AQUELES QUE VIERAM COM AS NÉVOAS

AQUELES QUE VIERAM COM AS NÉVOAS

Autor: ROGÉRIO SILVÉRIO DE FARIAS



AQUELES QUE VIERAM COM AS NÉVOAS

Por Rogério Silvério de Farias

Prelúdio

Foi naquela estranha e quase desconhecida cidadezinha que tudo aconteceu, se é que realmente aconteceu, pois tudo, às vezes, ainda parece um tanto estranho e nebuloso como um sonho infernal ou um misto de alucinação e delírio a quem, sem perder a sanidade mental, ouviu tudo dos lábios do próprio protagonista da história, um certo jovem do tipo esquisitão, chamado Pandolfo Bombarda. Por isso é que sei de tudo o que aconteceu. Eu o encontrei, certa vez, perambulando nas fantásticas ruínas de Machu Picchu, no Peru, e dele ouvi tudo. Ele estava lá, o tal Pandolfo Bombarda, sozinho, “em pesquisa esotérica’’, segundo me segredou. Falei-lhe então que era escritor e estava ansioso para elaborar uma obra diferente, algo original e que despertasse interesse das editoras, dos leitores e da crítica.

Simpatizando comigo, ele logo se pôs a contar-me tudo, num relato fantástico e assombroso, e, no final, como que por encanto, num momento de distração minha, simplesmente sumiu de minha vista, e nunca mais o vi, desde então. Cheguei a pensar que tinha conversado com um espectro ou algo parecido, mas duvido disso, pois ele estava vivo, muito vivo diante de meus olhos. Se foi uma alucinação ou sonho, devo estar enlouquecendo, e tenho, com certeza, de criar um pingo de juízo nesta minha cabeça sonhadora e parar de contar essas minhas histórias estranhas e apavorantes e arranjar um emprego normal. Sabem, minha família não me agüenta mais, na verdade; digo para ela que um escritor precisa viajar, conhecer pessoas, de preferência bem estranhas, antes de escrever um livro de sucesso , alcançar a fama e ganhar muito dinheiro. Minha família continua achando que sou apenas um inútil que gosta de escrevinhar coisas fantásticas, um mentiroso exagerado que escreve razoavelmente bem. Não ligo para minha família; um dia ela me compreenderá, um belo dia, quando eu fizer sucesso como autor, ela simplesmente cairá aos meus pés, rendendo suas homenagens e salamaleques...

Trata-se, sem dúvida, de uma história inacreditável, fantástica e horripilante, a que vou contar, e se aconteceu de fato, não ficou registrado nos anais do país e nem nas páginas dos periódicos, talvez por ser inverossímil demais, insano demais, herético demais. É provável que o misterioso Pandolfo Bombarda a tenha contado somente a mim, portanto...

Aquela cidadezinha provavelmente tinha sido até então um povoado pacato e ordeiro. Mas de repente tudo mudara, e a cidade transformara-se num pandemônio diabólico de horror e morte brutal.

A cidadezinha em questão chamava-se Brumália, e situava-se num profundo e verdejante vale, oculto entre morros, e era cortada por um rio de águas escuras.

Que este lugar de natureza edênica se transformasse num inferno de violência e matança tão subitamente, era coisa para poucos compreenderem. Há mistérios no universo que, por mais curiosidade que despertem em nós, tolos mortais, causa-nos um assombro nascido da consciência da ignorância humana; talvez precisem ser deixados mofando nas covas do esquecimento, para que não tragam ao mundo, já tão combalido pelos horrores criados pelo próprio ser humano, a luz terrível da verdade espiritual, uma verdade que, sob certos aspectos, talvez seja algo muito pior que a nossa atual estupidez no que concerne às coisas do espírito.

Há quem diga que Brumália nunca existiu. Há quem diga que seja uma cidade onírica, de sonho...ou pesadelo, ou reino negro criado pela alucinação de um escritor delirante como eu. Há quem diga que seja uma cidade tão estranha e antiga, que talvez só possa ser encontrada nos mapas da geografia da loucura profunda e irreversível.

Brumália talvez fosse tão pequena, tão pequena que não passasse de um minúsculo ponto perdido nos mapas. Um pontinho que bem podia ser confundido com o excremento de uma mosca inoportuna.

Talvez poucos ou quase ninguém que tenha o seu juízo perfeito saiba de sua localização.

Tenho uma mente aberta e estou livre para aceitar qualquer hipótese. Não, não sou louco e nem tampouco idiota. E sei que uma mente que não esteja preparada para aventar qualquer conjectura extraordinária é uma mente tacanha e ortodoxa demais.

A verdade é que os que para Brumália se dirigiram nunca mais foram os mesmos. Ou morreram ou fugiram completamente enlouquecidos ou espavoridos. Outros ainda se tornaram místicos, eremitas ou ascetas. Assim contou-me Bombarda.

Vai ser difícil contar esta história sem correr o risco de enlouquecer de vez o leitor. Mas eu preciso contar, senão eu é quem irei enlouquecer. Ouvi meus parentes murmurando, planejando internar-me num manicômio, caso eu não cesse com esses meus sonhos de tornar-me um escritor de histórias de horror.


1

A história propriamente dita começa aqui. Portanto, respirem fundo e estejam preparados para as coisas extraordinariamente assustadoras que eu vou contar!

Erasmo Silva e Amanda Zim, dois da tríade de jovens protagonistas desta aventura horripilante, eram jovens acadêmicos da Universidade Estadual de Sargácia. Sargácia, não sei se já ouviram falar, é uma cidade costeira, próspera, ordeira e sobretudo estranha. Fica perto da não menos estranha Maremontes, onde coisas fantásticas também andam acontecendo. Logo, numa outra oportunidade, escreverei sobre os horrores que tem acontecido na estranha Maremontes...

Aquele final de semana chegara, e com ele a incoercível vontade de cair na estrada em busca de liberdade e divertimento, de fuga da realidade prosaica das grandes cidades amortalhadas por um modo de viver esdrúxulo.

O mirífico crepúsculo avermelhava o horizonte, manchando de sombras a região praticamente deserta ao sul de Sargácia.

A estrada seguia para aquele horizonte de cores alucinantes, que mais parecia um grande portal separando mundos, uma entrada para uma outra dimensão ou universo paralelo fantástico.

Pouco a pouco uma estranha névoa começava a envolver tudo. Era uma névoa assustadora que parecia ter emigrado dos jardins outoniços dos confins lá das terras negras da demência. Sim, há molduras que estragam uma pintura, e aquelas névoas eram como molduras infernais que tornavam a paisagem ainda mais estranha e sinistra.

Até que chegassem onde a estrada formava uma bifurcação, eles – Amanda e Erasmo - continuariam rindo, animados. Ririam quase o tempo todo como hienas bêbadas, achando graça de tudo, até mesmo do absurdo da condição humana.

Claro, vez por outra ficavam sérios, entregues a um mutismo deprimente. Os jovens são assim mesmo. De repente uma onda de tédio varre suas almas, deixando-os náufragos em suas solidões, à mercê de uma maré de melancolia. E vem-lhes então a certeza de que logo também serão adultos, novas peças das grandes e diabólicas engrenagens da sociedade. Sabem que mais cedo ou mais tarde serão avidamente mastigados e engolidos vivos pela bocarra de um monstro asqueroso e demoníaco chamado Estado, monstro que serve a um único deus: Mammom!

Por fim Amanda e Erasmo chegaram a bifurcação. De um lado, uma placa com os seguintes dizeres: “Praias”; do outro lado, uma velha e carcomida tabuleta dizendo: “Bem-vindos a Brumália, a Cidade dos seus Sonhos”.

A névoa agora se fazia mais intensa e fria, circundando a cidade como uma muralha infernal de lácteo e sinistro aspecto. Amanda comentou que a tabuleta devia ser mudada para: Brumália, a Cidade das Névoas.

O jipe em que os dois estavam varou a cerração rumo a cidadezinha. Alguns instantes se passaram, até que um grande, negro e agourento corvo pousou sobre a tabuleta, crocitando com enorme estardalhaço.

Sons ásperos e graves foram emitidos pelo pássaro, imitando incrivelmente a voz humana, e formando frases estranhas e ameaçadoras:

Todos irão morrer, um por um!...Todos queimarão nas chamas do inferno!...Brumália é um matadouro, agora!...Cuidado com aqueles que vieram com as névoas! O terror impera nesta cidade de condenados!...

Mas ninguém estava mais ali para ouvir o sinistro pássaro. Logo o pássaro negro e nefasto alçou vôo, executando acrobacias nervosas, seguindo do alto o jipe que já entrara em Brumália, a cidade das névoas.

O jovem casal entrara em Brumália porque precisava comprar bebidas, além de reabastecer o tanque de combustível do carro.

Na margem esquerda da estrada corria um riacho de águas escuras, enquanto que na margem direita havia várias casas abandonadas.

Mas seria uma cidade abandonada, aquela? Seria uma cidade-fantasma imersa em sombras de pesadelos e névoas eternas?

O fato é que quase tudo ali estava em ruínas, tudo tomado pela vegetação, imerso em abandono e esquecimento.

Que mistérios insondáveis encerrava aquele lugar medonho, afinal?

Pouco a pouco o lugarejo ia cedendo lugar a uma região de mata ainda mais fechada. A estranha névoa continuava dando um aspecto fantasmagórico ao lugar.

Com o canto dos olhos, Amanda pareceu ver três vultos em meio às névoas. Eles eram calvos, macilentos e de estatura elevada. Tinham os olhos azuis e flamejantes. Frontes amplas que denotavam alta intelectualidade. Trajavam estranhas roupas que mais pareciam túnicas brancas. Enfim, tinham uma aparência, além de religiosa, bizarra e draconiana.

- Você viu aquilo, Erasmo? – Amanda indagou ao namorado, que ia dirigindo.

- Vi o quê?

- Aqueles três sujeitos esquisitos na beira da estrada.

- Não vi nada. Está vendo coisas?

- Acho que deve ter sido um reflexo ou algo parecido...

- Ou talvez mendigos e andarilhos zanzando por aí. Nesta droga de país, o que não falta é miserável, Amanda. Compreenda isso.

Logo Erasmo e Amanda, aqueles dois jovens de dezenove anos, já estavam acampados, ali, bem atrás do vasto, alto e sombrio milharal, rente a uma cerca de arame farpado enferrujado que guardava a plantação, e ao lado de uma pequena, porém não menos sombria mata.

O pio de uma coruja anunciou o fim do crepúsculo e o reinado da noite naquela região enevoada e lúgubre.

Agora um vento fraco e frio, pouco mais que uma brisa, soprava fazendo rodopiar as névoas, balançando as folhas do milharal com seu ruído que mais parecia uma bulha de pequenas e estranhas criaturas invisíveis que vagam e dançam na solidão cruel da noite.

Dentro da barraca que armaram, Erasmo e Amanda namoravam indiferentes a tudo.

O ruído das folhas do milharal açoitadas pelo vento da noite. Outros ruídos. Seriam animais ou aves noctívagas? Ou seriam os espíritos e os demônios folgazões que erram pela sombria noite?...

Parecia haver alguma coisa no milharal, algo ou alguém oculto, observando aqueles dois jovens, esperando, esperando com uma paciência terrivelmente diabólica. Alguém que ouvira os arrulhos incontidos do casal de derriços. Alguém que fora averiguar quem estava ali, profanando aquele verdadeiro santuário do medo. Quem era aquele que, como um fantasma, vagava no milharal, entre as névoas rodopiantes?...

A fogueira ao lado da barraca projetava bruxuleante luz na lona, desenhando a silhueta dos corpos entrelaçados do casal de jovens namorados na lenta e lasciva coreografia da paixão.

Quem quer que fosse que estivesse ali, do outro lado da cerca, no milharal sinistro, de repente sentiu que havia um outro alguém, bem perto de si. Logo uma miadura terrível estraçalhou o silêncio da noite. Seguiu-se outro miado. E depois um grito de ódio, de raiva, o grito daquele que vagava nas sombras do milharal, entre as névoas.

Erasmo e Amanda, seminus, sobressaltaram-se.

Então os dois foram averiguar. Erasmo com uma lanterna.

Que grito insano fora aquele que viera depois dos miados assustadores? Que grito de ódio fora aquele que retumbou nas trevas, cortando, lacerando cruelmente a quietude sepulcral da noite como uma foice sonora dos infernos?

Erasmo e Amanda pularam a cerca de arame farpado enferrujado, a curiosidade sobrepujando o medo.

Cena aterrorizante descortinou-se ante os dois jovens ao afastarem as folhas dos pés de milho.

Numa pequena clareira do vasto e alto milharal um homem estranho matava furiosamente, com um machado, um gato preto que certamente passara por ali, atrapalhando seu caminho na noite agourenta, iluminada agora por uma lua cheia exangue que lutava no céu com nuvens pardacentas e na terra com as névoas infernais para derramar seu luar maldito.

