VEREDICTOS

VEREDICTOS

Autor: Fernando Rezende




A solidão que me atormentava a alma naquele julho gelado era uma solidão estranha, diferente das que havia sentido em outros tempos de minha vida angustiante. Era assim como um não deixar em paz, um tormento constante que parecia não ter fim. Os olhares que já me incriminavam, só por assim ser, passaram a me acompanhar pelas ruas nas poucas vezes em que saía do escuro do quarto ou mesmo desse refúgio de sombras. A solidão desta vez parecia disposta a arrancar meu coração pela boca. Minha alma talvez viesse junto dele, pulsando num desafogo a cada batida póstuma. Nada sei a respeito de liberdade, nunca a tive. Nada sei de entendimento, nunca fui em verdade compreendido por entes queridos e odiados. Fizeram-me vítima de um julgamento, veredicto mesquinho de narcisos. Nada sei sobre vida na realidade, pois sobrevivi, e quem sobrevive, não tem condições para gozar a plenitude do que é o viver.

Nasci já sendo julgado pelo atraso de meses e pela rapidez com a qual fui meter a cara enxerida nesse mundo de juízes. No berço então, comecei a ser julgado ao bel prazer de meus pais e irmãos que detinham o peso dos anos e a experiência de andar pela porcaria do mundo em suas barbas. Nunca gostei deles, e para eles, sempre rendi desprezo. Havia um avô, esquecido em uma cadeira de balanço, que falava comigo. Dizia-me que as coisas eram assim e que as pessoas não tinham a real consciência do que faziam umas para as outras. Eu ouvia apático, inerte, assim como um animal a observar em sua irracionalidade um rio passar e não conseguir alterar, tampouco entender seu curso. O avô dizia essas coisas. Para ele também, os juízes tinham vários veredictos a fazerem, tinham vários dedos em riste e ainda, olhares assim como os que para mim rendiam, prazerosamente.

Uma das poucas vezes que saí de casa, foi para ver meu avô que saiu também, da cadeira de balanço, sua cadeira de réu por anos a fio, para uma urna no mausoléu da família. Ainda que o vento frio castigasse minha carne, assoviando e açoitando as árvores do cemitério, fiquei parado olhando, refletindo tudo o que ele dissera-me, todos os alertas e ressalvas que havia feito. Em verdade, hoje, já não me lembro muito do rosto dele, e, quando olho para a cadeira que jaz agora como entulho no porão, pouca coisa surge em minha mente. Aceitei o fato de que essa dor é constante aqui, essa humilhação que arde como fogo, enrubescendo nossas faces e esfriando nossa alma é também ao seu modo, constante e tangível, real. Essencialmente refinada ao ponto de sermos hospedeiros escolhidos por esse parasita criado em incubadoras existente em mentes pérfidas, perniciosas e egoístas. É disparado por armas que se camuflam em veredictos e “verdades” frias.

A solidão que me atormenta nesse julho é estranha e diferente. Não tem rosto, tal como os demônios da igreja ou os espíritos ruins. Não é deformada, apenas é horrivelmente desprovida de face, mas, misteriosamente enxerga, cheira e julga. Julga quem precisa de seu toque gélido. Sinto muito medo dela, pois está me deixando alheio aos meus próprios pensamentos, está me subtraindo a capacidade de lembrar das amenidades da vida e ainda, fazendo com que os rostos julgadores ganhem um poder imenso sobre minha existência. Esse julho frio e calmamente suicida, propício para uma urna, traz um vento que provém das entranhas do mausoléu de minha família, dos antepassados, meu avô, sopram o chamado e, digo, é tão tentador que desejo atendê-lo. O vento uiva, clama na persiana semi-aberta, para que eu não me faça de alheio. Que o deixe chegar mais perto, mais perto de meu coração.

É sem dúvida, o clamor das profundezas de uma tristeza desmedida, sem freios ou algo que possa travar sua disseminação por sobre a terra. Ouço acuado num canto e pensamentos torpes vêm de mãos dadas com esse vento frio.

Olho meu rosto lívido no espelho partido do quarto e reparo que talvez deva mudar, mas, ao pensar que nada muda aqui, não para sempre, tenho vontade de voltar a murmurar maldições contra a minha existência e a dos outros no meu canto, num canto seguro, donde nada sai. Nada além de meus pedidos aos deuses da noite que em realidade, não existem na não ser na mente dos simplórios.

