O JOGO

O JOGO

Autora: ANDREIA SANTOS






Vou contar-te um segredo: adoro New Orleans.

Adoro a cidade que se transforma na noite. Adoro a musica que nasce em cada canto. As pessoas que parecem fluir de roda viva de traições, assassinatos e magia misturada com o encanto do Vudu dos pântanos e com a alegria que mora no fundo de uma garrafa de rum.

New Orleans...... se pensar bem não existe outro sítio no mundo para mim. Terra lendária de Piratas, de ladrões e vigaristas. Onde o excêntrico se torna normal.

Mas o que mais me agrada na cidade é que tudo pode acontecer se passares lá tempo suficiente. E isso para alguém da minha idade é um ponto muito importante. Já caminho nesta terra maldita há tanto tempo que já vi de tudo... já nada me espanta! Ou pelo menos era o que pensava.


Tudo começou na noite em que resolvi dar um passeio até aos pântanos que rodeiam a cidade.

Os da minha espécie evitam os pântanos. O perigo não está nos terrenos traiçoeiros nem nas cobras ou jacarés que fervilham nas águas estagnadas. O mal vem das pessoas que moram no Bayou... os negros do bayou têm uma memória longa... o vudu que praticam religiosamente todo o santo dia não os deixa esquecer que nós existimos como aconteceu com a maior parte dos homens. E ao contrário de todas as outras rezinhas e sortilégios idiotas, os sacerdotes Vudu conseguem realmente magoar-me. “Por quê?”, perguntas tu .Sim! Eu sei que é muito difícil imaginar que uma criatura poderosa e magnífica como eu possa ser atacado por um padreco preto ranhoso... mas infelizmente é verdade. O Vudu é a única religião no mundo que se dedica exclusivamente aos mortos, sabias? Os vivos utilizam os mortos para fazer bem ou mal aos vivos... os vivos têm controlo sobre os mortos.... e diga-se de passagem: isso não significa nada de bom para mim....

Mas voltando ao que interessa. Andava eu descansado da minha vida, pensando o que seria o meu jantar, se um jacaré gordo se uma daquelas pretinhas deliciosas que vira no outro dia no bairro francês, quando ouvi chamarem o meu nome. Marcell!!

Durante cinco segundos tive a ilusão de que se fundia com o tronco, não sabendo se era ela que tinha folhas e galhos a nasceram-lhe do alto da cabeça se era um tronco velho e retorcido que ganhara uma boca e dois olhos escuros e fundos.

Marcell! Repetiu afastando-se do tronco morto, o que me permitiu ver bem a sua triste figura. Era uma velha, negra, magra como um cão rafeiro e tão curvada que quase batia com o nariz nos joelhos. Tinha uns míseros cabelos que resistiam presos a uma caveira de pele arrepanhada onde os olhos eram dois buracos escuros e fundos, mas tão brilhantes como duas brasas de carvão incandescentes. No pescoço tinha pendurado um estranho colar, feito com dentes brancos e pontiagudos... estremeci ao reconhecer a origem dos enfeites.

Que queres velha? E como sabes o meu nome? – perguntei de forma agressiva.

Limitou-se a rir baixinho, o que a fez parecer um gato engasgado.

Nós sabemos quem tu és Marcell... sabemos sempre quem são os da tua espécie e quando pisam as nossas terras. Devias saber disso. – Tinha uma voz rouca, como se não a utilizasse há muito tempo. Aquilo irritou-me. Nunca gostei de ser controlado. Que queres? – voltei a perguntar, sendo que novamente ela se riu da irritação patente na minha voz..

Vais fazer um acordo comigo. E não faças essa cara de parvo, morto! Vais faze-lo porque eu sei que foste tu que mataste a rapariga que encontraram de garganta aberta naquele beco. E sabes o que nós fazemos aos sanguessugas como tu não sabes? Por isso vais fazer um acordo comigo...

Limitei-me a olhá-la sem falar. A maldita viu no meu silêncio um incentivo para continuar.

