SATURNO, O VAMPIRO

SATURNO, O VAMPIRO

Autor: Saturno Vampiro

300"

A tarde na floresta era quente e úmida.

Saturno caçava.

Alisou seu colar de dente de onça, pedindo sorte.

Sabia que a hora não era boa, mas aquele fora um dia ruim de caça.

Não era um velho para viver de frutas, mel e bondade dos mais novos.

Precisava voltar com algo.

Pensou em abater um bugio, apesar de preferir uma capivara que era maior e alimentaria a tribo por umas duas luas.

- “Alem de trazer elogios ao caçador.”- pensou sorrindo.

Olhou para o céu alem da copa das árvores que começava a se tingir de tons arroxeados.

Seria o bugio, concluiu ele.

Quando retesou o arco, já com o mais gordo da árvore na mira ouviu um ruído furtivo.

Era um som estranhamente familiar a passos humanos.

Escutou a floresta por alguns momentos.

Quando achou que havia imaginado ouviu novamente, e mais próximo agora.

Virando o rosto, notou um vulto se aproximando em alta velocidade.

Lançou a flecha, atingindo o que pensou ser uma onça, na cabeça.

Um instante depois de ser derrubado viu que seu atacante era um ser humano.

O olho direito havia sumido sob a flecha, cuja ponta saia por detrás da cabeça junto aos cabelos esvoaçantes.

Ele tinha os traços egípcios.

Saturno tentou levantar, mas com a mão esquerda o homem atingiu seu peito com um golpe tão forte que o índio quase desmaiou.

O rosto do caraíba estava totalmente desumano, monstruoso.

Antes que pudesse se defender do estranho ser, foi imobilizado.

Teve o seu pescoço, pescoço mordido e o sangue sugado vorazmente.

Estava roubando sua alma (assim ele acreditava)!

Tudo aconteceu muito rápido.

Ele tirou uma faca de ferro benzido por um jesuíta, pediu ajuda a Tupã seu deus do sol e esfaqueou o ser.

Não pela força do golpe, não pela fé em Tupã, mas o golpe surtiu efeito.

O estranho urrou de dor empurrando o guerreiro e quebrando seu colar de dentes.

A ferida em suas costas escorria sangue e ele se afastou um pouco.

Saturno pôde ver a verdadeira natureza do homem, monstruosa e bestial.

Fingiu estar inconsciente na esperança de que a criatura se fosse, mas ouviu seus passos arrastados voltando.

Um arrepio o assaltou quando sentiu a criatura sobre si.

A mão do monstro tocou seu braço e no instante seguinte não estava mais lá.

Foi decepada pela faca afiada de Saturno.

O horripilante ser gritou de surpresa, segurando o coto do braço.

Antes que pudesse reagir, o corajoso guerreiro decepou sua cabeça.

Com um baque surdo ela veio ao chão, a agonia estampada na face.

A manhã se aproximava velozmente.

Saturno quase desfalecendo. O pescoço latejava.

Sua visão se nublava pela falta do sangue que perdeu.

O índio sentia que ia morrer e resolveu tomar de volta sua alma.

Agachou aos pés do morto, enfiando a boca no pescoço cortado sugou em longos goles.

Pensou assim ter recuperado sua alma.

Enganou-se, pois acabava de perdê-la para sempre.

A fraqueza tomou conta de seu corpo e ele caiu.

Saturno estava morrendo.

O dia chegou torturando-o com agulhadas invisíveis por todo o corpo, pensou delirantemente ver seu inimigo morto desfazer-se em pó ao contato com a luz do sol.

Saturno fechou os olhos. Estava morto.

Três dias após ser mordido renasceria como vampiro.

Após o que pareceu uma eternidade seus olhos se abriram.

Tudo parecia estranho. Igual, porém diferente.

Apesar da escuridão profunda enxergava como se fosse dia.

Entretanto sentia a proximidade do amanhecer.

Sua pele se arrepiava, com a possibilidade do sol lhe alcançar.

Ouvia o murmúrio das arvores que se perguntava que estranha criatura era aquela.

Mesmo após morto pensava e se movia?

Um lobo-guará uivou pra Jaci, o índio sabia como o animal se sentia. Tentou apanhar a faca, mas esta queimou sua carne.

Agarrou então seu bem mais precioso: o colar.

Um dos dentes de onça ficou no chão mas não havia mais tempo.

Saturno começou a correr com o sol em seu encalço.

Logo atingiu uma velocidade tamanha, que nem uma flecha poderia alcançá-lo. A floresta passava como um borrão em sua frente.