Acompanham-me pela rua, vielas e avenidas, os rostos. Sempre olhando, atentos. Escondo-me, corro, mas sempre quando penso achar-me seguro, lá estão eles, olhando e julgando. Falta-lhes apenas no dedo para apontar e concluir o veredicto, que sem dúvida, sempre está sendo proferido por suas bocas desprovidas de som.

Apenas o movimento apavora-me, quero, mas não tenho coragem de ler os lábios que se movem frenéticos, julgando, julgando e julgando sem trégua. Não há paz, não há descanso. Onde quer que eu fique, onde quer que eu me esconda, lá estão eles, os rostos, lá está a solidão de prontidão, estranha e indefinível, gelando ainda mais o julho que morosamente escorre seus dias interminavelmente longos pelo calendário. Penso, comigo mesmo, para tentar confortar minha alma, que tudo isso, os julgamentos, os rostos e a estranha solidão vão deixar-me com o passar desse maldito e frio mês.

Deito e acordo numa angústia que esqueceu a porta de saída. Não vejo além, nada sei de meus dias a não ser o lamentar sozinho nas sombras, de murmurar reações apáticas como sempre fiz, sempre quis que assim fosse. De um jeito que eu não possa mais lutar, mas ora, grande mentira, é verdade pura que nunca tentei desvencilhar-me das constantes investidas desse mundo contra minha pessoa. Desde sempre, desde que meu avô começou a contar-me verdades demais, falar mais do que meu coração poderia um dia agüentar. Mais do que meus ouvidos conseguiriam um dia ouvir sem sangrar, sem desejar que uma tesoura pontuda, guiada por uma mão hábil pusesse um fim para as palavras. Mesmo assim, continuavam. Sem som, o movimento dos lábios, veredictos silenciosos, que se escutava com os olhos, tanto os da alma quanto os do corpo.

Nada melhor do que o veneno. Veneno que encontrei no porão e, delicadamente, com um amor sem igual, misturei as poucas colheradas de sopa morna de vegetais que o idoso ainda conseguia ingerir. Nada mais que umas poucas colheradas e já estava com os olhos vítreos, parados e as mãos enrugadas, ali, com a colher pendendo. Fitei-o por horas a fio, até que os juízes chegaram e gritaram, fizeram o diabo com aquilo. Choravam e aos berros me chacoalhavam, diziam coisas desconexas e, ao mesmo tempo, fazia os famosos julgamentos. Nunca mesmo iria mudar. Nunca me acreditaram. O velho, meu avô, aquele que me contava as coisas como elas eram - essas mesmas que eu não queria escutar -ficava ali, parado, colher em punho, um fio de sopa alaranjado escorrendo do canto da boca. Nunca mais falaria, era o que eu pensava. Porém, sempre que eu era depois julgado e maltratado e por vezes sem conta, surrado pelos juízes, em meio ao meu choro entrecortado, eu ouvia o ranger das molas da cadeira de balanço no porão, juntando teias de aranha em seu encosto e então, corria para lá e ele estava inclinado, como sempre, e me olhava, parado. Nunca mais me aconselhou a ser paciente, pelo contrário, mexia a boca, suja de sopa, só para dizer, pelo que eu conseguia ler em seus lábios, maldições e coisas sujas. Pensei certa vez, em atear fogo á cadeira, mas depois ponderei a respeito e cheguei à conclusão que seria pior, mais criminoso do que o vidro entornado na sopa. Aquele eu misturei várias e várias vezes com a colher, e, no entanto, lá estava sempre ele na cadeira, agora se eu a queimasse, ateasse fogo á ultima coisa que o ancião teve na Terra, eu seria criminosamente errado, injusto e por fim, julgado.

Mesmo tarde da noite os ruídos não cessam, continuam reverberando no silêncio do cômodo e por todos os outros da casa entulhada e suja. Quando aventuro-me fora dali, vejo a cozinha, eterno pingar de água na pia enferrujada, a mesa com os pratos a feder e recender á podridão. A porta de batidas compassadas, no ritmo do vento, traz a nostalgia de um inverno infindável para todo o lugar. O sofá manchado, ninguém mais pode limpar, tampouco tirar o cão repleto de moscas de cima dele. Ora, era de ímpar injustiça que isso fosse feito, uma vez que o cão apenas queria descansar como fazia agora, todos e todos os dias do ano e da vida. Nada de espantá-lo com golpes de jornal dobrado. Os peixes também residentes da sala, agora nadavam em paz, relativa paz, no negrume da água, salgada pelos olhos que nadavam ali agora, para sempre, observando, bem de perto, os peixes.