Sabes qual é o problema em praticar magia negra, Marcell? Nunca se pode parar. Uma vez que começamos não podemos descansar. O mal é como um círculo, volta sempre ao ponto de onde partiu e eu ainda quero andar por cá mais uns tempos. Acontec, morto, que me meti com quem não devia e o círculo fechou mais depressa do que estava a espera, e ainda quero andar por cá mais uns tempos. A única solução que tenho é enganar a morte...

Neste ponto tive de me rir. Não se podia enganar a morte, a não ser que se fosse como eu. Mas só de imaginar o sabor da velha senti-me doente. Nunca poria a boca naquilo!! Ela pareceu perceber o que estava a pensar porque tornou a dar uma gargalhada seca e abanou a cabeça.

Não, vampiro, não quero ser um dos teus. Já tive mortos que cheguem na minha vida para andar no mundo como um deles.

O que quero de ti é que voltes a fechar os portões do outro mundo. É que sabes, qualquer mortal que se aproxime deles cai instantaneamente sem vida no chão...

Logo precisas de alguém que já não esteja vivo...

O riso...

Morto mas esperto....

E onde estão esses portões? – perguntei

No jardim das flores La Blanchette.

O “jardim das flores La Blanchette” a que a velha se referia era nada mais nada menos que o cemitério La Blanchette. Era o mais antigo da região do sul, e os seus ocupantes remontavam ao tempo em que New Orleans era a capital francesa do Louisianna.

E se recusar?

Não o vais fazer... se o fizeres serão os teus dentes a enfeitar-me o pescoço....


No dia seguinte, ao acordar, afastando o cadáver roliço da saborosa companhia da noite anterior, dirigi-me à varanda onde fiquei fintando o céu estrelado da cidade e a pensar no que me esperava... decidi não pensar muito no assunto, afinal há 450 que me esquivava da morte.

Tomei um longo banho de agua a ferver, o sangue seco da mulher pintava a banheira branca à medida que ia saindo da minha pele. Vesti um dos meus fatos pretos e olhei-me ao espelho. Quem me devolveu o olhar foi um atraente rapaz de 26 anos. Pele branca, cabelo cor de bronze um pouco comprido e penteado com aparente descuido, lábios bem desenhos sobre um maxilar quadrado puramente masculino. Os olhos brilhantes cor de caramelo líquido. Com uma mão toquei no espelho, pensando se seria hoje que pagaria por todo o mal que fizera durante 4 séculos.... com um sorriso traquina e um encolher de ombros, dei meia volta e sai de casa.


Ah!! O dramatismo da cidade é envolvente! A noite estava perfeita para uma aventura contra a morte: quente como todas as noites de verão no Louisianna, o céu estrelado onde brilhava orgulhosamente a lua cheia, e uma brisa quente que trazia com ela o cheiro das flores exóticas que preenchiam as varandas das grandes mansões.

O caminho até La Blanchette foi feito sem problemas e depressa dei por mim parado em frente aos grandes portões de ferro do cemitério. Saltei e aterrei suavemente como um gato em cima de uma das pedras tumulares mais próximas. Serpenteando como um fantasma procurei qualquer indício que me dissesse onde estavam os portões do inferno. A banda sonora da minha aventura era o vento, assobiando entre a folhagens das arvores altas, e o piar das corujas que pareciam o público esperando pela morte do herói... sorriso traquinas de novo – sorte não ser herói, sempre tive uma queda para o vilão.

Estava a ficar com a impressão que a maldita velha tinha estado a enganar-me quando cheguei a uma encruzilhada; campas nos quatro lados do caminho, mas no centro estava um imponente jazigo de granito negro. Parei não querendo acreditar no que estava a ver. Sempre pensei que a expressão “portões do Inferno” fosse uma metáfora, mas se estava certo ali estavam eles. Aproximei-me devagar e se ainda tivesse coração posso dizer que estaria a bater descontroladamente.

O jazigo era enorme. Todo feito de pedra maciça negra inclusive as portas. Estas estavam ricamente trabalhadas. Alguém tinha perdido muito tempo a esculpir dezenas de milhares de figuras, directamente na rocha. Quando observei com mais atenção apercebi-me que as figuras retractavam A Grande Batalha, a queda dos anjos, quando Lúcifer anjo caiu no inferno. O meu olhar percorreu as portas até a parte de baixo. As figuras da base das grandes portas estavam todas em visível sofrimento, corpos nitidamente mortos amontoavam-se aos pés de enormes monstros disformes. O Inferno. O meus olhos descobriram uma figura que me pareceu vagamente familiar... desviei rapidamente os olhos.