A machadada no felino decepou-lhe impiedosamente a cabeça. Dos olhos daquele estranho e horrendo homem pareciam emanar áscuas infernais de loucura ou algo mais terrível. E ele segurou o rabo do felino decapitado, erguendo-o como se fosse um troféu de morte e insanidade, e depois bebeu o sangue do animal que escorria e pingava diretamente no interior de sua horrenda boca de lábios leporinos.

Aquele homem era um tipo que ultrapassava o bizarro. Era feio como o pecado; os lábios leporinos eram exageradamente horríveis. Sua barba estava por fazer. Tinha óculos de lentes grossas, do tipo fundo de garrafa, como dizem os mais cruéis e sardônicos. Trajava uma calça jeans desbotada, suja, rasgada. Um chapéu de palha amarelo e de abas largas coroava-lhe a cabeça grande e raspada como se fosse uma coroa de feiúra. Seus dentes eram amarelos, tortos, horrivelmente cariados. Seu hálito era pior que o fedor de uma tumba antiga aberta. Uma nuvem de algo pior que a insanidade parecia nublar seu semblante, sem dúvida. Seu ódio acentuava nos olhos algo como o reflexo da invisível lua malsã da demência; eles brilhavam, brilhavam estranhamente, queimando, queimando em misteriosos e infernais fogos, brilhavam meio que esgazeados, como os de alguém que estivesse possuído por um demônio!...

Em murmúrios de louco, para a noite ouvir, dizia-se chamar Sideraldo, e seus pensamentos pareciam ser compartilhados com alguém ou alguma coisa que vivia numa espécie de simbiose com sua pobre e condenada alma, como se fosse um alter-ego ou encosto dentro de si.

Amanda e Erasmo não perderam tempo. Fugiram. Nem sequer desarmaram a barraca, tão amedrontados estavam.

Que se danasse aquela cidadezinha fantasmagórica, aquele lugar de pesadelo, de medo fantástico.

Alcançaram o jipe e, com muita dificuldade devido ao cansaço, conseguiram o caminho de volta para casa, como que por milagre ou sorte, talvez, já que a cerração estava mais densa, mais infernal, mar branco de mistérios e assombros negros.


II


Era o intervalo na aula da faculdade, agora. Ali, no campus da Universidade Estadual de Sargácia, num banquinho à sombra de uma centenária figueira, Erasmo e Amanda conversavam com Pandolfo Bombarda, um de seus melhores colegas. Na verdade, era o melhor amigo do jovem casal de namorados.

Os dois contavam ao amigo que tinha sido um golpe de sorte acharem o caminho de volta, fugindo daquela estranha cidadezinha chamada Brumália, que Amanda batizara de A Cidade das Névoas.

Mas como era mesmo esse tal Pandolfo Bombarda? Era alto e esguio. Tinha os cabelos bem longos, lisos e negros, amarrados numa única trança que descia quase a altura da cintura. A face era meio lúrida, quase tanto quanto a de um cadáver recente. O cara era uma mistura de punk e gótico. A tez branca, lívida, contrastava com o negro dos cabelos e com as vestes (calça e jaqueta de couro) que costumeiramente usava. Tinha as sobrancelhas grossas, lembrando as do escritor brasileiro Monteiro Lobato. Quanto a sua personalidade, na maior parte do tempo era um tipo meio introvertido, arredio e soturno. Às vezes, mudava repentinamente e tornava-se loquaz, tornando-se o que poderia ser chamado de um sujeito esquizotímico. Talvez vivesse uma guerra interior tentando vencer a timidez.

Pandolfo Bombarda – ou simplesmente Pan ou então Bomba como chamavam-no Erasmo e Amanda – também trabalhava na agência de detetives particulares especializada em casos insólitos, a qual pertencia a seu tio, um certo celibatário chamado Lupércio Bombarda.

Erasmo e Amanda contaram o ocorrido com eles, a pequena, porém assustadora aventura naquele final de semana, naquela estranha cidadezinha.

Pandolfo Bombarda disse-lhes que incrivelmente havia sonhado com eles, com algo parecido com o que ocorrera com eles, mas não conseguia lembrar direito. Seus estranhos sonhos eram normalmente muito nebulosos, difíceis de lembrar.

- Bem, e onde fica essa tal cidadezinha, a tal Brumália? – Bombarda perguntou-lhes, coçando distraidamente o ralo cavanhaque que nascia no queixo.

- Realmente é incrível, amigo, mas a mim parece que Brumália simplesmente fica em lugar nenhum, tamanha a estranheza do lugar. Trata-se de um lugar bastante afastado da estrada principal. E creio que muito pouca gente tem visitado aquela região... – falou Erasmo, meio confuso.

- Explique melhor a coisa, Erasmo...

- Já disse: foi bem assim: estávamos eu e Amanda indo pra praia, numa boa. Nossa intenção era aproveitar o final de semana, eu, ela e o nosso amor, entendeu?... Avistamos a estrada que se bifurcava, aí lemos a velha tabuleta fincada, dizendo: Bem-vindos a Brumália. Como precisávamos comprar algumas coisas pra gente comer, além de colocarmos mais combustível, entramos na tal cidadezinha bizarra. Havia uma névoa dos diabos, na tal cidade. Depois vimos o louco no milharal matando o gato...

- Compreendo – fez Bombarda, pensativo.

- Olha, Bomba, depois da estranha aventura que passamos, concluí que foi pura sorte a nossa termos saído de lá, sem que o maníaco nos pegasse.

- Foi bem sinistro , Pan – comentou Amanda.

- E não comunicaram nada a Polícia? – quis saber Pandolfo Bombarda.

- Não. Na hora, achamos que não era preciso. Era só um cara esquisitão matando um gato e bebendo o sangue do pobre animal – respondeu Erasmo.

- Pois fizeram bem – comentou Bombarda. Ele fez uma breve pausa, durante a qual seu semblante estampou uma rápida reflexão, depois perguntou: - O que acham de voltar até a tal Brumália, a cidade das névoas?...

- Só se você tivesse coragem de vir conosco... – falou Erasmo.

- Mas é claro. Foi por isso que perguntei. Tenho tido estranhos sonhos ultimamente, e com eles um desejo de aventuras.

- E foi por isso que contamos pra você. Como bom detetive, você descobriria o mistério do louco do milharal, pensamos – disse Erasmo. – Vai ver o tal louco pertence a algum tipo de culto satânico que sacrifica os pobres animais...

- Sabem, o grande objetivo na vida de uma pessoa deve ser experimentar as mais vastas emoções e sensações, senão a vida não tem graça. Vocês sabem que sou um pouco tímido, mas eu procuro assassinar a timidez enfrentando perigos e mistérios – falou Pandolfo Bombarda meio filosoficamente.

- Então fica combinado: iremos nós três, no próximo fim de semana. Mandamos-te um e-mail pra confirmar.

- É isso aí, então. Aventura, amigos! Aventura! – falou Pandolfo Bombarda, rindo e gesticulando a sua maneira meio doida e esquisita. – Além disso, precisamos de material para nossas trabalhos na faculdade. Já posso até ver o título do meu: As Bizarras Realidades do País: Pequenos e Estranhos Povoados Fantasmagóricos Perdidos nos Mapas do Esquecimento e da Loucura!

- Você não acha que o título está muito grande, Pan? – falou Amanda.

Ele cofiou o queixo e começou a rir. E Amanda e Erasmo também fizeram brotar de seus lábios um ramalhete de risos álacres e juvenis.

E no final de semana, lá estavam eles, indo de jipe, um jipe grande, com capota, que alugaram para dois dias. O dinheiro veio de uma vaquinha que fizeram os três. Alugaram um carro bom, forte, com tração nas quatro rodas. É que o velho jipe de Erasmo pifara no estacionamento da faculdade.

Agora já iam pela estrada que logo se bifurcava em dois caminhos distintos. A estrada era tão ruim que parecia a estrada para o inferno.

Onde estes desgraçados do Governo enfiam o maldito dinheiro arrecadado com os impostos escorchantes?, indagava-se Pandolfo Bombarda, em pensamento. E respondia em seguida: Numa conta bancária de um paraíso fiscal, por certo.

- A nossa aventura promete ser bastante arriscada, não acham? – observou Amanda, interrompendo os pensamentos de Pandolfo Bombarda. Estavam todos olhando atentamente a névoa espectral que surgia paulatinamente à frente.

No volante, Erasmo fez que sim com a cabeça.

Pandolfo continuou, com ares de filósofo:

- O medo acaba nos fascinando. Temos medo de determinada coisa, no entanto resolvemos arriscar assim mesmo. Eu penso que foi graças ao medo que o homem saiu da caverna, evoluindo, através deste poderoso fortificante, a coragem. Aliás, medo e coragem se complementam, são faces da mesma moeda, ingredientes do mesmo tônico da alma. O medo é como uma vitamina para o espírito humano, um aguilhão que o faz avançar; evoluir é a mola propulsora do espírito humano. O medo é como uma droga poderosa. Quanto mais sentimos seus efeitos, no fundo mais queremos senti-lo. Sim, o que estou dizendo pode parecer vários disparates de uma filosofice, mas não é. Gostamos de ter medo, no fundo. Pode acreditar...

- Assim falou o grande filósofo da meia-noite, Pandolfo Bombarda – riu Erasmo, tamborilando no volante com os dedos.

Todos riram. Depois Erasmo falou assim:

- De certa forma você não deixa de ter razão, meu bom amigo. O mistério de um lunático que mata gatos num milharal de uma cidade esquisita e coberta de névoas talvez seja o prelúdio de uma grande aventura...

- Olhem! Eis a tabuleta de que me falaram! – disse Bombarda, apontando com o queixo a placa fincada na beira da estrada.

Erasmo falou:

- Vamos em frente, depois pegamos os caiaques presos no bagageiro. Iremos remando pelo riacho que costeia a estrada de Brumália, assim não seremos percebidos por ninguém. Se estiver muito escuro à nossa frente, iluminaremos com a lanterna, embora eu ache que não vai precisar, pois hoje é noite de lua cheia, e, além disso, apesar da névoa, o lusco-fusco ainda mostra-se bem claro, como podem observar.

Eles iam numa certa velocidade. As névoas já começavam a se adensar rapidamente.

Amanda recordou dos três estranhos que ela vira na noite em que estivera acampando com Erasmo. Teria sido imaginação? Será que os três estranhos, o lunático no milharal matando o gato, a cidade misteriosa envolta em névoas, tudo, enfim, não teria sido fruto de algumas doses de LSD, por exemplo? Talvez eles tivessem tomado a droga sintética e nem se lembrassem disso. Ou talvez fosse um efeito flash back, de uma dose que tomaram no passado...

De repente um vulto ligeiro e assustador atravessou na frente do carro, iluminado rapidamente pelo farol.

Erasmo não teve tempo de frear, de modo que atropelou violentamente a pessoa, que foi projetada mais ou menos a três metros de distância.

- Mas que droga! – vociferou Erasmo.

- Oh, meu Deus! – gritou Amanda, assustada. – Atropelamos alguém!

Erasmo preparava-se para sair do jipe quando o vulto que fora atropelado surgiu repentinamente rente ao pára-brisa do carro como um fantasma estropiado. O homem encostou o rosto no vidro, apertando-o sobre o mesmo, distorcendo horrivelmente seu rosto. Ele era um sujeito todo esfarrapado, molambento. Claudicava. Estava cheio de hematomas no rosto. E gemia de dor. Sua barba por fazer, seus cabelos despenteados, os olhos exprimindo uma espécie de paranóia irreprimível acentuavam-lhe o aspecto de farrapo humano.

Ofegante, o estranho sujeito falou assim:

- Fujam! Fujam de Brumália, a cidade que Deus esqueceu! Fujam o quanto antes, pois o inferno se instalou aqui de vez! Talvez não haja mais salvação para o gênero humano, talvez não haja mais escapatória pra ninguém! Fujam, pelo amor de Deus! É a loucura e a devastação do horror em Brumália! É a morte alastrando-se horrendamente por todos os cantos da cidade!...Salvem suas almas enquanto há tempo, irmãos!...

O pobre homem começou a se afastar, manquitolando ainda mais. Seus passos trôpegos assemelhavam-se aos de um zumbi, um morto-vivo.

- Do que está falando, homem? – indagou Erasmo. – Você está bem? Não se machucou gravemente?...

- Oh! Eu estou bem, pelo menos enquanto eles não me pegarem. Não ligo pros ferimentos do meu corpo. Minha alma é mais importante. E eu quero salvá-la do inferno em vida. Minha mente está meio confusa, eu sei. Eu estava procurando o meu pássaro de estimação, um corvo bem falante ao qual pus o nome de Cega-rega. Talvez ele me ajudasse a encontrar a sacristia, voando até lá. Escutem-me: já que estão aqui, procurem a sacristia da igreja de Brumália – falou o homem, parando um pouco de andar. – Procurem um livro antigo, o lendário e chocante Chartapaciu Infernale!... O padre de Brumália pediu-me que eu o encontrasse, porém eu não pude achá-lo, pois aqueles que vieram com as névoas me torturaram muito e então minha mente ficou confusa e meu corpo cansado. Tive de fugir para não ter um destino pior que a morte, compreendam-me. Além disso, além de me pedir para encontrar o livro, o padre pediu que eu o matasse, mas não tive coragem para isso, pois sou um homem temente a Deus...

