A ÚTIMA CEIA

A ÚTIMA CEIA

Autor: MCPOCO



Meu rabi faleceu por volta da hora nona. Houve muitas catástrofes naturais e

diversos fatos ocorreram durante sua crucificação, bem como a ressurreição no

terceiro dia. Ele revelou-nos grandes verdades que hoje distribuímos com o mundo

todo. Más há muito mais do que simplesmente contamos nas cartas e evangelhos que

escrevemos. Meu pai! Sei que jurei a meus irmãos jamais falar sobre isso outra

vez, mas não posso deixar que estes segredos morram comigo. Já estou velho, e

aqui nesta prisão não me resta muita coisa além de minhas orações, leituras e

meus escritos pessoais. Por isso decidi redigir esta última confissão e guardá-la

no alforje carregado pelo demônio que andou ao lado de Deus nesta Terra. Ele e

este pergaminho serão as últimas testemunhas deste episódio.

Estávamos na mesa, pouco antes da santa ceia, aguardando o partir do pão, quando o

rabi nos anunciou aquela fatídica sentença: UM DE VÓS ME TRAIRÁ. Todos ficamos

atemorizados com aquela afirmação tão inesperada, mesmo habituados com as

parábolas que geralmente nos propunha. Mas antes que eu pudesse fazer muitas

conjecturas, notei que Simão sinalizava alguma coisa para mim. Queria saber o que

a maioria também queria.

Reclinei-me discretamente sobre seu peito e perguntei delicadamente: “ Quem,

mestre?” Ele, sempre tão doce, olhou-me amistosamente e sorriu. Partiu um bocado

de pão enquanto conversava sussurradamente com Iscariotes , deixando-me ali.

Ansioso! Vívido por uma resposta a que dar aos meus irmãos. “Aquele a quem eu der

o pedaço de pão umedecido, o é.” Sua declaração foi seca e direta. Vi ele molhar o

bocado e entregá-lo a Iscariotes. “O que tens de fazer, faze-o depressa.”

Pronunciou dessa vez, claro e audivelmente. Novamente ficamos confusos.

Iscariotes levantou-se rapidamente e saiu, levando consigo o alforje que sempre

carregava e me deixando mais perturbado ainda. Pensamos no momento que faria algum

trabalho em nome do mestre, já que era encarregado das finanças. Hoje sabemos que

já estava destinado a mudar a história. O rabi terminou a ceia e saímos em direção

ao jardim, perto ao ribeiro de Sedrom. Fomos surpreendidos no gólgota por

Iscariotes novamente, mas agora estava acompanhado pelos escribas e fariseus. E

pensar que ousou traí-lo com um beijo!

Depois de nosso senhor ser levado daquela forma, partimos contristos e furiosos

ao mesmo tempo. Tudo o que eu queria era encontrar Iscariotes e fazê-lo pagar.

Mesmo o rabi tendo ido pacificamente, não podia aceitar o fato de ele ter sido

vendido por míseras moedas de prata. Quanto vale o sangue de um Deus? Encontrei

com o traidor já ao pé da forca, logo depois de ir ao templo e descobrir que ele havia

devolvido aos sumo sacerdotes o salário de seu crime.

Foi uma cena horrível. O corpo balançava-se vagarosamente debaixo de um carvalho

enquanto a cabeça encurvada demonstrava que deveria ter sofrido muito. Seus olhos

estavam abertos e fixaram-se em mim. Corri desesperadamente para o mais longe que

consegui daquele quadro de horror. Aquele lugar ficaria conhecido como campo de

sangue. Mas não foi a última vez que o vi.

Logo após o último suspiro do mestre, fui visitar seu corpo ainda quando estava

naquela cruz outra vez. Tinha saído dali antes quando me confiara sua mãe para ser

minha própria mãe ( sinal que mesmo na dor se importava com as pessoas). Decidi

vê-lo mais esta hora para lembrar-me das mãos que um dia curaram tanta gente.

