ao ouvido, sentiu a pele arrepiar-se devido ao hálito gelado como a morte.

Há tanto tempo que esperava por alguém.....

Sentiu-a a afastar-se de si e por breves instantes pensou que estava a salvo, mas então ela surgiu à sua frente. A ultima coisa que viu foram as profundas trevas de um olhar que se tornou cada vez mais vermelho.....



Algures no meio do denso arvoredo, na escuridão que a luz da grande lua não conseguia penetrar, cinco homens gritavam por um sexto de nome Miguel. Gritavam há horas mas a única resposta era o som do vento a passar por entre trocos retorcidos e o resfolgar das folhas....



Não muito longe dali as pétalas de um perfeito ramo de orquídeas preso por uma larga fita vermelha agitavam-se á brisa nocturna, aos pés de uma singular estatua.

O artista conseguira captar ate ao mínimo detalhe o abraço de um casal apaixonado.

FIM

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