- Quem é você, afinal? E que história mais doida é essa? – quis saber Erasmo, já um tanto irritado.

- Meu nome é Eliphas Zandograt. Eu era o sacristão da paróquia, antes do inferno se estabelecer aqui em Brumália. Não há muito que dizer, na verdade. Vou embora, preciso fugir, salvar minha pele e minha alma!...Compreendam-me.

- Mas que idiotice é essa, afinal? – perguntou Pandolfo Bombarda – Do que diabos está falando?...

- Não posso explicar mais nada, pois não há tempo pra isso. Eles estão em meu encalço, eu sei. Se me pegarem, provavelmente vão cortar a minha cabeça e servi-la numa bandeja numa ágape macabra. Consegui fugir daquele porão onde eles haviam me encerrado com o padre, que só não fugiu comigo porque, além de sua idade avançada, estava com as pernas e os braços quebrados. Durante minha fuga, eles me alcançaram e me pegaram. Depois, me bateram muito. Zombeteiros , disseram que era pra amaciar a minha carne, deixá-la mais tenra. Até os malditos porcos do chiqueiro, mentalmente controlados por eles, me morderam. Por isso tenho que fugir deles. Aqueles malditos não vão devorar meu corpo e empurrar minha alma para os abismos do inferno! Contudo, irmãos na fé, o Todo-Poderoso não permitirá isso!...Deus é pai!Deus seja louvado!...

Eliphas já ia adiante, porém Bombarda ainda gritou-lhe, tentando saber mais. Mas o mesmo não lhe respondeu.

- O senhor me desculpe, mas tudo isso me parece fantástico demais. Não seria algum pesadelo que o senhor teve? – quis saber Amanda.

- Não, nada disso! É que a realidade, aqui, em Brumália, é mais espantosa do que um pesadelo. Aconteceram e ainda acontecem coisas estranhas e terríveis nesta cidade excomungada. Mas minha cabeça agora dói muito, minha mente está um pouco perturbada pelas horríveis torturas que sofri nas mãos dos malditos, de modo que não consigo mais lembrar onde fica a igreja e a sacristia. Então acho que vocês a encontrarão, antes que eles acabem com todos nós. Lembrem-se: encontrem o terrível Chartapaciu Infernale! Nas páginas deste livro terrível vocês encontrarão um jeito de acabar com eles, os que vieram com as névoas!

E então disparou em desabalada carreira, claudicando, trôpego, perdendo-se nas sombras que o crepúsculo pintava com sinistra arte.

Dentro do jipe, os três se entreolharam, atônitos e boquiabertos.

- Louco! Só poder ser – conjecturou Erasmo, olhando para Amanda e Bombarda. – Deve ter lido muito Lovecraft ou Stephen King pra ficar assim deste jeito...

- Ainda não sabemos se de fato ele é louco, Erasmo. Pode ser que ele seja algum bêbado alucinado, mas não podemos ser tão precipitados assim... – falou Bombarda, ponderado.

- Rapazes, agora estou começando a ficar com medo – disse Amanda, engolindo em seco, os olhos arregalados. – Acho que devemos voltar pra Sargácia.

- Pois eu digo que não – falou Bombarda, decidido. – Devemos continuar e decifrar o enigma desta estranha cidade que o mundo esqueceu...

- Aquele tal de Eliphas não deve ter se machucado muito com o atropelamento, pois saiu em disparada como se estivesse fugindo do próprio Diabo! – disse Erasmo. – Querem saber de uma coisa? É bem provável que aquele doido varrido estava com pressa era de achar um bar aberto pra tomar umas doses de caninha. Toda a assombrosa história que ele nos contou talvez não passe de um delirium tremens que ele teve!...

Eles não puderam deixar de rir divertidamente.

- Talvez você tenha razão, Erasmo – disse Bombarda.

Amanda perguntou:

- Pan, você não acha que o tal Eliphas tem alguma ligação com o tal louco do milharal que nós vimos na noite em que eu e Erasmo estivemos por aqui?...

- Talvez sim, talvez não – disse Pandolfo Bombarda. – É muito difícil de afirmar. Com certeza, trata-se de um mistério realmente irritante, não acham?

- Querem saber? Acho que só tem loucos nesta cidade esquisita – disse Erasmo.

- Todas as cidades abrigam loucos, meu bom amigo Erasmo! E todas são esquisitas! – disse Bombarda. – Nas cidades esquisitas há loucos de todo tipo. Loucos como nós, que resolvemos investigar os mistérios deste lugar... E digo mais: o mundo todo é um grande hospício.

- Depois que a gente se formar, provavelmente teremos uma vasta clientela como psicólogos, não acham? – disse Amanda.

E todos riram outra vez. E era um riso que procurava abafar um certo receio de estarem num lugar bizarro como aquele, imerso em névoas que ocultavam mistérios e horrores além da compreensão e da sanidade humanas.

Veio então a noite. Lua cheia cintilando no alto do céu. Claridade precária. Névoas frias rodopiando no ar como fantasmas de bailarinas loucas. Silêncio tumular no milharal, quebrado vez por outra por um pio aziago de uma coruja encarapitada no alto do mourão meio apodrecido da cerca de arame farpado enferrujado. Pirilampos acendendo e apagando nas trevas como pequenos sinais de anjos liliputianos das sombras resplandecentes. Mistérios pairando no ar. Mistérios, mistérios irritantes. Promessas, promessas de violência, dor e morte.

O jipe estacionou, e os três jovens aventureiros da noite desceram e pegaram os caiaques que trouxeram presos sobre o jipe. Dois caiaques. Um tinha dois lugares: era o de Amanda e Erasmo.

Logo eles já estavam remando pelas águas do riacho, águas escuras e oleosas e que cintilavam ao luar de um modo estranho, nas sombras que emolduravam o sinistro quadro da noite. Além de ser mais divertido e emocionante ir pelo riacho com os caiaques, não chamariam muita atenção com o ruído do motor do jipe, chegando sorrateiramente naquele lugar de mistérios noturnos. Por isso foram de caiaque.

Pararam num ancoradouro natural composto de pequenas pedras semicobertas de um estranho musgo.

O trio de jovens aventureiros da noite desembarcou em terra firme.

- Cuidado pra não escorregar, Amanda – disse Erasmo, ao ver sua namorada quase tropeçando num restolho.

A noite já ia alta. Com a lanterna ligada que Erasmo apanhara do porta-luvas do jipe, logo arrastaram os caiaques, colocando-os por ali, entre arbustos e juncos da margem.

Erasmo iluminou um pequeno caminho à frente, em meio ao mato alto.

- Logo ali adiante fica a cerca de arame farpado. Passaremos pelo lugar onde nós acampamos no último fim-de-semana, atravessando a tal cerca e o milharal alto depois dela.

- Será que tem cachorro na propriedade? – quis saber Bombarda.

- Acho que não, Bomba – disse Erasmo.

- Se houvesse, acho que já teríamos ouvido latidos – comentou Amanda. – E, além disso, Pan, não ouvimos nada, quando eu e Erasmo estivemos aqui, na outra noite.

- De qualquer forma, se houver, tratem de correr de volta pra margem do rio. Se der qualquer coisa errada, pegamos os caiaques e damos o fora desta cidade que mais parece um cemitério nebuloso do inferno.


III




Sideraldo raramente tirava o seu velho chapéu de palha de abas largas. Usava-o como quem usa uma coroa, e seu reinado era o das sombras da noite. O velho machado de lâmina afiada ele não o largava também, de jeito nenhum; era como o seu cetro, o cetro de seu império de carnificina. Magro, bem alto e feio, Sideraldo mais parecia um avejão dos infernos. Com sua voz roufenha, falava sozinho, assim como sua mãe e sua irmã. Diálogos terríveis, esses. Eram como conversas com demônios interiores.

Agora ele estava caminhando escondido no mato que ladeava a picada que passava entre o riacho e o terreno onde ficava a propriedade de sua família, a casa antiga e quase caindo aos pedaços, em cujos fundos havia o milharal e a cerca de arame farpado que separava tudo da mata sinistra e espessa.

Enquanto isso, sua mãe Ambrósia e sua irmã Florbela estavam na velha casa. Estavam conversando naquele momento.

- Mãe?... – perguntou a moça que se dizia chamar Florbela.

- O que é, Florbela? – falou a mulher gorda.

- Cadê ele?

- Ele quem, guria?

- O Sideraldo. Quem mais poderia ser, mãe?

- Ah, sim! O Sid... Ele foi buscar a nossa janta, filha.

E por que o idiota demora tanto, mãe?...





IV


Os três, Amanda Zim, Pandolfo Bombarda e Erasmo Silva atravessavam o milharal, meio agachados, silenciosos, em meio às sombras da noite lúgubre.

- Ilumine ali adiante – Bombarda instruiu em voz baixa, estreitando os olhos, procurando divisar melhor as coisas nas trevas da noite. – Que fedor miserável é esse? Vocês não estão sentindo?...Ah!...Olhe só! É um barraco tosco...

- Parece uma pocilga. Um chiqueiro, sem dúvida; agora posso ver. Mas não vejo sinal de porcos – murmurou Erasmo.

- Sim, realmente é uma pocilga. E aparentemente está vazia, abandonada. E o cheiro é horrível, quase insuportável. Não sabia que chiqueiros fedessem tanto assim – frisou Amanda, também num tom baixo de voz.

- Apague a lanterna um instante, Erasmo – solicitou Bombarda.

- O que houve, Bomba? – perguntou Erasmo num murmúrio.

- Uma casa, logo adiante. Uma velha casa num terreno que lembra uma chácara ou sítio. Mas não está abandonada, pois vejo luzes acesas em seu interior – respondeu Bombarda. – Tem gente morando lá dentro, com certeza.

Pandolfo Bombarda, Erasmo Silva e Amanda Zim subitamente começaram a ouvir grunhidos terríveis que vinham da escuridão ao redor.

- Ouviram? – murmurou Amanda, amedrontada e engolindo em seco. Seus olhos verdes arregalados, cintilando como duas pequenas estrelas de esmeralda na penumbra sinistra da noite enluarada de Brumália.

- Sim – Bombarda falou em tom baixo. – Parecem realmente grunhidos, grunhidos de porcos, pra ser mais exato...

E então, grunhindo bestialmente, como se fossem demônios, eles avançaram sobre os três jovens. De fato, eram grandes e ameaçadores porcos, porém mais pareciam cães de guarda da morada, tamanha a fúria com que atacavam.

Assombrado, terrivelmente assustado, Erasmo correu, tropeçou e caiu. Mesmo caído, conseguiu atirar a lanterna no focinho de um dos horríveis animais que espumavam pela boca como cães raivosos. Com horror, Erasmo pode vê-los melhor: vinham como que possuídos ou insuflados por uma força maligna desconhecida que os tornavam animais furibundos, e os olhos deles estavam amarelos, anormais, ligeira e estranhamente fosforescentes.

Quando um dos furiosos cachaços negros mordeu o tornozelo de Erasmo, da boca do jovem saltou um grito de dor e desespero que esfaqueou a corpo frio e silencioso da noite.

Amanda, por sua vez, gritava de pavor, desesperada, correndo e fugindo.

Já Pandolfo Bombarda, por seu turno, surpreendentemente sacou um revólver calibre trinta e oito de dentro de sua jaqueta e atirou diversas vezes naqueles horrores suínos, matando alguns deles, ferindo outros, os quais fugiram. E enquanto atirava loucamente, desesperadamente, Bombarda gritava ao mesmo tempo com fúria e medo:

- Larguem dele, animais do inferno!

- Meu tornozelo, Bombarda! Está ardendo... ai!...Puta que pariu, dói muito! – Erasmo gemia, o rosto na crispação de uma careta de dor.

- Droga! Pra onde foi Amanda? – falou Bombarda, trêmulo, ora olhando ao redor de si, à procura de sua amiga, ora olhando o tornozelo inchado e sangrando do amigo. – Amanda, cadê você?...

Amanda não respondeu, pois corria desesperadamente, tomada pelo pânico irracional, embrenhando-se milharal adentro como uma desvairada.

Quase sem fôlego e em prantos, estacou subitamente ao deparar-se com um horrível espantalho em meio as névoas. A cabeça do espantalho era simplesmente uma caveira humana, e por sobre esta, pousado solene e sinistramente sobre o velho chapéu de palha, estava Cega-rega, aquele corvo negro como a noite do inferno, proferindo sons agourentos, imitando a palavra humana em profecias de morte na noite de horror. Eis como crocitava a ave negra e sinistra:

Morrer! Todos irão morrer! E o inferno acolherá a todos os desgraçados em mil suplícios!