Agora não se moviam mais. O lugar estava quase deserto. A grande multidão se

dispersara e os soldados haviam se retirado após quebrarem as pernas dos outros

dois homens ao seu lado, mas haviam só perfurado seu lado com uma lança. Um

centurião próximo a ele murmurou algo como ele verdadeiramente ser o filho de Deus

e também caminhou para longe do local por alguns instantes. Fiquei ali, a seus

pés,observando-o. Pensando em tudo que havia acontecido até ali. Uma vez mais vi

Judas Iscariotes.

Ele se arrastava por entre algumas árvores que rodeavam o lugar, se aproximando

desgrenhadamente. Vinha cambaleando como um ébrio, a cabeça ainda baixa, as

vestes rasgadas, o corpo todo dilacerado. Parecia que havia sido atacado por

animais do campo. Eu fiquei imóvel, sem reação diante da aberração que vi diante

de mim. Não eram olhos humanos que me contemplavam. Um demônio se apossou daquele

corpo para vir me atormentar. Ele abriu a boca que cheirava a carniça, e

titubeou-me algumas frases funestamente:

- Deixe-me passar. Deixe-me passar para beber seu sangue. É minha sina. Tenho que

beber o sangue do rabi para pagar por meus crimes. Não vou feri-lo João, mas

deixe-me beber do sangue que rega a terra.

Eu não ousava pronunciar um único som diante daquela aberração. O máximo que fiz

foi dar dois passos para o lado e assisti-lo rastejar até o corpo na cruz. Ele

pareceu soerguer a cabeça dificultosamente, tentado alçar a visão até a face de

Jesus. Mas logo se voltou para o baixo e começou a lamber as gotas que manchavam

a areia umedecida. Um ritual macabro que nunca havia presenciado antes. Ele se

movia como um chacal que se alimenta da carcaça dos animais mortos na floresta.

Sorvia prazerosamente aquela mistura heterogênea pulsante das entranhas da terra.

E , a cada nova tragada, a cada nova investida sua, parecia revigorar-se

milagrosamente. Quando olhei pela última vez estava quase completamente de pé,

já sem tantos machucados. Nem apresentava tantos hematomas no corpo. Foi quando

não tive mais forças e caí esmaecido sobre o piso frio do monte chamado caveira.

Fui despertado pelos guardas que retornavam para tirar os corpos antes do sábado

e disparei para encontrar-me com os outros. Quando me reuni a eles, relatei passo

a passo minha caminhada desde o getsêmani até ali. Todos me olhavam estupefatos,

pensando que havia ficado louco. Mas como prova havia em meus braços o alforje

que Judas sempre carregava. Era um presente dado a ele por Jesus, e tinha-o

abandonado ao meu lado quando acordei. Agora estava em meu domínio para convencer

os outros de que não foram visões simplesmente que tive. Dentro dele constavam

uma corda rompida em forma de forca e uma profecia escrita também a sangue, que

dizia: O QUE TENS DE FAZER, FAZE-O DEPRESSA!

Alguns deles acreditaram em mim. Outros acusaram-me de mentiroso e ludibriador, mas

o fato é que me alertaram para que jamais falasse a respeito disso novamente com

ninguém. Ajuntamos aqueles malditos objetos e fizemos uma fogueira. Apenas

conservei comigo este alforje, alegando ser a última coisa de elo entre nós e o

mestre de material ainda em nosso meio. Enquanto eu e Pedro víamos a fumaça ainda

se expandir no céu, ao longe surgiram Maria Madalena juntamente com outras mulheres

que diziam ter o rabi ressuscitado dentre os mortos. Nos olhamos discretamente mais

uma vez, e ele passou o dedo entre os lábios me pedindo silêncio. Corremos com elas

para avisarmos os outros. Depois desse dia, nunca mais falamos discutimos sobre

isso.

Esta, filhinhos, é a verdadeira história de como surgiu o primeiro imortal

amaldiçoado que pisou sobre a face da Terra. Hoje há boatos de que existem seres

que andam pela noite sugando a vida das pessoas através do sangue. Chamam-nas de

vampiros. Mas quando me chegam aos ouvidos tais histórias, tudo de que consigo me

lembrar é de Judas Iscariotes e o que o mestre lhe advertira na última ceia.

FIM

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