Fechar os portões do inferno... Bem! Fechados estão eles! que quer a velha que eu faça??

Experimentei empurra-los mas mesmo com toda a minha força eles não se mexeram. A ultima vez que a minha força não tinha conseguido abrir, partir e fechar qualquer coisa ainda se pensava que a terra girava em trono do sol!

Um pensamento cruzou-me a mente! Sorri! E porque não?, perguntei a mim próprio.

Aproximei-me das grandes portas de pedra e bati três vezes. De forma automática o grandes portões abriram-se levemente como se fosse feitos de papel. Estiquei-me tentando ver alguma coisa, mas assim que me encostei à porta o interior do jazigo iluminou-se. Á minha frente estendia-se uma enorme escadaria de pedra negra assim como as paredes, de onde irrompiam estranhas lamparinas que projectavam uma luz verde que tremeluzia à minha passagem.

Já estava a descer há alguns minutos e as escadas continuavam as suas curvas e contracurvas. Quando começava a ficar impaciente a escadaria terminou abruptamente. A estranha luz verde desapareceu e os meus olhos de predador nocturno não conseguiam penetrar na escuridão. Logo aí percebi que alguma coisa estava errada. Fiquei parado, à espera de alguma coisa... lentamente, como o nascer de um sol que eu já não via há tanto tempo, a luz verde voltou, inundando a sala por completo. E eu vi algo que nunca imaginei.


Estava numa enorme sala de pedra negra. Tão grande que não lhe conseguia ver o fim por mais que tentasse. Estava vazia, à excepção de um enorme trono negro que parecia elevar-se no chão, como se fizesse parte da rocha viva... e ele estava sentado no trono.

Era tão alto como eu. Moreno, com o cabelo negro a agitar-se numa brisa inexistente. Vestia de negro e à cintura pendia-lhe uma enorme espada. Os olhos de um verde impossível brilharam ao fitar-me e as descomunais asas negras abriram-se em todo o seu esplendor... Marcell. O meu nome foi dito num sorriso.

Incapaz de dizer o que quer que fosse fitei a criatura enquanto ele se levantava calmamente e se dirigia a mim. Senti algo quente no estômago, algo que me pôs os ouvidos a palpitar. Demorei a reconhecer a sensação de medo... já não o sentia havia uns tempos.

De todos os que ela podia mandar, escolheu quem mais me agrada. Não precisas ter medo. De todas minhas crias sempre foste o favorito. sempre me deste... presentes agradáveis ao longo de séculos – rematou com um sorriso.

Percebi que se estava a referir às minhas vítimas.

Em que te posso ajudar Marcell?

A velha mandou-me...

Um sorriso puramente maligno rasgou-se no lindo rosto.

Mandou? Interessante.... – sibilou – “um morto não pode morrer” certo? – disse, rindo-se cada vez mais.

Ela escapa-me há muito tempo, essa tua velha. Pensava que era desta que a ai apanhar, e eis que ela manda um morto fechar os portões! Delicioso.... sempre tive uma queda por pessoas audazes, sabes? Acho que é esse o meu defeito. Claro que a podia levar deste mundo, era só querer, mas aprecio os joguinhos que os humanos fazem para fugir à morte. Acho que quando são bem feitos devem ser recompensados, não concordas cria?

Acho que sim... – a minha respostas fê-lo sorrir ainda mais.

Ficou calado, olhando-me atentamente, até que fiquei com a impressão que conhecia todos os meus pensamentos.

Mas agora temos um problema. De certo que consegues ver qual é...

Problema? Hummm... eu não posso matar a velha, ela é uma sacerdotisa Vudu e... – parei de falar no ponto eu que ele jogou a cabeça para trás e desatou ás gargalhadas.

O problema não é esse Marcell. Vê bem: ninguém pode passar as portas do inferno e voltar para trás. Ninguém. Vivo, morto ou... vampiro – esclareceu cravando os seus olhos em mim.