Amanda gritou de medo, no auge de seu desespero atroz, voltando a correr milharal adentro, fugindo dos horrores de uma noite hedionda e sinistra. Ela sabia que a aventura tinha ido longe demais...

Porém, perto dali, seguia-se um diálogo familiar:

- Ouviu isso, mãe? – indagou Florbela, na cozinha da casa, enquanto cortava as batatas sobre a mesa com uma grande e afiada faca, seus olhos tinham aquela leve e estranha fosforescência, como a dos porcos e do restante de sua família.

- Ouvi tiros. Devem ser o Sideraldo caçando. Logo ele chegará com as iguarias para o nosso jantar...- respondeu a velha Ambrósia, debruçada no fogão à lenha da casa. Ela era uma velha feia, volumosa, de uma obesidade mórbida, parecendo ter elefantíase ou algo parecido.

- Talvez não seja o Sid, mas sim a gente da cidade vizinha, bisbilhotando...

- Se forem, vão completar o nosso cardápio – falou a velha, sardônica. - Os porcos receberam ordens telepáticas para trazer qualquer intruso...

Lá fora, o sinistro Sideraldo vinha nas sombras da noite de Brumália, sombras que tinham como moldura as névoas sinistras que flutuavam como brancos espectros emigrados do mundo dos mortos. Sideraldo vinha pensativo, sua silhueta negra e terrível destacando-se vez por outra sob as réstias de um luar mortiço, exangue.

E de repente Sideraldo esbarrou em Amanda, derrubando-a ao chão úmido e frio.

Olhando aquela estranha e horrível figura, Amanda empalideceu e soltou um grito de horror tão eloqüente que ensurdeceria até mesmo um cadáver na tumba.

Sideraldo fitou-a com água na boca. Pegou seu machado do cinto, erguendo-o, prestes a desferir um golpe fatal sobre a desafortunada e sonhadora cabeça de Amanda.

A sombra da lâmina do machado manchou seu semblante transfigurado pelo medo, e então Amanda Zim viu quando a lâmina cintilou à luz débil do luar, como uma mensageira da morte. A jovem percebeu que tinha chegado a sua hora, a hora de se despedir da vida.

A cabeça sonhadora da infeliz jovem foi impiedosamente rachada ao meio, abrindo-se em dois macabros hemisférios, abrindo-se como uma fruta macabra de indescritível horror.

Como um raio negro e fatídico do inferno, a morte chegara para a pobre Amanda.

Entrementes, Pandolfo Bombarda improvisava com sua jaqueta um grande curativo no tornozelo ferido de seu amigo Erasmo, que trincava os dentes, tentando suportar a dor lancinante daquela terrível mordedura suína.

Com o rosto pálido, porejado de suor, Erasmo indagou:

- Cadê a Amanda, Pan?

- Acho que a coitada ficou muita assustada com aqueles horríveis porcos ensandecidos, fugindo em pânico...

- E agora?...Que faremos, Pan? – continuou Erasmo, trêmulo, entre gemidos contidos de dor. – E se aqueles porcos malditos voltarem a nos atacar?

Pandolfo Bombarda pensou por um momento, antes de dizer:

- Vou enchê-los de chumbo, evidentemente, meu amigo – e Bombarda mostrou o revólver enfiado na cintura. - Não se preocupe! Vou mandar todos eles pro inferno! Vou acabar com a raça daqueles demônios!...

- Nem eu nem Amanda sabíamos que você tinha trazido uma arma, até vê-lo atirando como um louco naqueles porcos endemoniados...

- Realmente, eu tinha escondido a arma de vocês. É um revólver e tanto. Trata-se de um dos favoritos de meu tio, Lupércio Bombarda. Eu o peguei de sua coleção particular, sem ele suspeitar, é claro. Sabe como o meu tio chama essa pequena máquina de matar?...Ele o chama de Cospe-morte. Eu havia escondido o Cospe-morte da curiosidade de vocês porque, no fundo, desconfiava que algo pudesse dar errado em nossa pequena aventura nesta cidade da loucura, de modo que foi uma boa precaução, você não concorda?

- Sem dúvida, o Cospe-morte foi a nossa salvação. Você fez muito bem metendo bala naqueles bichos brabos dos infernos!

- Agora eu...espere!...Quieto! – fez Bombarda, sacando inopinadamente a arma da cintura e engatilhando - Vem alguém aí...

- Deve ser a coitada da Amanda – disse Erasmo rindo nervosamente, e em seguida gritou: - Amanda, estamos aqui! Pode voltar, querida! Os porcos se foram!...

- Não seja louco! Fique quieto, pois talvez não seja Amanda! Podem ser os donos da propriedade ou alguém pior!

No entanto, o aviso soara tarde demais. Feito um anjo horrendo da morte, Sideraldo chegava, arrastando o cadáver de Amanda, segurando-o pelo tornozelo.

Ao verem o cadáver da amiga com o cérebro praticamente escorrendo pela rachadura da cabeça, Erasmo e Bombarda suprimiram o medo, dando lugar a uma ira ostensiva. De suas gargantas saíram gritos de furor que sobrepujaram todo o medo, como flechas de cólera varando a carne escura da noite.

- É ele! O louco do milharal, Bomba! É ele o desgraçado que eu e Amanda vimos matando um gato com um machado aquela noite! – berrou Erasmo, o rosto crispado não mais pela dor do ferimento na perna, mas pelo ódio e desejo iracundo de vingança.

- Seu safado do inferno! – urrou Pandolfo Bombarda.

- Vai, Pan! Mete bala no filho da puta! Mata esse pau-no-cu! Mata! – berrou Erasmo, trincando os dentes numa clara expressão de ódio.

Pandolfo Bombarda fez mira e apertou o gatilho várias vezes, porém ficou estupefato ao constatar que a arma não disparara; as balas todas haviam sido gastas para espantar aqueles cachaços furiosos minutos atrás!

- O que houve, cara? – gaguejou Erasmo, também assustado.

Com voz trêmula, Pandolfo Bombarda também gaguejou:

- Caralho! Não dá mais, Erasmo! Não tem mais balas no tambor!...

Sideraldo sorriu ironicamente ao ouvir aquelas palavaras, largando o cadáver de Amanda ao chão. Sacou o machado preso ao cinto e avançou como um arauto da morte em direção aos dois jovens que, agora, não sabiam o que fazer.

Então, num gesto de desespero, Pandolfo Bombarda usou o revólver como se fosse uma pedra, arremessando-o contra o rosto hediondo de Sideraldo, que se esquivou para o lado.

Pandolfo Bombarda avançou e esmurrou Sideraldo. Por um instante o punho e a mão de Pan ficaram doloridos; o rapaz gemeu e fez uma careta de dor, sacudindo a mão como que para aliviar.

Com o golpe, Sideraldo nem mesmo cambaleara; o murro fora muito fraco para um homem de seu porte físico.

Erguendo seu machado como uma ferramenta de morte, Sideraldo preparou-se para desferir um golpe fulminante em seu débil oponente.

Com agilidade nascida do desespero, Pandolfo Bombarda conseguiu se esquivar a tempo, porém não sem se desequilibrar e cair ao chão.

Mas era Erasmo quem estava bem mais próximo de Sideraldo; uma vítima mais indefesa do que Bombarda, sem dúvida. Então Sideraldo ergueu o machado e preparou-se para proclamar a morte de Erasmo dentro da noite aziaga.

Erasmo, no chão, segurando a perna ferida e dolorida, ainda tentou se arrastar para longe, arregalando os olhos quando a sombra da lâmina da morte descia sobre si inexoravelmente.

O sangue salpicou o quadro dantesco da noite com seu vermelho vivo, como se fosse uma velatura macabra escondendo a verdadeira cor do horror que ainda estava por vir.

Pandolfo Bombarda ainda atirou-se ao pescoço de Sideraldo, tentando impedir a morte do amigo, mas foi afastado com um safanão e depois lançado longe com um pontapé violentíssimo desferido pelo louco assassino.

Caído ao chão, meio zonzo, Bombarda ainda viu o lunático furioso massacrar o amigo. E, sombrio, concluiu que não havia mais nada a fazer por Erasmo; a solução era fugir dali, pegar um dos caiaques e escapar pelo rio, salvando a própria pele. Não era covardia, ele pensava; era a coisa mais sensata a fazer naquele momento. Depois, evidentemente, comunicaria o fato a Polícia, na cidade mais próxima, Sargácia ou até mesmo Maremontes.

Então Pandolfo Bombarda correu noite adentro, embrenhando-se pelas sombras do grande e sinistro milharal que agora balançava ao vento da noite, parecendo um mar de medo e mistério.

Enquanto o jovem corria, uma pergunta batia insistentemente em sua mente como um martelo atormentador: ele conseguiria escapar daquela noite de terrível loucura, horror e matança?

Os corpos de Amanda e Erasmo foram decapitados.

Logo os dois cadáveres sem cabeça estavam ali, na cozinha da casa, pendurados em grandes ganchos como viandas humanas. Seriam desossados e destrinchados, depois assados em guisados suculentos que seriam servidos para horríveis comilanças em refeições macabras e canibalescas.

Ambrósia pusera-se à feitura do jantar. Facas afiadas cortaram as tenras carnes humanas. Membros foram cuidadosamente separados por cutelos, e logo tudo foi posto num grande tacho negro, o qual seria levado ao fogão à lenha.

Sideraldo e Florbela ficaram com água na boca, pois o macabro acepipe saciaria a fome inumana, uma fome nascida de sórdidos e insanos desejos antropofágicos, desejos insuflados por algum tipo de força espiritual desconhecida.

Enquanto Sideraldo colocava mais lenha no fogo, comentou com sua mãe Ambrósia, que com uma grande colher de pau agitava no tacho o molho sanguinolento com grandes pedaços de carne humana boiando; entre tais pedaços, a cabeça de Erasmo boiava pateticamente no molho sangrento, rodopiando ao mexer e remexer da colher. Um ricto de horror ainda curvava seus lábios, juntamente com o brilho vazio e vítreo nos olhos já quase soltos das órbitas.

- Um dos malditos desgraçados conseguiu fugir, mãe! – disse Sideraldo, fanhoso como sempre.

- O miserável não irá muito longe, com certeza, filho. Um de nossos maiores cachaços o pegará, mais cedo ou mais tarde, ele o trará até aqui, para servir de sobremesa. Já tomei providências quanto a isso, ordenando ao suíno uma ordem em forma de fluxos de ondas telepáticas! – Ambrósia respondeu, experimentando um pouco do molho sangrento com a grande colher de pau.

Vamos logo, estúpido animal involutivo! Traga-o até mim com vida!, era a tal ordem mental formulada por Ambrósia, enviada telepaticamente ao suíno.

Voltando a fuga de Pandolfo Bombarda ... Ele escorara-se a uma velha árvore de galhos secos e retorcidos que surgira ali, em meio às névoas, como uma tábua de salvação. Atravessara o milharal, pulando a cerca de arame farpado, lanhando as pernas.

Estava descansando um pouco, antes de continuar fugindo, rumo ao ancoradouro natural onde estavam os caiaques. Deixaria o quanto antes aquela cidade que era um antro de horror e loucura.

Estirou as pernas sobre a relva, respirando fundo. Improvisou um curativo com uma tira rasgada de sua própria roupa. Pensou consigo mesmo:

Meu Deus!... Tudo isto parece tão incrível e aterrador quanto um pesadelo de uma alma encarcerada nas catacumbas do inferno!

Quando fez menção de levantar-se, ouviu um cuinchar sinistro na noite agourenta da cidade das névoas.

E eis que, inopinadamente, das trevas enevoadas, surgiu um imenso cachaço negro, um daqueles que atacara Bombarda e seus amigos. O terrível suíno era o maior da vara, sem dúvida.

Pandolfo Bombarda havia dado apenas três passos em sua fuga alucinada quando foi apanhado pelo animal hediondo, que abocanhou furiosamente o tornozelo esquerdo do jovem, mordendo-o como se fosse um cão hidrófobo.

Enquanto gritava desesperadamente de dor, Pan foi arrastado mata adentro, seu tornozelo preso entre os dentes do animal em fúria sobrenatural.

O medo e a dor lancinante martirizavam Pandolfo Bombarda dentro da noite dos horrores fantásticos e fatídicos. O sangue que escorria de seu tornozelo deixava uma trilha vermelha no solo, colorindo sinistramente a tela macabra da noite de trevas e névoas. Inutilmente ele tentava se agarrar a touceiras, mas ele ia sendo arrastado com muita força e rapidez.

Bombarda acabou desmaiando, e quando recuperou a consciência, a primeira coisa que percebeu foi que estava manietado, e com o tornozelo todo inchado e dolorido.

Encontrava-se estirado no velho assoalho da casa daquela família insana.

- Acorde, humano miserável! – era a voz da velha Ambrósia soando numa vociferação feroz. Estavam com ela os seus dois filhos, Sideraldo e Florbela.