Não obstante, eles continuavam pelas paredes, sempre julgando, criando veredictos e falando com suas bocas sem voz. Olhos sem expressão, órbitas vazias, porém, expressivas observavam-me. Eu sentia-me estranho, estranho com esse tipo de solidão de invadiu-me a alma nesse julho que não terminava. Todos e todos os dias eu corria para a cozinha fétida, o som das varejeiras que permeavam o ambiente e olhava no calendário amarelado e sempre, que loucura, sempre era julho. Era o julho e lá fora, a rua não passava de papéis se movendo ao sabor do vento tardívago ou as latas de lixo correndo por ela no sussurro do frio noturno. Aqui, sempre era a solidão. Estranha e sem fim. Autoritária, sempre marcava hora para que nada fosse esquecido. Eu aquiescia aos seus desejos e encerrava-me no quarto, sendo julgado e culpado por tudo o que não acontecia, o que apodrecia e o que estava calado, junto da eternidade, da ilusão do tempo que se desfez para essa casa feito um papel molhado.

Nada passa, nunca. Os meus dedos carcomidos doem, como-lhe a pele, unha e tudo. O som das varejeiras em seu festim interminável vem de todo o canto e às vezes, arremedando-as, dou risada disso embaixo da cama. Entretanto, quando percebo, enxergo os pés dos juízes, sempre saio correndo e vou ao porão. Minhas costas feridas, doendo, acomodo-me diante da cadeira e logo o meu avô chega, prato de sopa pendendo no colo, derrubando no cobertor de pêlos e a colher na mão. Sem a tremedeira. Olha-a, sem dizer nada, como sempre fiz. Ás vezes diz uma ou outra coisa, que leio em seus lábios, porém, sempre que ele se vai, volta para o mausoléu, eu vou para a cozinha e o julho continua, frio e impassível tal como os carrascos de minha tortura. Sempre é julho, e, nada como a solidão que sinto nesse julho, que é fria, dolorida e cheira a podridão.

O espelho quebrado - retrato de minha mente - mostra o sangue pisado, velho e escorrido de meus ouvidos. Nada ouço, não ouvi os clamores. Os veredictos eram dados, eu ouvia, mas, quando decidi fazer o meu veredicto, e executá-lo, não puder deixar de fazer com que seus atenuantes fossem por mim desconsiderados. Ora, eu não ouvi! Não ouvi nada! É verdade que pude ler, pude ler os lábios, as expressões e em minha mente, construir um ouvido de imaginações, mas nada nem ninguém poderia forçar-me a ouvir. Ouvi os veredictos, as retaliações, mas não ouvi os morosos lamentos.

O veredicto foi dado e executado, assim como a vida toda.

Sempre, todo o tempo, reclamam e continuaram a reclamar acho, uma vez que a eternidade se faz presente em minha realidade absurda, do veredicto. Por isso o sangue nos ouvidos; para não ouvir. Mas ouço; ouço e entendo cada palavra, cada clamor, cada prece nojenta. Sei de tudo isso, pois, não fui fundo o bastante. A tesoura de ponta está ali, caída próxima á cama e não tardarei a pega-la. Sei que posso não mais ouvir as moscas que passeiam por tudo, o bater de portas pelo vento, a dança das latas rua abaixo e o melhor: não ouvir o som da cadeira nem tampouco os veredictos.

Aparecem em todos os lugares, falam e falam com suas bocas sem som, falam e repetem a mesma coisa, sempre e sempre, sem trégua para a alma.

Acho que isso se vai com o julho, espero que vá e sempre vou verificar se ele já está pronto para ir, levar com ele o inverno fétido e os clamores.

Sei que vai passar, vai levar com seu frio abraço os rostos com órbitas vazias e as bocas sem vozes. Vai levar tudo para longe, talvez, para que chegue a paz, como a do mausoléu, frio, mas aconchegante e, quando isso acontecer, vou poder parar de lutar. Vou parar de ler os lábios maledicentes balbuciarem as repisadas palavras, as repassadas sentenças. Os rostos, eles vão desaparecer quando o julho se for. O calendário amarelado estático ainda o anuncia, mas ele vai, sinto que vai.

Finalmente então, vou parar de vê-los por todos os lugares, por todo canto a clamar, a gritar, mesmo sem som os mesmos “não”, os mesmos gritos desesperados e histéricos, além do choro, do maldito choro baixo.

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