Não! – gritei- não posso ficar! Não estou vivo, não posso morrer!

Sim... isso é verdade.... – voltou a sentar-se no trono, apoiando um braço no joelho onde ficou com um ar pensativo.

Bem... é verdade que não podes morrer, e também é verdade que és uma das minhas crias predilectas, por isso vou propor-te um acordo.

Ao ouvir a palavra acordo estremeci. Já tinha tido a minha cota parte de acordo neste século!! Que tipo de acordo? – perguntei num tom amuado que o fez sorrir.

É mais um jogo Marcell. E eu sei que tu adoras jogos.... passas a vida a faze-los com as tuas vitimas.... um jogo de dados.

De dados??? – a minha incredulidade fez com que o verde dos olhos se tornasse mais brilhante.

Isso mesmo. Um simples jogo de dados pela tua alma. Se ganhares ganhas 10 anos. Ao fim desses 10 anos voltas e jogamos de novo.

Até quando? – mas ao fazer a pergunta entendi o quanto ridícula era....

Marcell Marcell.... até tu perderes é claro.... – a sua voz carregada de puro veneno.

Fitei-o tentando entender o porque daquilo tudo. Podia destruir-me com um olhar mas não o fazia. De repente entendi. Ele brincava comigo da mesma maneira que eu brinquei com as minhas vítimas antes de as matar, durante todos estes anos. A diferença era que eu só dava mais algumas horas ele dava-me 10 anos, partindo do principio que eu ganhava o estúpido jogo.

Encolhi os ombros e sorri pela primeira vez. Vamos a isso!

A morte abriu uma das mãos onde estavam dois dados vermelhos. O jogo é simples, quem tirar o numero mais alto ganha.

Assenti com a cabeça e fiz-lhe sinal que fosse o primeiro. Agitou os dados dentro das duas mãos em concha, parou olhou-me e sorriu. Os dados voaram. Sete.

Esticou o braço e os dados cruzaram o ar em direcção à sua mão. Quando me passou os dados as longas unhas negras marcaram-me a pele e os olhos brilharam ainda mais.

Fiquei ali parado com os dados na mão, sentindo a sua forma enquanto os apertava e de repente toda a hilaridade da situação caiu-me em cima: estava a jogar aos dados pela minha alma com a morte!! Um sorriso iluminou-me o rosto. Pensava que tinha perdido a alma há 450 anos atrás... pelos vistos estava enganado.

Os dados caíram no chão e rolaram durante um tempo que pareceu infinito..... dez.

Ganhei!! Ganhei à morte!! Pensei.... rodei nos calcanhares para encarar a criatura mas ela tinha desaparecido. Depois de uma breve hesitação corri a toda a velocidade em direcção à escadaria, e logo avistei as portas entreabertas. Estava já com uma mão na porta para sair quando ouvi a sua voz: dez anos Marcell... dez anosss – voltei-me apenas para ver um par de olhos verdes a brilharem na escuridão que envolvia agora as escadas e precipitei-me para o ar húmido da noite.



Passaram três dias desde então. Três dias nos quais descobri que as poucas coisas que me afectavam já não o fazem. Ganhei dez anos de nasceres do sol, dez anos em que posso sair de dia, dez anos a viver.... mas só ontem pensei numa coisa, talvez não tenham sido só estas fraquezas a desaparecer. Ontem passei a noite no bayou e ninguém deu pela minha presença. Passeei-me no jardim da casa da velha e ela não me sentiu, deslizei para a cama dela onde a ouvi tossir e fungar toda a noite e ela não deu por isso...

Posso ter ganho o raio do jogo, mas daqui a dez anos tenho de lá estar outra vez e a culpa é toda dela!! A única coisa que te posso garantir é que ela não estará aqui daqui a dez anos! Sei que jurei não pôr a boca naquilo, mas isso também não fazia de qualquer maneira..... era uma morte demasiado rápida.......


Sentado no trono de pedra negra ele via, com um sorriso maléfico, a cria no cimo da arvore, sentada, à espera que a caça começasse.....

FIM

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