- Não vamos matá-lo agora. Você ainda terá mais alguns dias de vida. Vamos engordá-lo um pouco, antes do abate. Por ora, vamos colocá-lo na despensa da casa, para uma futura refeição.

- Mãe, prometa-me que, quando a gente for comê-lo, eu terei a primazia de ficar com a coxa do infeliz! – falou Florbela, passando a língua sobre os lábios, salivando em abundância, os olhos aumentando subitamente a fosforescência numa demonstração de gula.

- Eu prometo, querida. Mas antes cortaremos o pescoço do infeliz, e faremos um bom e capitoso vinho com o sangue esguichante da jugular do desgraçado! – falou a velha, rindo em tom de deboche, e, em seguida, olhando para Sideraldo, disse-lhe: - Agora, filho, abra o alçapão e coloque o tolo humano lá dentro.

- Deixe comigo, mãe.

Sideraldo então se dirigiu até o local, ergueu o alçapão, depois arrastou Bombarda pela trança, chutando-o com desprezo para o interior do porão.

Ato contínuo, o gigante de lábios leporinos fechou o alçapão com força, trancando o mesmo com uma grande corrente com um cadeado em forma de caveira humana.

Bombarda despencou por cerca de três ou quatro metros, indo cair sobre uma verdadeira cordilheira de ossos humanos.

Aquele lugar tétrico, além de servir de despensa e calabouço, servia também como um grande ossuário. Ali, havia até mesmo alguns restos mortais recentes, caveiras com resquícios de cabelos e até mesmo de carnes roídas. O miasma que impregnava o lugar era qualquer coisa de insuportável, de modo que Bombarda teve que tentar a todo custo impedir os engulhos.

Com esforço hercúleo, Bombarda conseguiu cortar as cordas que prendiam suas mãos com a ponta de um osso, um fêmur humano lascado em forma de farpa grande. Tal fêmur lembrava vagamente um punhal tosco.

Uma tênue claridade das luzes da casa, que atravessava uma fresta no alto da parede de grossas tábuas, penetrava como um fantasma luminoso naquela verdadeira câmara da morte.

Então, no meio da penumbra, Bombarda percebeu sombriamente que fora atirado num grande e espaçoso porão.

Ele parara de se mexer, porém o que ainda estaria provocando aquele ruído nas montanhas de ossos?

Então, com um medo cada vez mais crescente, Pandolfo Bombarda começou a pensar que talvez houvesse alguma coisa viva ali, além dele. Talvez fossem ratos, ele pensou, mas não eram ratos.

Foi com horror e assombro que ele ouviu o estranho gorgolejar de alguém, seguido de um gemido profundo de sofrimento.

Tentando superar a dor de seu tornozelo, Pandolfo Bombarda procurou no bolso o isqueiro que sempre trazia consigo (ele havia decidido parar de fumar naquela semana, mas, por sorte, trouxera o isqueiro consigo). Acendeu-o. A pequena chama iluminou precariamente a horrenda figura de um ancião esquálido, esquelético, sentado de um modo lúgubre sobre uma pilha de ossos e vestido com uma sotaina suja e em farrapos.

Aquele velho em estado lastimável estava ali, encostado a parede, um olho arregalado, o outro horrivelmente vazado, como se tivesse sido perfurado por algum tipo de ferro em brasa. Dito ancião lembrava uma daquelas vítimas do nazismo, presas em campos de concentração.

Num sussurro sofrido, ele disse:

- Meu nome é Capobianco. Lucas Capobianco...o padre desta cidade de condenados...







V


Como se fosse um fantasma ensandecido e foragido das sombras do grande Além, o sacristão Eliphas percorria as ruas nevoentas e frias de Brumália, a cidade dos horrores e dos mistérios infernais.

Claudicando, ele resolveu esconder-se no velho cemitério nos arredores da cidade.

Preciso descansar e dormir...Estou cansado demais...Meu corpo está todo dolorido, fatigado... Ó senhor Deus, dai-me forças!...

Agora a necrópole estava a sua frente. Ele então forçou o alto e enferrujado portão, empurrando-o entre um e outro gemido. A dobradiça gemeu mais alto que ele, gemeu mais alto que uma alma queimando no eterno fogo do inferno. E logo ele entrava no cemitério, atravessando a alameda nevoenta, sinistra.

Havia um jazigo ali perto. Era como uma estranha capelinha de mármore que descia chão abaixo como uma cripta. Ele entrou na pequena edificação.

Seria o esconderijo perfeito onde pernoitaria com segurança.

No interior do recinto, muitos túmulos; provavelmente o jazigo formava uma grande cripta de uma rica e excêntrica família de Brumália.

Penso que aqui seria o último lugar que aqueles malditos devoradores de carne e alma humanas me procurariam, pois acredito que eles não sejam necrófagos!, pensava Eliphas, enquanto descia a estranha construção, rumo ao subsolo.

Eliphas abriu a laje de um dos túmulos com o auxílio de uma pá coberta de pó e teia de aranha que encontrara nas imediações, provavelmente deixada ali pelo esquecimento e pressa de um coveiro, que muito provavelmente acabara morrendo nas mãos daqueles malditos que vieram com as névoas!...

Havia restos mortais de um homem, um velho esqueleto quase que totalmente esboroado e carcomido pelo passar dos anos, no interior do ataúde. No entanto, Eliphas não o temera mais que os devoradores de carne humana de Brumália. Os mortos, acreditava Eliphas, eram mais inofensivos do que aqueles que vieram com as névoas.

Eliphas procurou acomodar-se ali mesmo, dentro do grande caixão, entre os ossos do defunto, pois o caixão era realmente muito grande, e a julgar pelo tamanho dos ossos, o morto tinha sido muito gordo e alto em vida.

Eliphas puxou a lousa com a mão, encerrando-se ali, naquela cripta horrenda, dentro do estranho ataúde.

Ele cochilou por breves instantes, e esperou que com o sono viesse o bálsamo dos sonhos, e com eles, quem sabe, com um pouco de sorte, a benção de Deus, ou seja, uma morte tranqüila, sem muito estardalhaço. Quem sabe um aneurisma, por exemplo... Porém ele logo despertou subitamente. Algo dentro de si dizia que alguém se aproximava...

O sacristão Eliphas esbugalhou os olhos, ali, no interior abafadiço e terrivelmente mal-cheiroso da cripta ou jazigo. E o seu coração começou a bater mais forte, cada vez mais forte, mais rápido, acompanhando o ritmo alucinante do medo.

Meu Deus são eles, os que vieram com as névoas, os malditos devoradores de carne e alma humanas! Só podem ser eles!, Eliphas especulou, engolindo em seco, o coração batendo tão forte, agora, que poderia acordar até mesmo o carcomido (e quase reduzido a pó) esqueleto ao seu lado, dentro do caixão. Eliphas chegou até a cogitar se o bater alucinado de seu coração não seria ouvido também pelos que se aproximavam.

Então eles postaram-se ao lado do caixão em cujo interior escondia-se Eliphas.

Mas então o sacristão sentiu que não eram aqueles que ele pensara que fossem. De algum modo ele sentia isso agora.

Então, meu Deus...Quem seriam?

Altivo, um deles ergueu o estranho báculo ou bastão que segurava. Era parecido com um cajado, mas na verdade era um magnífico caduceu. Mais precisamente, o magnífico Caduceu de Mercúrio!

A mão que o empunhava fez o que pareceu ser um gesto ou passe de magia com o Caduceu de Mercúrio. E então os olhos brilhantes e escuros do estranho dirigiram-se para a laje do túmulo naquelas catacumbas tétricas.

A laje começou a mexer-se como que movida por alguma força invisível e sobrenatural. Depois ela deslizou para o lado, abrindo lentamente o túmulo. E depois aconteceu a mesma coisa com a tampa do ataúde.

Eliphas empalideceu e arregalou os olhos a ponto deles quererem saltar das órbitas como dois pequenos frutos horrendos de sua cabeça.

Olhando aqueles estranhos com inimaginável assombro, Eliphas gaguejou, a língua enrolada pelo medo, num murmúrio quase inaudível:

- Acho que vocês não são exatamente aqueles que vieram com as névoas!...Quem são vocês, afinal?...E o que querem de mim?...

A resposta veio através de uma emissão de pensamentos, uma espécie de defluxão psíquica de palavras em uma linguagem colorida e muito mais eloqüente que a limitada palavra humana. Tal resposta viera de um daqueles estranhos humanóides de semblante sempre austero e de tez tão lívida quanto a de um cadáver. De seus terríveis e altivos olhos, negros como os precipícios asquerosos do inferno, pareciam chispar poderes ocultos além de qualquer sonho ou fantasia elaborados pela pueril mente humana. Poderes indescritíveis, nascidos de mistérios milenares cultivados por uma outra evolução de seres:

Meu nome é Gamangelaf, membro da Sagrada Ordem dos Nirmanakayas. Os outros dois a meu lado são meus irmãos Ganganvi e Ganvi, também pertencentes à irmandade espiritual. Nós viemos de uma outra realidade, uma realidade muito superior a tua, humano. Zelamos pelo bem e pela ordem no primitivo e baixo mundo onde os homens se consomem e se arrastam nos lamaçais das mais vis paixões, até a transição chamada morte. Nossa sublime missão é policiar espiritualmente este orbe insano povoado por infelizes e desgraçados, para que não sucumbam ante as forcas do mal, e não mergulhem o planeta inteiro definitivamente nas trevas geradas pelas egrégoras do inferno e do caos.

Um calafrio de medo atravessou o corpo de Eliphas como um punhal invisível de medo. Era um medo gerado pela certeza de que forças desconhecidas estavam agindo, ultrapassando os limites da sua sanidade mental, apavorando-o terrivelmente.

O estranho humanóide continuou:

Viemos buscar de tua mente algumas informações acerca do que anda acontecendo de ruim nesta cidade de desgraçados. Enfim, estamos convictos de que forças deletérias foram inadvertidamente liberadas...

- Não! Vocês estão dominando minha mente! Vocês são da mesma laia daqueles que vieram com as névoas, os malditos devoradores de carne humana, parasitas que se apossam das mentes, dos corpos e dos espíritos das pessoas! Deixem-me em paz, seus malditos anjos do inferno! Deixem-me em paz!

O sacristão Eliphas fez uma pausa para pensar no que diria e no que faria, então saltou para fora do túmulo, meio azougado, pegando a pá que encostara por ali, e segurando-a como quem segura uma espada, avançou alguns passos, sempre com o instrumento em riste, gritando veementemente:

- Sabem de uma coisa? Vou mandar todos vocês de volta para as covas mofadas do inferno de onde saíram, e acabar com essa loucura toda! A santa cólera divina vai agir através de mim, agora!...

Com o semblante ainda mais draconiano que de costume, Gamangelaf avançou também:

Tu não irás fazer absolutamente nada além do que te solicitamos que seja feito, humano simplório e ensandecido, verme infeliz das baixas plagas dos mundos materiais. Rogamos-te para que deixes a voz da razão suprema de teu Real Ser falar em ti, mesmo que por breves instantes, para que não te deixes levar pelas forças negras geradas pelo teu próprio ego inferior!

O olhar do estranho ser agora emitia uma espécie de brilho hipnótico, uma chispa mística fantástica, extraordinária.

Um leve toque na região de teu chacra frontal será o suficiente para que seja ativada a tua glândula pineal semiatrofiada, mesmo que por alguns míseros segundos, de modo que possas então elevar momentaneamente a tua consciência e possas compreender toda a nossa sagrada missão aqui neste desprezível mundo inferior, bem como nosso desejo de informações que somente tu podes fornecer neste presente átimo!...

Gamangelaf tocou-lhe a fronte com a extremidade em forma de pinha de cristal do báculo mágico que segurava, o formidável Caduceu de Mercúrio.

Estranho raio de luz azul desprendeu-se como um pequeno relâmpago da pinha de cristal na ponta do Caduceu.

Então, de repente, a testa de Eliphas pareceu queimar numa chama invisível, atravessada por uma espécie de eletricidade espiritual magnífica. E então Eliphas sentiu, por míseros instantes (instantes esses que lhe pareceram eternidades) sua mente libertar-se de todas as amarras aviltantes dos mais imundos e pérfidos desejos mundanos socados em seu ego.

Agora, com uma suavidade e mansidão, e com os olhos fixos e arregalados estranhamente, como que num transe ou êxtase estupendo, Eliphas falou aos três humanóides idênticos como trigêmeos:

- Sim, agora eu compreendo, queridos irmãos na luz, agora eu dissipei minhas trevas interiores e compreendo tudo...E responderei a tudo que vocês quiserem saber, com toda a candura de minha alma liberta, nestes instantes inolvidáveis de suprema liberdade espiritual!...





