O VERME

O VERME

Autor: AUGUSTO GALERY



AUTOR: AUGUSTO GALERY

O verme virou-se para a mulher de dentro de seu aquário, como se pudesse encará-la de sua face sem olhos e sorrir um sorriso maligno, mesmo sem boca. Flutuou no ar do aquário contorcendo-se. E instantes depois penetrou na cabeça da mulher, perfurando sua testa com brocas invisíveis.

A mulher debateu-se enquanto o verme penetrava seu crânio e em seguida todos os objetos da casa tomaram vida.

O último desejo consciente que a mulher teve foi que as vozes vindas da geladeira e do escorredor de pratos fosse uma alucinação.

Completamente entregue aos objetos da casa, a mulher tentou desligar as trempes do fogão, que giravam e combustavam enquanto os fósforos, da caixa com centenas, ignizavam-se espontaneamente no gás que escapava.

Abriu a torneira, mas a água tentava-lhe escapar, assim como o pano de pratos enrolou-se em sua mão, sem deixá-la usá-lo para abafar as chamas. Com um grito “banzai”, o pano transformou a mão da mulher numa grande tocha.

Só então ela se deu conta do barulho: alto e arrastado, o som da geladeira indo em sua direção era preenchido de diversos outros sons: ovos quebrando; suco, água e leite derramando-se; tigelas e pratos de restos de comida escorrendo e estilhaçando-se.

A mulher virou-se mas, antes que ela pudesse esboçar outra reação, a porta da geladeira abriu-se, todo o seu conteúdo escorrendo. A mulher ficou prensada entre o frio, sua face mergulhada no gás congelado do freezer, e o calor das chamas do fogão que, a essa altura, anelava seus cabelos e desencarnava seu pescoço.


Como foi que o verme chegou em Forestier é difícil definir. Foi durante um picnic com a família: esposa, filhos e cachorro observaram quando o homem perdeu a razão – em um instante ótimo, no seguinte parecendo estar no último grau de agonia – e jogou-se do desfiladeiro.

A pequena Maxime, de quatro anos, arregalou os olhos e um calafrio escorreu-lhe, molhando a terra a seus pés. O jovem Martin apenas gritou e depois fechou os olhos, repetindo para si mesmo que era brincadeira, era brincadeira, era brincaderia.


Não era brincadeira. Forestier caiu por 30 metros, mergulhando no rio lá embaixo e quebrando o pescoço ao colidir com a água.

Mas o verme não o deixou ir tão fácil. E Forestier decidiu fazer o mesmo. Afundou dentro do rio e deixou-se levar até o mar.

O galeão espanhol que se deitava ali deu uma idéia ao homem. Arrancando as tábuas velhas e, com ajuda de pedras e um ouriço-do-mar, construiu, ali mesmo, no fundo do mar, uma pequena cabana, que o protegesse da chuva e das correntes frias.

O verme ainda resistiu por anos e anos, devorando o mundo que Forestier mantinha na cabeça.


Quando, por fim, o verme desistiu, saiu da mente vazia do homem, durante a noite.


Depois de doze anos desaparecido, Forestier bateu à porta de sua antiga casa. Seus olhos eram vazios e ele cheirava a maresia.


Três anos depois, Martin se habituara ao pai, mas Maxime ainda o entendia. Não que fosse fácil para Martin: tentar viver nos dois mundos o sufocava, mas ele amava o pai.

Na joalheria onde Forestier comprava mais colar de pérolas para o túmulo da esposa, eles conversavam. A mãe de Martin e Maxime havia morrido anos antes do retorno do pai. O pai, ao saber, comprou-lhe uma pérola para que ela se alimentasse.

Quando a pérola desapareceu, Forestier convenceu-se – a despeito da opinião dos filhos de que a pérola fora roubada – de que a esposa precisava de mais e mais.


Maxime foi embora da joalheria, os olhos cheios de ódio, convencendo-se de que nunca mais amaria outro homem.

- E sua pós-graduação? – O pai perguntou a Martin, de seu mundo. O corpo do jovem tremeu e seu peito encheu-se de angústia, derramando lágrimas em sua boca. O ar lhe faltou. Ainda tentou conversar:

- Do seu mundo ou do meu?

- Do meu, é claro! – Forestier encerrou qualquer possibilidade de conversa – Engenharia Elétrica! Está bom para você?

E Martin, afogado em lágrimas, aquiesceu com a cabeça.

FIM

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