A PESTE DO BEIJO

A PESTE DO BEIJO

Autor: Alessandro Reiffer

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A enfermidade surgira há algumas décadas. Seu desconhecimento pela ciência oficial era completo, e logo a doença tornou-se uma pandemia sem controle. Inicialmente, a moléstia incurável ficou conhecida como Peste Sanguínea, devido ao fato de afetar o aparelho circulatório dos seres humanos, em particular o sangue, e gradualmente ir causando o apodrecimento do líquido sanguíneo. Com tais características, logicamente, a Peste Sanguínea era sempre fatal e, uma vez surgidos os primeiros sintomas, quais sejam, hemorragias e enegrecimento dos vasos sanguíneos, a morte tornava-se questão de algumas poucas semanas.

Verificou-se que a enfermidade era causada por um vírus mutante. Com suas incessantes mutações gênicas, “driblava” todas as tentativas dos cientistas de criar medicamentos ou vacinas contra a moléstia. No entanto, o problema maior da peste era que o agente causador possuía um período de incubação um tanto longo, cerca de 5 anos. Dessa forma, as pessoas contaminadas não sabiam que possuíam o vírus e, durante o tempo de incubação, transmitiam-no incontrolavelmente a um número indeterminável de indivíduos. Como era uma doença do sangue, a transmissão da Peste Sanguínea obviamente ocorria através do contato direto com o sangue ou por secreções corpóreas a ele relacionadas, como esperma e leite materno. Relação sexual, uso de drogas injetáveis e transfusões sanguíneas consistiam as principais formas de contágio.

Um terrível espetáculo dantesco era a contemplação da morte de uma vítima da Peste Sanguínea. Em uma primeira fase, o enfermo apresentava hemorragias pelas narinas, febre alta e leves dores por todo o corpo, semelhantes à de uma gripe. Ao mesmo tempo, as veias assumiam gradativamente um tom negro sob a pele. Na fase secundária da doença, as dores corporais se intensificavam a um nível insuportável, as hemorragias nasais tornavam-se muito freqüentes, sendo que o sangue expulso era negro, viscoso e fétido. O enfermo agora também expelia profusas quantidades de sangue através de vômitos e diarréias espantosas, golfadas de um líquido espesso e gosmento, em apodrecimento, de um mau-cheiro nauseabundo, de um aspecto repulsivo. Uma tosse constante e insidiosa contribuía para agravar o quadro, ocasionando a expectoração de um muco negro e sanguinolento.

O enfermo já não se alimentava mais, e a morte vinha com a terceira fase da peste, absolutamente horrível. Não se passava 5 minutos sem que o enfermo expelisse sangue podre, quer por um impiedoso ataque de tosse, quer pela diarréia, quer pelo vômito. Enquanto a triste vítima definhava implacavelmente, e suas veias apresentavam-se em uma tonalidade morbidamente escura, um fedor insuportável e pestilento exalava-se de todo seu corpo, uma vez que devido aos freqüentes vômitos e diarréias, o sangue pútrido acumulava-se ao seu redor, e as pessoas temiam limpá-lo, receando que pudessem se contaminar. Se o desgraçado não morresse pelas incessantes hemorragias, em um derradeiro estágio surgiam por todo o corpo feridas e chagas infeccionadas, purulentas, sangrando e fedendo asquerosamente.

Completava-se então o quadro funesto, e o doente falecia no horror e no abandono absoluto, esquecido nos hospitais especialmente construídos para isolar aqueles infelizes do restante da população, locais estes cada vez mais lotados, posto que uma vez identificado o vírus na vítima, ela era levada aos mencionados hospitais, ainda que à força.

Um outro aspecto tenebroso da Peste Sanguínea consistia no fato de que o vírus somente podia ser identificado pelos testes somente 3 anos após o contágio. Ou seja, o indivíduo, durante 3 anos, se estivesse contaminado, não teria como sabê-lo, e poderia alastrar a moléstia de forma assustadora. De modo que o número de doentes não cessava de aumentar, e nenhuma das medidas adotadas surtiu o efeito desejado, principalmente no que se relacionava ao uso de preservativos nas relações sexuais. Como é já sabido, o vírus apresentava uma alta capacidade de mutação, assim, posteriormente comprovou-se que o vírus causador da peste havia reduzido consideravelmente suas já ultramicroscópicas proporções, tornando-se capaz de penetrar através dos “poros” invisíveis do material dos preservativos, contaminando dessa forma o parceiro.