VI


- Por Cristo e seus discípulos!...Você...Você é o verdadeiro e sublime enviado, o magnífico campeão da renúncia!...Sim!... O portentoso recipiendário da luz que libertará Brumália das névoas frias e venenosas do Mal!... Eu posso sentir isso por intuição! – era o velho padre Capobianco que falava, a voz muito fraca, trêmula, quase sumindo no silêncio daquele porão aterrador imerso em sombras sinistras. - Eu sabia que você viria um dia, cedo ou tarde. Está escrito, nas páginas mofadas porém reveladoras do terrível livro chamado Chartapaciu Infernale, que quando os horrores sobrenaturais forem liberados, infestando a esfera física, somente um jovem de coração puro poderá derrotá-los!...

Pandolfo Bombarda olhou-o com um misto de piedade e curiosidade. O velho estava quase morrendo, parecia recolher todas as suas últimas energias vitais para entabular aquela conversa, revelar seus segredos espantosos, todos os prodígios ocorridos naquela cidade esquecida e misteriosa chamada Brumália.

Pandolfo Bombarda falou:

- Não estou entendendo muito bem, velho. Mas devo dizer que já ouvi falar deste tal Chartapaciu Infernale, embora saiba pouca coisa deste terrível e antigo livro. É um livro de magia e conhecimento oculto. Li alguma coisa na biblioteca da Universidade de Sargácia.

- Ele é muito mais que um mero livro antigo, filho. São páginas negras escritas por uma mente que ousou ver coisas que nenhum mortal viu sem deixar de enlouquecer. É uma filosofia oculta e uma ciência mágica, uma extraordinária coletânea de pensamentos de uma sabedoria secreta perdida nas trevas imemoriais do tempo. No lendário Chartapaciu Infernale se encontram fórmulas mágicas, mistérios esotéricos impronunciáveis que levariam a loucura uma mente frágil, conjurações infernais, verdades acerca de deuses e demônios inomináveis que um dia, na aurora dos tempos, vagaram na Terra. Esse livro foi escrito por um mestre das ciências ocultas de uma civilização praticamente ainda desconhecida pelos historiadores, um mago e eremita chamado Oyregor Oyrevlis, e traduzido para o nosso tempo por um nefelibata e aventureiro que usava o bizarro pseudônimo Kryal Aurosang Lobsobindo. Enfim, tal livro é muito mais que um mero grimório...É um compêndio que encerra segredos místicos milenares de alta magia!...

- Confesso que ainda estou tendo dificuldade em compreender toda essa história fantástica, que julgo, no íntimo, tratar-se de pura histeria coletiva dos habitantes desta estranha cidade... Do que está falando, afinal, velho? – falou Bombarda, ajeitando-se melhor sobre a pilha de ossos humanos, esquecendo-se por instantes da dor que sentia no tornozelo que fora mordido pelo suíno terrível.

- Falo de uma grande missão, filho. Uma grande e sacrossanta missão que salvará Brumália e o mundo das névoas do inferno. Missão que somente você poderá cumprir!

Pandolfo Bombarda o olhava com assombro e piedade. O velho padre parecia lutar contra a morte. Não morreria sem contar toda a sua fantástica história.

Provavelmente o velho deve ter enlouquecido por ter ficado preso aqui, neste maldito porão, em meio aos ossos de gente da cidade, gente que provavelmente ele conhecia muito bem. Este fedor insuportável e nauseante enlouqueceria até um abutre, pensou Bombarda.

O velho prosseguiu seu discurso inacreditável, em tom ainda mais débil, quase num sussurro:

- Agora tente compreender: aquela família que nos aprisionou aqui, não é necessariamente uma família de psicopatas antropófagos, como você erroneamente deve ter presumido. É muito pior que isso, meu filho. Vai parecer fantástico e irreal demais, mas você tem que acreditar. Sei que para um cérebro são assimilar tudo aquilo que vou dizer pode parecer difícil, mas acredite em mim. Tudo que eu vou dizer é verdade, e só a verdade, meu filho, liberta. Eles, os que vieram com as névoas, não são humanos. Possuíram os corpos físico e astral de Sideraldo e sua família. Dominaram suas mentes simplórias. Explico melhor: aquela pobre e infeliz família está possuída por poderes malignos e sobrenaturais muito além da hodierna compreensão humana. Não reparou nos olhos deles?... São forças demoníacas, larvas obsessoras que evoluem, que se apropriam das mentes mais simplórias ou predispostas a certas neuroses, advindo como corolário uma vivência mútua numa espécie de megasimbiose mística com os corpos hospedeiros, tornando-os seres ab-reptícios, possessos!

- Mas que loucura é essa? – fez Bombarda, os olhos arregalados demonstrando um espanto e um assombro tremendos.

- Este porão, além de prisão, como pode ver, é um depósito de restos mortais de pessoas que moravam na cidade e que foram devoradas ou semidevoradas. A carne humana, para essas criaturas, é como se fosse uma ambrosia diabólica dos deuses das trevas do inferno, e o sangue humano é como um vinho capitoso e inebriante das vinhas que para eles são os corpos humanos. Este porão é uma espécie de despensa-cripta daqueles endemoninhados lá de cima, mais precisamente dos seres que os possuíram, e que se alimentam da energia psíquica e vibracional desprendida da carne e do sangue humano. Praticamente toda a população da cidade está aqui. Alguns poucos, como o sacristão Eliphas, conseguiram fugir, vivendo escondidos ou fugindo por aí, como ratos assustados e enlouquecidos.

Sombrio, Pandolfo Bombarda falou, cofiando o ralo cavanhaque e apertando os lábios, pensativa e apreensivamente:

- Continue, padre. Sua história é realmente fascinante. Conte-me mais. Conte-me como tudo começou, isto é, como esses “demônios” vieram parar em nosso mundo.

O velho respirou fundo, continuando a reunir suas derradeiras forças, depois continuou num sussurro sinistro:

- Ouça-me, rapaz...Tudo começou exatamente há cerca de um ano e meio. O Natal se aproximava, eu me lembro. Era uma noite de tempestade violenta em que o mundo parecia desabar. Então um raio fortíssimo caiu na encosta de uma das muitas colinas arborizadas que circundam Brumália, abrindo com violência estrondosa a entrada oculta de uma caverna de tempos imemoriais. O estrondo foi tão forte que acredito ter sido ouvido por toda a cidade, chegando mesmo a quase arrebentar meus tímpanos e estilhaçar algumas vidraças, como pude constatar logo depois.

“Pela manhã, quando a tempestade cessou e o sol magnífico brilhava intensamente como o olho de Deus no céu azul, o jovem chamado Sideraldo , aquele mesmo dos lábios leporinos, que então havia ido pescar, encontrou casualmente a entrada da caverna, aberta pelo desmoronamento causado pelo raio.

“Curioso, Sideraldo resolveu entrar. As pedras que lacravam a caverna, despedaçadas pelo raio, ainda fumegavam, chamuscadas. Você deve estar se perguntando como sei disso. Digo-lhe que pude vê-lo porque, coincidentemente, eu e meu sacristão, o bom amigo Eliphas, coincidentemente também tínhamos ido pescar naquela oportunidade. Um de nossos passatempos era a pesca. Além disso, eu estava animado, pois Eliphas me dissera que os peixes abundariam ali, após a noite de chuva intensa.

“Ocultos atrás de arbustos, eu e o sacristão Eliphas esperamos Sideraldo entrar na caverna, para depois segui-lo sem que ele percebesse. Lá dentro, nos escondemos atrás de algumas folhas e estalagmites.

“Eu e Eliphas não pudemos deixar de ficar assombrados com o que víamos. Deus do céu, tudo aquilo era fantástico e assustador demais. Ali, no interior daquela caverna perdida, havia uma espécie de cripta fantástica, algo como uma imensa tumba coberta por sombras milenares. Sim, acredito que éramos os primeiros a entrar ali, após milênios.

“A escassa luz que penetrava caverna adentro pela entrada arrombada pelo raio da noite anterior tornava aquele lugar ainda mais mágico e tétrico.

“Por um instante, eu e Eliphas rendemo-nos, extasiados ante a beleza arcaica daquele abscôndito recinto. Principalmente quando vimos aquela pequena piscina ou lagoazinha de águas de uma cor azul-turquesa...

“Sideraldo, por sua vez, também parecia estar num estado de deslumbramento ante a maravilha misteriosa e antiga daquele mausoléu insólito.

“Então, como se entregando a sedução e encanto que o lugar lhe inspirava, Sideraldo largou os apetrechos de pescaria, despiu-se e, sorridente, resolveu banhar-se nas águas convidativas da pequena lagoa encantada, entregando-se com prazer à sua limpidez e mornidão.

“Sideraldo nadou e brincou nas águas tépidas da pequena lagoa fantástica, chapinhando-as com uma alacridade pueril típica de indivíduos oligofrênicos. A certa altura, talvez vencido pela curiosidade e resolvendo investigar um pouco mais, ele mergulhou fundo, explorando as profundezas cristalinas da piscina natural ou pequeno lago.

“Eu e Eliphas chegamos a ficar apreensivos, porque Sideraldo estava demorando a vir à tona; temíamos que ele estivesse se afogando.

“Quando, por fim, ele subiu à superfície, vimos que Sideraldo trazia consigo algo entre as mãos.

“Sideraldo encontrara, provavelmente sob alguma pequena rocha subaquática ou mesmo semi-enterrada na areia, uma espécie de estranha caixinha ou estojo, um objeto meio carcomido e sujo pela ação da água e do tempo.

“Tratava-se, como viríamos, a saber, posteriormente, através da leitura das páginas negras do terrível livro chamado Chartapaciu Infernale, do lendário Cornimboque Místico!

“O rapaz de nome Sideraldo sentou-se na beira da pequena lagoa azul, examinando com muita perquirição o estranho estojo. Curioso, Sideraldo começou a sacudi-lo vigorosamente, junto ao ouvido, tentando, através de ruídos, averiguar se havia ou não algo em seu interior.

“Mesmo não ouvindo nada, Sideraldo resolveu abri-lo assim mesmo, a força, batendo-o contra a ponta de uma estalagmite.

“O que Sideraldo desconhecia era que o Cornimboque Místico fora colocado lá, eras atrás, por seres superiores chamados Nirmanakayas, numa época assaz distante, que precedeu esta nossa decadente e sórdida civilização. Eu e Eliphas ficamos sabendo disso através de leituras que fizemos no extraordinário e assustador Chartapaciu Infernale.

“No interior do tal Cornimboque havia um pequeno frasco de cristal, com uma espécie de rolha de chumbo em forma de caveira humana. Dentro do dito frasco flutuava algo como uma estranha névoa.

“A tal névoa tinha sido colocada lá pelos sublimes Nirmanakayas, os seres de que falei, criaturas não-humanas mais elevadas moral e espiritualmente que nós, tolos e míseros mortais”.

- Fale mais sobre esses seres...- pediu Pandolfo Bombarda, a curiosidade parecia uma comichão em seu cérebro.

“Oh, sim! Os fabulosos Nirmanakayas!... Eles são espíritos gloriosos, de um alto sistema de evolução. Eles são como vigilantes ou auxiliares da evolução humana, uma espécie de milícia celeste na guerra contra o Mal, nas Rondas Evolucionárias dos humanos. Os Nirmanakayas são como arcanjos oriundos de um outro plano de existência, um mundo extrafísico, uma dimensão invisível fantástica que coexiste com a nossa. É raro que seres tão elevados se manifestem fisicamente em esferas tão inferiores quanto a nossa, mas quando o fazem é por piedade de nós, tolos e insanos animais humanos!

“Na caverna, ao abrir o frasco, parte da névoa e alguma coisa nela, saiu de repente, infiltrando-se pelas narinas do jovem Sideraldo, que tossindo desesperadamente, parecia estar sendo asfixiado. O restante das frias névoas que não penetraram nas narinas de Sideraldo começou a se espalhar, expandindo-se, e logo viria a cobrir, como um gigantesco manto, a cidade inteira também.

“Logo depois, como num transe diabólico, o rosto de Sideraldo crispou-se todo, num esgar de fúria dantesca, seus olhos tornando-se estranhamente fosforescentes. Caiu no chão e, por minutos, foi acometido por uma espécie de ataque epilético. Depois levantou-se e, completamente possesso, foi para casa, onde soltou com uma baforada um pouco das névoas do frasco do Cornimboque Místico, as quais haviam penetrado em seu organismo; soltou bem na altura do rosto de sua mãe e de sua irmã, fazendo com que ambas também ficassem possuídas por aquelas coisas horrendas e nefastas que vieram com as névoas.

- Meu Deus, que história! É simplesmente inacreditável, padre – falou Pandolfo Bombarda, fascinado e ao mesmo tempo temeroso com o relato assombroso. Bombarda, com os olhos arregalados, ainda quis saber: - E quanto a essas entidades demoníacas do frasco do Cornimboque Místico, ainda não entendi de onde exatamente vieram, afinal de contas, padre?

- Tente compreender uma coisa, meu jovem: em verdade, trata-se de criaturas elementais artificiais, e não demônios propriamente ditos. São criaturas de extremo poder e virulência, seres gerados pelas formas-pensamentos de magos negros terríveis e maléficos. Criações nefandas geradas pela essência elemental que rodeia todos os seres humanos, e que é suscetível à influência do pensamento humano.