Infelizmente para ele o sol é mais rápido que uma flecha, e quando estava para ser alcançado viu um buraco.

Saltou enfiando meio corpo. Cavando rapidamente, foi penetrando cada vez mais fundo rumo à relaxante escuridão.

Após um sono sem sonhos, acordou. Faminto.

Sentindo a proximidade da noite, Saiu lentamente de seu esconderijo.

Lá fora, o frio da noite o esperava.

Não a noite não estava fria...

Frio estava Saturno. Seu corpo, sua alma.

Correu pela floresta, livre como um espírito da noite.

Quando teve fome, Saciou-a com um animal.

A carne, insípida, mas o sangue... Este tinha um sabor incrível!

Logo o índio o beberia exclusivamente.

O tempo passou, e ele parou de matar indiscriminadamente qualquer animal.

Ceifava a vida dos mais velhos e doentes, que pediam para morrer.

Quando não podiam chegar até ele, clamavam por sua visita à qual ele nunca faltava sempre pronto a lhes aliviar do fardo da vida.

Sua integração com a natureza era total.

Em pouco mais de um século teve poucos contatos com humanos.

Estes encontros viraram relatos e posteriormente lendas, sobre um ser que vivia nas entranhas da selva, montado em um imenso porco do mato.

Foi chamado de Curupira e muitos outros nomes através de sua imortalidade.

Justiceiro da selva, não deixava que os caçadores, índios ou não, escapassem impunes quando matavam apenas por prazer.

Cinqüenta anos após ter sido transformado, um fato o tirou do rumo que levava até então.

Cavalgava à noite, percorrendo as matas no lombo de seu porco, quando ouviu um ruído.

Eram vozes humanas conversando animadamente.

Resolveu investigar mais de perto.

Como uma sombra moveu-se entre os homens sem que estes o notassem.

Entendia perfeitamente a língua estranha que falavam, mesmo sem nunca a ter escutado antes.

Nada que merece se sua atenção.

Apenas um grupo de holandeses ambiciosos em busca de esmeraldas.

Retirou-se tão silenciosamente como chegou.

Foi quando o inesperado aconteceu.

Um dos homens se levanta e sob o pretexto de urinar se embrenha na floresta.

Era um vampiro também.

Logo começou a seguir Saturno a toda velocidade que podia.

O vampiro índio pressentiu que estava sendo seguido.

Parou de repente enquanto o outro se aproximava.

Os dois se encararam por um bom tempo antes de qualquer um falar.

- QUEM É VOCÊ? - gritou Saturno.

O homem não respondeu; aproximou-se alguns passos do índio, com a espada ao alcance das mãos.

Ele era alto e loiro; sua barba, comprida.

- A que clã você pertence? - Perguntou ele.

- Suas palavras são estranhas... Não pertenço a ninguém, sou uma criatura da floresta!- Exclamou o índio.

O loiro ponderou por alguns instantes.

- Meu nome é Ivan, o prússio. Meu mestre, Euronimous, sumiu há mais de um século nestas selvas. - disse ele.

- Não sei quem é seu mestre. Eu sou o guardião dessas matas há muitas luas e se quiser posso ajudar a encontrá-lo. - avisou Saturno.

De comum acordo, os dois embrenharam-se na mata, sumindo no inferno verde.

Dos bandeirantes que acompanhavam Ivan, apenas dois voltaram vivos. Os outros morreram, consumidos pela febre dos pântanos.

Décadas se passaram, e eles ainda tentavam descobrir algo sobre o paradeiro de Euronimous, mestre do vampiro loiro.

O índio não se sentia muito à vontade com a busca, pois havia percebido que o mestre de Ivan não era outro senão o vampiro que o havia assassinado.

Por mais que Saturno os empurrasse para pistas falsas, chegou o dia em que o inevitável aconteceu:

Acharam os restos de Euronimous.

As roupas ainda largadas no solo, e, apesar de não haver um cadáver no local onde o corpo se desintegrou, estranhos fungos negros cresciam.

A fivela de ouro e as roupas finas não negavam: era Euronimous.

- Mestre, o que aconteceu com o senhor... – murmurou Ivan ajoelhado.

Saturno reconheceu o lugar e também sua faca de ferro que agora não passava de uma mancha de ferrugem.

- Quando descobrir quem fez isso... Ele perderá as tripas. – Gritou o prússio.

O silencio do índio era incriminador, mas Ivan nada percebeu, devido ao estado de frustração que em que se encontrava.

Após alguns meses, o vampiro loiro já havia desistido de achar o culpado.