As autoridades relutaram por muito tempo em tornar pública tal terrível informação, temendo o pânico generalizado e intentando aperfeiçoar os preservativos, no que foram frustrados. E quando o número de doentes assumiu proporções catastróficas, não houve outro jeito, tudo foi divulgado. Muitos não acreditaram e prosseguiram mantendo relações usando as afamadas “camisinhas”, outras mesmo acreditando na revelação, permitiram que o desejo sexual falasse mais alto, ignorando o perigo da doença para satisfazê-lo. E ainda houve os que foram tomados de um verdadeiro pavor pelo sexo, o que alterou dramaticamente suas relações sociais.

Muitos indivíduos, temendo contrair a peste, principiaram a manter relações amorosas, digamos, um pouco mais “castas”, ou seja, contentando-se apenas com os beijos e com as carícias, que acabavam desembocando na masturbação mútua. No entanto, muitas vezes, não conseguiam frear o imperioso apetite sexual, concretizando então o ato. Porém, mesmo com todos os temores e cautelas, o número de infectados crescia em progressão geométrica, e já havia povos quase que totalmente dizimados pela Peste do Sangue.

Já fora dito que o vírus era altamente mutagênico. Pois mais uma mutação deve ter se desencadeado. Ocorreu que a doença passou a se manifestar bem mais cedo, reduzindo seu período de incubação para pouco mais de 6 meses. No entanto, ela permanecia fatal somente após 5 anos. Durante o longo tempo precedente, os sintomas consistiam em chagas e feridas que, gradativamente, iam se espalhando por todo o corpo. No princípio, surgiam nos órgãos sexuais, nas mãos e nos lábios. Eram como verrugas arroxeadas e/ou avermelhadas que eventualmente sangravam. Ao longo dos anos, as feridas nodosas alastravam-se pelo restante do corpo e se intensificavam os sangramentos, porém o progresso era lento. Verdadeiramente horrível e repugnante era contemplar uma vítima da peste tomada de feridas roxas e vermelhas, ainda que fosse somente no início, quando os lábios assumiam um aspecto monstruoso devido à concentração de feridas no local. Às vezes, as feridas também exalavam um fétido odor.

Um outro sintoma surgia alguns meses após o aparecimento das primeiras feridas. Tratava-se da impossibilidade dos homens em ter uma ereção completa; o pênis, mesmo durante a mais extremada excitação, permanecia parcialmente flácido. Já nas mulheres, quando sexualmente excitadas, não mais ocorria a lubrificação natural do órgão genital, mas era liberado um muco espesso, purulento, e, assim, como as feridas, um tanto mau-cheiroso. Tal era o quadro que se prolongava quase sem alteração durante os quase 5 anos, tempo necessário para a peste ocasionar a morte do enfermo.

Todavia, os leitores devem estar concluindo que se os primeiros sintomas já ocorriam dentro de poucos meses após o contágio, conseqüentemente haveria pouco tempo para que o infectado transmitisse o vírus. Assim também pensavam médicos e cientistas; no entanto, para espanto e horror de todos, isso não se concretizou, isto é, o crescimento do número de casos não se reduziu como se imaginava, mas continuava crescendo rapidamente. A doença passou então a ser estudada com mais afinco pelos cientistas, até que foi constatado que jovens que jamais tiveram relações sexuais, que não eram usuários de drogas, que jamais necessitaram de transfusões sanguíneas e que afirmavam nunca ter mantido o menor contato com algum infectado (visivelmente, ao menos) estavam doentes. O que se sabia era que tais jovens, durante os meses precedentes ao surgimento da doença, freqüentaram, em todos os casos de estudo, casas noturnas onde “ficaram” com pessoas aparentemente saudáveis. O contato físico máximo que ocorreu em tais casos foram inofensivos beijos na boca, boca sem feridas, diga-se de passagem.