“Quando se é iniciado em ciências ocultas, é possível apoderar-se da matéria plástica elemental e moldá-la em formas-pensamentos-de-desejo num ser de forma apropriada”.

- Meu Deus! Toda essa terrível história, tudo isso que me relatou, enfim, simplesmente é inacreditável demais! É fantástico demais! – falou Bombarda, incrédulo.

- Fantástico?...Tudo neste mundo é fantástico, meu jovem. A vida e a morte não são fantásticas? A realidade, a imaginação, os devaneios, a fantasia, o pensamento humano e a própria matéria não lhe parecem mágicos? Tudo é magia, filho. Tudo é mágico, até mesmo a matéria. No fim das contas, somos todos magos...

- O senhor não deixa de ter razão. Às vezes, penso: o que é real, de fato? Os sonhos são mais reais que a realidade? Qual a diferença entre os dois?...

- Talvez não haja nem sonho e nem realidade, filho. Talvez haja só mudanças de percepção. A alma é quem governa tudo, o espírito é quem cria os corpos e os mundos. A carne é só um instrumento da alma. E a vontade, como uma coroa soberana, reina sobre tudo e todos!...

- Agora, me explique uma coisa, velho...como o tal Cornimboque veio parar na caverna?...

- A caverna nada mais é do que uma imensa cripta e calabouço, um ossuário e uma prisão. Entenda. Segundo o que está escrito nas páginas do abominável Chartapaciu Infernale, outrora, em tempos antiqüíssimos, os Nirmanakayas aprisionaram as entidades sinistras, selando-as nas profundezas da caverna. Esses elementais artificiais foram criados por magos negros poderosíssimos de um passado remoto e que um dia perderam o controle sobre os mesmos, os quais, então passaram a ter uma existência espiritual nômade, de corpos em corpos, de hospedeiros em hospedeiros. Até que, por acaso, o raio estilhaçou a porta oculta da caverna. As entidades aprisionadas no Cornimboque necessitam de sacrifícios humanos para se fortalecerem, sendo a antropofagia provocada nas mentes possuídas da família de Sideraldo e dele próprio, um modo das terríveis criaturas atraírem novas vítimas de holocausto. Além disso, os possuídos servem também de abrigo e veículo físicos seguros para seus propósitos nefandos e rituais de pura maldade.

“Como disse, os Nirmanakayas conseguiram aprisioná-los durante eras, mas agora, com o raio abrindo a cripta, eles estão mais uma vez libertos, e de posse das mentes e dos corpos da família que aqui nos aprisionou, preparam uma nova Idade de Trevas para a Terra. A cidade de Brumália foi posta numa espécie de limbo entre as muitas dimensões, mais precisamente num mundo onde a matéria toma uma outra configuração atômica e molecular, transmutando-se extraordinariamente, através de uma outra freqüência consciencial, em matéria semi-etérica ou semi-física, numa outra graduação incompreensível demais para nós humanos, e este esconderijo, este outro mundo, é como um abrigo seguro para os entes malignos, também servindo para atrair novas almas, vítimas no plano físico. De tempos em tempos, então, o portal maldito das névoas infernais abre-se, permitindo a entrada e saída dos elementais artificiais hospedados nos corpos daqueles infelizes. Sei de tudo isso, como já disse, porque li no extraordinário e assustador compêndio chamado Chartapaciu Infernale, que pode ser encontrado na biblioteca da sacristia. Neste mesmo livro fiquei sabendo do único jeito de um ser humano destruí-los. Isso só é possível seguindo-se determinado ritual de magia. Além disso, é preciso contar com a ajuda dos magnânimos Nirmanakayas!...”

- Então há um modo de aprisionar outra vez essas criaturas macabras? – inquiriu Pandolfo Bombarda.

- Com certeza. Uma vez recitada as palavras mágicas e completado o ritual esotérico, aprisiona-se novamente as entidades artificiais no Cornimboque Místico, e então as névoas se dissipam, ou melhor, voltam ao frasco. Brumália ficaria livre, então, e voltaria a ser o que era antes, uma pacata cidadezinha do interior, situada totalmente no plano físico. Dito isto, é preciso que você, e somente você, fuja daqui, agora, e vá até a biblioteca da sacristia. Lá você irá encontrar o lendário Chartapaciu Infernale. O Cornimboque vazio eu o apanhei do chão da caverna, e também está lá, junto do livro proibido, no nicho que serve de cofre, que fica atrás de uma reprodução de um quadro de Bosch. Eliphas tentou pegar o livro, mas foi detido antes; torturaram-no para que confessasse o que pretendia fazer e onde estava o livro, e resistindo extraordinariamente, conseguiu fugir dos elementais artificiais no dia seguinte. Provavelmente Eliphas deve ter enlouquecido com isso tudo...”

- Mas...como fugirei daqui, velho? Estou com a perna ferida...- disse Bombarda, ainda sentindo dores.

- Tente suportar a dor da perna, filho. O mundo corre perigo. Agora, vá! Há uma saída embaixo daquela pilha de ossos – e o velho apontou o lugar com o queixo -...Foi cavado com pontas de ossos por Eliphas às escondidas, antes de fugir daqui. Não fui com ele porque, como vê, estou fraco e velho demais. Vá, pois o tempo urge!... Mas, antes de cumprir sua missão e assumir o seu destino, peço-lhe que me conceda um último desejo: MATE-ME, filho!... Sim, isso mesmo: Mate-me, eu lhe imploro!... Como vê, estou no fim... Não sei como consegui ter forças para revelar-lhe todo o mistério e horror de Brumália. O esforço foi quase sobrenatural. Eles me torturaram, rapaz, me trataram com sevícias inimagináveis. Meus braços e minhas pernas estão tortos assim porque foram quebrados, e gangrenas apodrecem quase meu corpo todo. Acho que as surras afetaram até algumas vértebras de minha coluna, pois não consigo me mexer muito. Talvez eu não ande nunca mais, a não ser, é claro, quando estiver com meu corpo glorioso no Reino de Deus. A dor que sinto é terrível, e só com muito controle mental e orações consigo resistir sem enlouquecer. Porém, acredito que minha mente sucumbirá dentro em breve, afundando nos mares negros e infinitos da loucura. Oh, não deixe que eu enlouqueça antes da morte!...Além disso, esqueci de dizer que não durmo faz dias, pois os pesadelos que tenho são tão infernais que não posso descrevê-los com palavras humanas...

- Fique tranqüilo, padre. Darei um jeito de tirar o senhor deste porão do inferno. Acharei um jeito de sairmos juntos daqui. E levarei o senhor a um bom médico...

- Não, filho. Receio que seja demasiado tarde. Não alimente ilusões infantis de um final feliz para mim. Compreenda que eu seria um peso durante a fuga, e você precisa cumprir sua missão como recipiendário do conhecimento esotérico, guerreiro místico na luta contra aqueles que vieram com as névoas!...

Houve uma pausa sepulcral. O velho fitou-o nos olhos com um fio de esperança, depois falou:

- Agora ouça: faça o que deve ser feito. Pegue aquele fêmur lascado em forma de punhal - o padre apontou para o osso pontiagudo que estava ali por perto – e crave-o em meu peito!...Sim, filho...MATE-ME!...Agora!... É necessário! Não me deixe aqui, para servir de alimento para aqueles vermes espirituais desprezíveis...

- Mas...Padre, o senhor sabe, como bom sacerdote cristão, que não posso tirar a vida de ninguém, principalmente de um padre inocente, como o senhor. Não posso cometer um pecado destes...

- Compreenda-me! Estou velho demais e num estado semivegetativo, como pode ver. Vamos, liberte-me! Conceda-me a liberdade da alma, eu lhe imploro! Conceda-me a liberdade da morte! – o padre baixou a cabeça, em prantos e soluços. Estava quase a mercê da loucura. – Misericórdia, é o que lhe suplico, filho...MATE-ME!... Vamos, mate-me!...

Por instantes, Bombarda hesitou. Refletiu que talvez a mente do velho estivesse sucumbindo de vez nos abismos negros da insanidade. Pensando melhor, talvez ele tivesse razão. Então, engolindo em seco, Pandolfo Bombarda decidiu-se, olhando o sacerdote com um misto de piedade e medo:

- Que Deus me perdoe, padre...

- Ele o perdoará, filho. Ele o perdoará...

O velho padre ainda teve tempo de dizer uma última frase, com um sorriso ligeiro de gratidão desenhado nos lábios encarquilhados e ressequidos, antes de morrer com o fêmur quebrado e pontiagudo fincado em seu corpo, o qual foi desferido por Bombarda num único golpe. A arma improvisada foi fincada pelas mãos trêmulas e vacilantes do jovem no velho coração do padre, e agora ele estava prestes a atravessar as fronteiras da morte. E a frase que o sacerdote pronunciou antes de morrer para este mundo foi: “Deus o abençoe, filho...Deus o abençoe...”.












VII


Pandolfo Bombarda arrastara-se até o monte de ossos perto da parede, indicado pelo padre que ele acabara de matar (ou libertar?). Descobrira, após espalhar as ossadas, que de fato havia um pequeno túnel escavado debaixo do assoalho, o qual levava para fora da casa. Por fim, com extrema dificuldade, atravessou o túnel escuro e saiu nas ruas da cidadezinha imersa em gélidas névoas.

Passou pelo coreto na praça abandonada, rumando até o adro ao redor da igreja, até finalmente alcançar a sombria sacristia.

Arrombou a porta da casa com um chute forte, os dentes trincados segurando a dor do ferimento da outra perna, sobre o qual ele colocara uma faixa do tecido rasgado de sua camiseta.

Prosseguiu, claudicando um pouco, seus passos soando no silêncio assustador do lugar.

Observou os paramentos e demais objetos de culto largados por ali. Havia uma desarrumação total. Tinha-se a impressão clara de que alguém estivera ali fazia pouco tempo procurando por algo muito importante.

Então Pandolfo Bombarda viu a porta da pequena biblioteca, e ali entrou, acionando de imediato o interruptor, iluminando o lugar.

“Cadê o quadro de Bosch?”, pensou, inquieto, olhando para um lado e outro.

Finalmente seus olhos o encontraram. Ali estava o magnífico quadro, atrás de uma escrivaninha. Era uma reprodução perfeita, em forma de pôster, de uma obra de Bosch, “Cristo carregando a cruz”.

Pandolfo Bombarda retirou o quadro, colocando-o no chão. Havia um nicho bem atrás. Era uma espécie de pequeno cofre, sem segredo na fechadura. Abriu-o. Em seu interior encontrava-se aquele livro assustador, o lendário Chartapaciu Infernale, contendo segredos terríveis que, se lidos por uma mente frágil ou desequilibrada, poderia facilmente levar aos abismos negros da loucura.

Perto do livro, estava o fabuloso Cornimboque Místico. Então Pandolfo Bombarda apanhou o livro e o Cornimboque, depositando-os cuidadosamente sobre a escrivaninha.

Bombarda puxou a cadeira e começou a folhear o dito compêndio, um dos poucos exemplares restante na face da Terra.

Subitamente ouviu um ruído que vinha do pequeno saguão da sacristia.

Rapidamente meteu o Cornimboque no bolso da jaqueta, depois fechou o livro antigo de capa preta e dura, sobraçando-o.

Fechou a porta da biblioteca, passando a chave, para que pudesse evitar que entrassem no local. Agachou-se, ocultando-se ao lado da escrivaninha.

Registrou-se um novo barulho. Passos.

Bombarda viu, pela fresta debaixo da porta, a sombra deslizando lá do outro lado. Quem seria?...

A maçaneta foi girada e forçada por várias vezes, com brusquidão e ímpeto. Depois houve uma breve pausa, um silêncio terrível e assustador, quebrado apenas pelo bater amedrontado do coração do próprio Bombarda.

De súbito, a porta começou a ser forçada com violência e estrépito, e logo a seguir ela começou a ser estilhaçada furiosamente pela lâmina de um machado assassino.

Logo a porta foi arrombada com violência e força.

Era Sideraldo, o possuído.

Bombarda então decidiu que não iria ficar ali, escondido, à espera do possesso; não, iria enfrentá-lo num corpo-a-corpo, se conseguisse primeiramente tirar-lhe o maldito machado, é claro.

- Irá se arrepender de ter fugido, humano tolo! Vou devorá-lo vivo, aqui e agora!... – era a coisa horrenda falando através das cordas vocais do possuído Sideraldo.

- Sei exatamente o que e quem você é! Sei que você ocupa o corpo deste infeliz! – bradou Pandolfo Bombarda. – O padre Capobianco me contou tudo antes de morrer!...

- Ah, o padre!... – falou Sideraldo, sarcástico. - Capobianco sempre foi um tolo, aliás, como todos vocês, miseráveis mortais, são! Nós encontramos a alma do velho, perdida e confusa, nas sombras do plano astral, e ela nos confessou, mediante torturas místicas, como, por onde e porque você escapou!...