- O assassino de meu mestre já deve estar morto a essa altura. - Disse ele resignado.

Euronimous carregava em seus pertences um belíssimo punhal, com o qual Saturno foi presenteado.

- Notei como você o olhou quando achamos o resto de meu Senhor! – Sorriu Ivan ante o espanto do vampiro índio.

O índio nada tinha de valor, resolveu então arrancar um dente de onça de seu colar e o deu para seu companheiro loiro.

O prússio ficou surpreso com aquilo.

- Aceite. Isto foi quando matei uma onça com as mãos. - explicou Saturno orgulhoso.

- E ganhou um colar de dentes? – divertiu-se Ivan.

- Não. Ganhei também esta marca de coragem! – retrucou o vampiro índio, mostrando uma cicatriz na face.

- Obrigado, então! – Disse Ivan respeitosamente, enfiando o dente na algibeira.

Meses depois, Saturno perceberia o erro que havia cometido.

Apesar de apreciar a companhia do índio, Ivan resolveu voltar à cidade.

Fazia setenta anos que estava embrenhado na mata atlântica.

Precisava voltar à Europa para se certificar de como estavam seus negócios.

Após conversarem muito, convenceu Saturno a lhe acompanhar.

Mas antes quis ir até o local onde seu mestre morrera uma última vez.

Insistiu em ir sozinho.

Quando chegou lá, observou bem o lugar, como se quisesse guardar na memória o túmulo verde de seu mestre.

Foi quando notou algo que lhe passara despercebido.

Havia um dente de onça caído nas imediações de onde estivera o corpo.

O dente que ganhara de Saturno havia sido serrado ao meio.

Pegando o pedaço sujo de limo, encaixou com o seu.

Cada imperfeição combinava terrivelmente.

Dois pedaços de uma única peça.

No começo, imaginou que estava vendo coisas; depois, tentou achar uma explicação no fato de terem visitado o corpo meses atrás.

Logo seus olhos imortais se tingiram de fúria.

A peça estava envelhecida demais para estar lá há tão pouco tempo.

O alemão percebeu na faca enferrujada um novo significado.

Quando viu que não conseguia segurar a faca, entendeu como seu mestre havia morrido.

Enrolou a arma em um pedaço de tecido e apressou o passo.

Enquanto voltava para o local marcado de onde partiriam, tecia as mais variadas teorias.

Aquele índio teria uma surpresa mortal.

Ivan tinha certeza que ele nunca chegaria até a cidade.

Saturno notou que seu amigo parecia aborrecido, mas supôs que fosse pela visita ao mestre morto.

Os dois seguiram caminho na escuridão absoluta, quando o vampiro prussiano lhe fez a pergunta que mais temia:

- Como você virou um vampiro?

O índio pensou em mentir, mas temia não ser convincente.

- Bem... Na aldeia nós fazíamos trocas com os produtos dos brancos e certa noite eu fui atacado e... – gaguejou Saturno.

Ivan parou, encarando-o nos olhos.

Os dois estavam a poucos metros de uma cachoeira.

- Você o matou? - perguntou o loiro friamente.

Sua mente queimava de ódio por dentro.

Finalmente o índio percebeu que ele sabia.

Não tinha idéia de há quanto tempo, mas sabia.

O prussiano descobriu a faca, segurando o cabo com um pano.

- Foi com esta faca? – gritou ele.

- Não foi por querer, eu era gente e ele me mordeu! Eu só me defendi! – implorou o vampiro índio.

Ivan parou espantado e ofendido.

Não conseguia aceitar a idéia de que um vampiro milenar tivesse sido morto por um simples humano.

E pior: não era um caçador, não era nem mesmo um civilizado.

Considerava aquilo impossível.

- Mentiroso! – gritou o loiro possesso.

Atacou Saturno.

Apesar de conseguir se desviar para não ser decapitado, não escapou sem ferimentos.

A Faca cortou sua garganta profundamente.

O índio não conseguiu gritar. O máximo que fez foi empurrar o prussiano.

Ferido, tentou afastar-se para a beira do rio.

Pela segunda vez foi atacado, um golpe que teria sido mortal se por instinto não tivesse desviado a mão de Ivan.

Seria golpeado no coração, mas, mesmo com o desvio do puxão, a faca penetrou em seu peito.

O índio gritou extremamente ferido.

Tentou se desvencilhar de Ivan e acabou caindo no rio.

A correnteza era forte e Saturno não conseguia sair da água.

Ivan mergulhou para alcançá-lo.

Não pretendia salvá-lo, mas sim terminar o que tinha começado.