Foi então que surgiu a horripilante suspeita de que o vírus, através de alguma ominosa mutação, tornou-se transmissível através da saliva. Foram realizadas pesquisas em pacientes infectados e, diferentemente do que ocorria com o vírus no sangue, o vírus na saliva era facilmente identificável. E comprovou-se: a Peste do Sangue era agora transmissível pelo contato com a saliva...

Após a divulgação dessa funesta descoberta, o beijo, um dos mais belos e ancestrais costumes humanos, foi quase que banido das relações sociais. Somente beijavam-se pessoas que se conheciam de forma íntima, e ainda assim com certas reservas. O temor de contrair a fatal enfermidade era tão intenso que a grande maioria das pessoas que antes possuíam mais de um parceiro ou parceira decidiu de uma hora para outra permanecer com apenas um, com o mais conhecido ou com o par “oficial” conforme o caso. Claro que alguns se recusaram a aceitar o fato, ou nem mesmo se importaram, e continuaram saindo e “ficando” com diversas pessoas. Geralmente, alguns meses depois, tais pessoas percebiam em seus lábios o lúgubre surgimento de algumas feridas arroxeadas...

É desnecessário que eu explicite ao leitor uma descrição do quadro desolador que se seguiu à descoberta da presença do vírus na saliva e que o infectado poderia permanecer com ele em sua boca por seis meses sem apresentar sintomas. O beijo transformou-se de um símbolo de amizade, de prazer, paixão ou amor, em um símbolo de medo e morte. As pessoas já não iam a festas, ou a casas noturnas, porque não poderiam “ficar” com ninguém, uma vez que qualquer contato erótico sem o ato do beijo era naturalmente inconcebível. Quando duas pessoas se apaixonavam, a tortura era quase insuportável, uma vez que se temia a aproximação mútua e os conseqüentes beijos, no entanto, muitos enfrentavam o risco e davam asas à sua paixão, não sem ter o coração repleto de temores.

Posteriormente, percebeu-se que naqueles casos onde o casal de enamorados ainda permanecia unido, aparentemente mantendo-se em verdadeiro sentimento amoroso, não houve manifestação da doença em nenhum dos indivíduos, enquanto que os casais que iniciavam o relacionamento e logo o terminavam, a Peste do Sangue sempre apresentava seus sintomas, mesmo que os ex-namorados não beijassem ninguém mais após o término da relação.

Da mesma forma, foram identificadas pessoas que jamais desenvolviam a enfermidade, embora mantivessem relações sexuais com indivíduos comprovadamente infectados. Foi o que ocorreu com certas esposas que, afirmando amarem seus maridos doentes, continuavam dispostas a manter contatos sexuais com os mesmos. É claro que a ciência estudou exaustivamente tais mulheres, seu sangue, seu sistema imunológico, tentando decifrar esse mistério, na esperança de desenvolver algum medicamento. Tudo em vão. Nada, absolutamente nada de diferente das outras pessoas foi encontrado, e os casos seguiram sem explicação.

Porém... eu... eu tenho minha teoria, talvez absurda, talvez simplória, talvez já imaginada pelo leitor, mas vamos a ela... Creio firmemente que as pessoas que não desenvolvem a doença são aquelas que amam seu par ou que ao menos buscam amá-lo com sinceridade. A Peste não afeta tais pessoas, ela, de alguma forma, por algum motivo desconhecido, respeita seus sentimentos, quando verdadeiros, é como se fosse uma moléstia inteligente, que discernisse o sentimento de um e de outro. É por isso que não esperarei mais. Irei me declarar àquela jovem de olhar tão meigo que arrebatou minha alma... Amo-a. Ou será que apenas julgo que a amo? E se eu estiver enganado com meus sentimentos? E se minha teoria estiver errada? E se após beijá-la eu contrair o vírus? Meu Deus, que dúvida massacrante!!! Mas não, eu irei, eu irei, não posso mais, confiarei no que sinto, confiarei na minha alma, e que se cumpra o que me reservar o Destino...

FIM

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