- O que fizeram com o espírito do padre, seus demônios? Deixem-no em paz lá no reino dos mortos!

- Ele agora jaz na antecâmara do inferno, meu caro! – uma gargalhada diabólica e louca ecoou no recinto como se fosse uma trombeta do Hades. – Não há segredo que uma boa e derradeira tortura astral não consiga arrancar de uma alma cansada e abatida por sofrimentos místicos vários!

- Seu desgraçado! – gritou Bombarda, com ódio e medo, pegando com uma mão a cadeira e lançando-a de encontro ao peito de Sideraldo.

Com o impacto violento, Sideraldo caiu ao chão, soltando o machado.

Então os dois se engalfinharam numa dramática luta corporal, numa farta e violenta distribuição de murros e pontapés, derrubando estantes e livros, e também a escrivaninha sobre a qual Bombarda colocara o livro místico e o Cornimboque.

Um soco forte e brutal desferido por Sideraldo lançou Bombarda contra a parede, fazendo o grande crucifixo de metal reluzente pendurado na divisória balançar e cair ao chão, próximo da perna do jovem esmurrado.

Ainda meio atordoado, Bombarda apanhou o crucifixo e levantou-se no exato momento em que Sideraldo se atirava sobre o jovem na intenção de agarrá-lo e matá-lo.

Foi só com a força nascida da raiva e de seu instinto de sobrevivência que Pandolfo Bombarda conseguiu segurar o crucifixo como se fosse um punhal ou espada, cravando a ponta do mesmo num dos olhos de Sideraldo, vazando-o horrivelmente, cegando-o por instantes.

Sideraldo então levou a mão ao olho vazado, o qual sangrava em profusão. A dor curvara-o num urro terrível. E de algum modo a dor também atingira violentamente a entidade que o possuía. Havia liames místicos entre o possuído e a entidade que o possuíra, sem dúvida.

Bombarda aproveitou para pegar o Chartapaciu Infernale caído ao chão e fugir dali o quanto antes. Tinha que terminar de ler e estudar rapidamente o terrível alfarrábio a fim de poder exterminar posteriormente aqueles que vieram com as névoas.

Sozinho na biblioteca semidestruída pelo combate, Sideraldo arrancou o crucifixo e atirou-o ao chão com raiva, numa sucessão de urros ferozes. O olho vazado estava horrivelmente ensangüentado, o sangue escorrendo e sujando seu rosto, formando quase uma máscara rubra e horrenda. Ficou ali por alguns segundos, dizendo que iria arrancar o coração de Bombarda, comê-lo e depois vomitá-lo numa fossa qualquer.

Finalmente, já recuperado, Sideraldo apanhou o machado do chão e saiu atrás de Bombarda, como um ciclope vingador do inferno.

Enquanto isso, lá, na praça deserta da cidade, Pandolfo Bombarda entrava naquele coreto com jeito de pérgula, abaixando-se e folheando o Chartapaciu Infernale, procurando entender o ritual e o encaminhamento para destruir os elementais artificiais. A grande lua cheia, com sua claridade sinistra, servia-lhe de imenso abajur.

Cinco minutos escorreram lépidos pela inexorável ampulheta do tempo.

Então, com o machado na mão, o agora caolho Sideraldo olhou o coreto e sentiu que Bombarda estava lá. Encaminhando-se até a pequena construção ele chocou-se inopinadamente com Eliphas, que vinha alucinadamente ao seu encontro, correndo por entre as névoas espectrais. Eliphas foi ao chão.

- Você!...Seu maldito ser das névoas do Além! – disse Eliphas, ao olhar Sideraldo de pé diante de si. – Foi bom encontrá-lo! Só assim terei o prazer de lhe dizer que seu fim está próximo, agora que os Nirmanakayas estão entre nós!...

A simples menção da palavra Nirmanakayas fez com que Sideraldo arregalasse o olho restante, e, como um Polifemo em fúria negra, desferiu uma machadada violentíssima no alto da cabeça do infeliz Eliphas, que morreu amaldiçoando o caolho possuído.

Sideraldo então puxou a lâmina do machado, firmando seu pé no ombro de Eliphas, como um lenhador rude tira o seu machado fincado de uma tora.

Neste exato instante, assomou na esquina próxima ao coreto, a mãe e a irmã de Sideraldo, que viram Bombarda com o Chartapaciu Infernale, folheando o livro, assombrado e absorvido numa leitura rápida.

- Ali, Sid! Bem ali! Ele está agachado no coreto! – gritou a mãe, olhando para o filho, com certo júbilo rutilante nos olhos fosforescentes.

- Vai, Sid! Pegue o desgraçado! Você está mais perto do coreto que nós! Não o deixe fugir! Pegue-o! Estraçalhe-o! – gritou Florbela, histérica, o rosto crispado por uma onda avassaladora de ódio.

Sideraldo ouviu e pôs-se a ir à direção do coreto, o semblante iluminando-se com um quê de sinistro triunfo.

Bombarda, assustado, talvez precisasse de mais tempo para compreender o ritual e o encantamento descrito no livro. Estava quase terminando. Estava lendo numa velocidade alucinante, agradecendo a si mesmo por ter feito, semanas atrás, um curso de leitura dinâmica.

Então, subitamente, eles apareceram. Vinham levitando cerca de três ou quatro metros acima do solo, entre as brumas frias e pegajosas da noite das abominações. Pareciam três fantasmas flutuando fantasticamente nas névoas.

Pandolfo Bombarda parecia não acreditar no que seus olhos viam. Era fantástico demais, inacreditável demais.

Os Nirmanakayas levitaram até por sobre o coreto e, telepaticamente, um deles, o que se chamava Gamangelaf, disse, lançando o Caduceu de Mercúrio a Bombarda.

Pegai o Caduceu de Mercúrio, jovem recipiendário! Ele o ajudará a canalizar as energias místicas dentro de si, além de abrir teus chacras e tua visão espiritual. Com a vibração telepática que enviamos aos cristais minúsculos no cerne de tua glândula pineal, tua consciência espiritual superior abrir-se-á paulatinamente como uma flor dourada da alma, e como corolário, iniciar-se-á o teu intuitus mysticus!

Bombarda apanhou o Caduceu que flutuara até sua mão como uma pluma tangida por ventos místicos.

Ele sentiu uma espécie de onda energética ou eletricidade quente magnífica fluir através de sua coluna vertebral, até o alto de sua cabeça, formando ao redor dela uma espécie de auréola rutilante esplendorosa.

Bombarda continuava sobraçando o Chartapaciu Infernale, e seu ferimento na perna sarara como que por encanto, não ficando nem cicatriz. Novas vestimentas surgiram-lhe sobre o corpo (uma roupa meio religiosa e meio militar). Uma jóia ovalada na cor verde-esmeralda havia aparecido, incrustada no centro de sua testa ( seria um símbolo físico de seu chacra frontal?).

Boquiabertos, Sideraldo e sua família recuaram um passo ao verem o halo resplandescente que começava a tomar uma tonalidade dourada.

Aquele que se chamava Gamangelaf emitiu um pensamento:

Muito bem, recipiendário! Agora deixe teu poder ígneo fluir no espírito. E em nome da deusa Kundalini, fazei aquilo que deve ser feito! Fazei a liturgia e o aprisionamento dos elementais artificiais no Cornimboque Místico!...

Então Bombarda abriu o Chartapaciu Infernale com uma das mãos, enquanto segurava, com a outra, o Caduceu. Leu em voz alta e rapidamente alguns trechos que faltavam, fechando o livro abruptamente.

E então aconteceu outra coisa extraordinária. Pandolfo Bombarda também levitou fantasticamente do coreto, passando pelos Nirmanakayas.

Agora ele sentia um poder inimaginável, indizível, pulsando dentro de si. Agora Bombarda sabia o que fazer e como fazer.

Contudo, Sideraldo olhou-o zombeteiramente e disse:

- Não vai querer matar estes corpos inocentes onde nos alojamos, vai?...Se você pretende nos aprisionar de novo no Cornimboque, vamos matar todos os corpos nos quais nos hospedamos!...

- O mundo precisa de mártires, seu demônio das fossas do inferno! É preciso que morram inocentes para que o Mal não prevaleça!...

Então Pandolfo Bombarda apontou o Caduceu para ele e fulminou-o com uma fantástica rajada amarelo-avermelhada que brotou da extremidade do bastão indo na direção de Sideraldo, envolvendo-o numa grande e voraz chama, queimando-o, calcinando-o, carbonizando-o horrível e fantasticamente.

Dos restos fumegantes do cadáver evolou-se uma horrenda e densa névoa, ainda mais densa do que aquela que envolvia a noite maldita de Brumália. Era , com certeza, o elemental artificial que possuíra o infeliz Sideraldo.

Tal névoa macabra, assumindo feições grotescas, algo como um semblante iracundo e demoníaco, foi sendo sugada pelo frasco de cristal tirado do Cornimboque Místico que Bombarda retirara do bolso,sacando a rolha de chumbo e colocando a dita garrafinha sobre o livro aberto chamado Chartapaciu Infernale, que o jovem pusera diante de si, flutuando, levitando como um pequeno pássaro de asas abertas.

Bombarda então recitou palavras mágicas incompreensíveis, encantamentos milenares retirados do Chartapaciu Infernale.

E a névoa de configuração bestial e horrenda foi completamente sugada pelo Cornimboque, assim como toda a outra névoa que envolvia a cidade inteira.

O mesmo acontecera com Florbela e sua mãe, que mesmo correndo de medo, foram fulminadas pelo raio fantástico emitido pelo Caduceu de Mercúrio. Dos corpos calcinados das duas, as névoas das outras entidades tiveram o mesmo destino, sendo tragadas para o interior do frasco de cristal, fechado com a rolha de chumbo e depositado dentro do Cornimboque Místico, que por fim, foi fechado também por Pandolfo Bombarda e entregue a Gamangelaf.

Como não tínhamos mais permissão do Logos Cósmico de intervir a todo instante no Karma da humanidade, precisávamos de um recipiendário para que fizesse o trabalho por nós!...

- E agora? O que farei com esse poder mágico que faz me sentir quase como um homem-deus? E o Chartapaciu Infernale? E o Caduceu?... E o Cornimboque Místico?...

Utilize-os com sabedoria na luta contra o Mal e suas forças deletérias, jovem recipiendário. Doravante serás um príncipe da Alta Magia, é bom que saibas. Estaremos sempre ao teu lado, em força e espírito, até que tua jornada no tapete negro da existência terrena termine. Mas lembra-te de que tudo foi apenas uma primeira parte na senda da iniciação. Ainda terás que levantar tuas sete serpentes de fogo de teu âmago e cumprir o que manda o heptaparaparshinokh!... Fique com o Caduceu e o Chartapaciu Infernale, pois serão de grande valia na tua senda iniciática. Todavia, levaremos o Cornimboque Místico com o frasco mágico de cristal em seu interior. Talvez o enterraremos numa cratera da lua ou de outro asteróide deserto e sem vida chamado Zlorgh. Adeus, recipiendário! Precisamos ir, agora, Príncipe da Magia!...Talvez voltaremos a falar contigo em sonhos, visões ou desdobramentos astrais...Amplexos e ósculos fraternais, recipiendário!...

- Adeus, meus mestres!... Adeus!...

E os três seres, girando paulatinamente em pleno ar, até formarem uma espécie de vórtice de luz espiritual magnífica, sumiram numa explosão fantástica, silenciosa e cintilante que enfeitou toda aquela noite mística em tons iridescentes.

Pandolfo Bombarda sobraçou o grosso livro e, segurando o Caduceu, pousou , cessando sua levitação.

O corvo chamado Cega-rega pousara no coreto. Bombarda olhou-o e lançou um novo raio do Caduceu sobre o pássaro. Houve uma transformação fantástica na ave agourenta.




Epílogo


Caminhando pelas ruas da cidade deserta, Pandolfo Bombarda montou no corvo agigantado pelo raio místico emanado do Caduceu de Mercúrio, como se montasse num cavalo alado, alçando vôo e sumindo no horizonte vermelho, aos primeiros clarões da aurora.

Bombarda pôs-se a pensar nas explicações que daria a estúpida Polícia sobre a morte de seus amigos, bem como o sumiço de quase toda a população de Brumália, se é que houvera um dia essa cidade fantástica com seus habitantes estranhos e soturnos.

Com o poder mágico e espiritual que agora possuía, ele daria um jeito em tudo. Mas aí, como dizem os bons e velhos gandavos de outrora, já é uma outra história para ser contada, principalmente porque a terrível e fantástica aventura pela qual Bombarda passara tinha sido apenas o prelúdio de uma aventura ainda maior, pois de recipiendário a iniciado ou adepto das artes místicas, ele chegaria a ser o que simplesmente estava predestinado a ser: o Príncipe da Alta Magia, um mago e guerreiro das grandes hostes da Grande Fraternidade da Magia Branca!...

FIM

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