Só ficou com medo da correnteza arrastá-lo também, pois vampiros em geral ficam fracos em água corrente.

O vampiro loiro correu até a borda de um penhasco; quando viu a queda de setecentos metros, ficou satisfeito.

Achava impossível o índio sobreviver.

Ficou observando Saturno lhe estender a mão inutilmente, a faca cravada no peito, cruzou os braços sorriu com maldade e cinismo.

A água puxava o vampiro índio fortemente.

A queda foi violenta e ele quebrou todos os ossos do corpo.

Perdeu os sentidos e quando chegou à superfície foi levado pelo rio.

Ivan esperou qualquer indicio de vida, seguindo o corpo de perto.

Logo se virou deixando Saturno à própria sorte.

Tinha certeza da morte do índio, sua vingança fora feita e melhor ainda, ninguém havia testemunhado.

Ele seguiu rumo a um povoado, pois tinha muito que fazer e um longo caminho a percorrer.

O dia logo chegaria e os animais corriam para a beira do rio.

Satisfariam sua sede e voltariam ao abrigo da mata.

Um grande porco do mato chegou próximo à beira do rio, em um ponto em que ele era mais calmo.

Começou a beber atento a quaisquer ruídos em volta.

A água borbulhou a sua frente e antes que pudesse ter qualquer reação foi imediatamente puxado para o rio.

O grande animal se debateu, e mãos fortes como o aço o agarrou. Dentes vorazes furaram suas carnes.

O animal guinchou fortemente enquanto morria.

Em poucos minutos o animal estava morto.

O lugar voltou a ficar silencioso por algum tempo.

Logo uma figura emergiu da água, seu corpo quebrado em ângulos impossíveis.

Sentia a proximidade do amanhecer, e sabia que teria de se esconder, pois seu corpo se desfaria ao primeiro raio de sol.

Sua dor era imensa, mas ele se obrigava a procurar abrigo.

Com a mão boa arrancou a faca espetada em seu peito.

O grito de dor e fúria encheu a madrugada.

Já próximo à cidade, Ivan teve um pressentimento: o assassino de seu mestre estava vivo.

Sentiu ímpetos de voltar, mas se conteve.

A manhã estava próxima demais. Sabia que era eterno, o destruiria em outra ocasião.

Continuou sua longa caminhada.

Saturno cambaleou até um pântano, seu rosto, deformado pelos quatro lugares em que havia fraturado o maxilar.

Com o crânio afundado e coluna despedaçada, se fosse humano estaria morto.

Apesar de sua alma se encontrar mais ferida que seu corpo, o vampiro índio não aceitava desmoronar.

As lágrimas eram salgadas em seu rosto, deveria sentir muito ódio, mas não.

Estava inundado de tristeza.

A criatura para quem ele jamais levantaria um dedo o atraiçoou.

Ivan era praticamente seu irmão de sangue.

Poderia ter desistido naquele momento.

O sol se aproximava velozmente.

Seria só se deter por alguns segundos e tudo estaria terminado.

Mas não. Seu orgulho indígena nunca aceitaria.

O dia se aproximava velozmente agora e ele começou a afundar no lodo do pântano.

Por três dias e três noites ficou mergulhado na lama.

Os vermes penetravam em seus ferimentos corroendo sua carne morta.

Subitamente em uma lua nova, ele saiu da lama.

Seu corpo úmido escorria estava melhor, não havia sarado completamente, mas estava melhor.

A lua estava encoberta e um nevoeiro se desprendia do chão.

Saturno chapinhava pelos pântanos, buscando alimento. Suas vítimas eram corujas e morcegos.

O máximo que ele conseguia agarrar, desconjuntado como estava.

Noite após noite ele andava seu corpo curando-se lentamente.

Em sua andança percebeu duas coisas: a primeira que estava quase curado e a segunda o lugar para onde se em caminhava.

Ia à cidade.

Precisava encontrar aquele que amava como a um irmão.

Precisava matar Ivan.

Despedaçar seu corpo, destroçar sua alma e lavar sua honra com sangue.

Apesar da tristeza que sentia por dentro.

Por muitos meses andou até chegar ao seu destino o povoado de São Paulo.

Era o ano do Senhor de 1590.

Foi com hesitação que deu o primeiro passo.

Daquele momento em diante não tinha mais volta, ou era seu sangue ou o de Ivan.

E Saturno não desistia com facilidade.

Apertou com força o cabo do punhal, pois um grupo de salteadores lhe emboscara no mato.

Ele estava faminto.

Sorriu e avançou, observado pela lua que se abria no céu.

Fim

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