A RATOEIRA

Para Robson Mascarenhas.
A paixão de Uriel eram os seus
chocolates. Metia-os na última gaveta, lá no fundo, para que ninguém soubesse
de seu tesouro. E, quando os comia, fazia-o sozinho e em silêncio, de portas
trancadas e olhos buliçosamente assustados. Sentia um medo irracional de ser
flagrado com suas guloseimas.
Um acesso de raiva, uma raiva
mortal, que Uriel conteve num lampejo de lucidez, foi o que sucedeu. Quase
chegou a experimentar o arrependimento que sentiria, se tivesse sucumbido aos
impulsos primitivos da ira. Mas Uriel controlou-se. Não praguejou. Não esmurrou
a mesa. Não ameaçou os colegas. Substituiu toda expressão de ódio por uma
fisionomia impassível, enquanto o cérebro trabalhava em ritmo frenético. Agora
era descobrir quem furtara os seus chocolates.
Pôs a isca. E esperou. O rato
miserável era mais esperto do que ele supunha. Quando examinou a gaveta,
constatou que os seus preciosos chocolates haviam desaparecido novamente.
Precisava descobrir, urgentemente, quem era a ratazana infeliz. Certamente não
era alguém do turno da noite, no qual trabalhava há dois meses. Ele e mais dois
abnegados. Talvez alguém da limpeza. Ou a moça do cafezinho, que preparava as
garrafas térmicas antes de se meter na interminável fila de ônibus. Talvez até
mesmo o chefe. O mandachuva tinha mesmo cara de ladrão. Não o via nunca.
Trabalhar às madrugadas é dureza, sente-se um sono maldito, mas tem as suas
vantagens.
Porém, muito em breve saberia.
Porque, desta feita, a ratoeira funcionaria perfeitamente. Uriel mergulhou
remédio de rato - desses que se vendem clandestinamente em camelôs - nas
inúmeras barras de chocolate. Com esmero, Uriel reembalou as poções
envenenadas, uma a uma. Um trabalho lento e cauteloso. Um resultado perfeito. E
aguardou que o gatuno viesse. E que o mortal carbonato fizesse generosamente a
sua parte...
“Agora pego este filho de uma
puta”, foi o que pensou Uriel, ao fechar a gaveta.
Uriel acordou sobressaltado.
Salivava excessivamente. Os olhos eram duas tochas ardentes, donde manavam
lágrimas de fogo. Das narinas, escorria uma secreção pesada e sem fim. E,
apesar do choque, o coração batia devagar. Quis se erguer, mas não conseguiu. O
seu peito pesava uma tonelada e os pés eram como se não existissem. Seguiram-se os tremores e os
espasmos, até que, por fim, um nó espesso cingiu violentamente a sua garganta,
selando a agonia.
Tido injustamente por suicida,
assim morreu Uriel, que fora sonâmbulo a vida inteira, mas não o sabia.
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