TIA MAUDE
Autor: Paulo Soriano
Para Lico
A última vez que eu vi tia Maude viva foi na mesma manhã em que a velha morreu.
O meu pai me chamara a um canto e me dera algumas instruções sobre como eu deveria me portar naquela despedida. Decididamente, não me agradava nem um pouco subir à mansarda do andar superior e me encontrar sozinho com aquela víbora moribunda, mas meu pai era um homem bom e não merecia aquela desfeita.
Desde o limiar da madrugada, tia Maude parara de gemer e aquilo foi um alívio para nós todos. Agora ela estava prostrada em seu pesado leito de dossel, imóvel, com os olhos fechados, exibindo uma face pálida e encovada, como uma múmia milenar. Eu tinha a impressão que a tia já havia nascido velha, mas agora ela parecia ainda mais revelha e assustadora. A disposição de seus cabelos brancos, extremados em grossos rolos de anéis ensebados, que serpenteavam em todas as direções, fazia-me recordar das Górgonas da Antigüidade.
Tia Maude ressonava. Sua respiração era curta, rápida e superficial. A prostração viera com a madrugada e desde então a velha senhora não mais acordou. Agora a anciã descia vertiginosamente em seu poço escuro de morte, de onde eu esperava que jamais retornasse.
Eu me aproximei da velha moribunda e murmurei:
- Adeus, tia Maude.
Eu estava extremamente feliz com a morte iminente de tia Maude. Era uma velha avarenta e ignóbil. Muitas vezes, eu e a pequena Sylbie ouvíamos comentários reservados sobre a riqueza da tia do meu pai, que morava conosco desde que enviuvara – antes, portanto, de meu nascimento –, mas não havia qualquer indício de que isso fosse verdade, porque a tia Maude jamais nos socorrera nos momentos difíceis, que eram muitos. A tia Maude era má. E se tornou ainda mais amarga e cruel quando partira a perna em dois lugares. Sempre que eu estava só e me aproximava do leito, a velha cessava imediatamente os gemidos e – plena e subitamente saudável – me puxava pelo punho, cravando fundo as unhas longas e escuras, para me sussurrar palavras hediondas.
E, naquela manhã de sua morte, já ia eu me precipitando para longe do leito de dossel, quando uma mão me segurou. Era uma mão forte e fria, que me cingiu o pulso com a força de uma tenaz. Tia Maude puxou-me contra a sua horrenda boca, e me confidenciou bem próximo ao meu nariz:
- Tu não escapas de mim, menino tolo! Onde estiveres, eu te agarrarei! Olha bem, eu te agarrarei! E ficaremos juntinhos para sempre, eu e ti!
Quando disse isso – não com um sussurro, comum aos moribundos, mas com um brado cheio de ira – tia Maude arregalou os olhos e a boca, sorveu um punhado de ar e, depois, expirou. Morreu olhando nos meus olhos, para mais ainda fixar em minha alma juvenil aquela terrível ameaça.
O caixão de tia Maude fora estendido sobre a mesa da sala. Eu a contemplava de longe, mas o seu hálito de morte ainda recendia bem perto de meu nariz. No meu pulso, onde as suas garras mergulharam, eu sentia um desconforto, como se uma sombra negra, fria e pegajosa, ainda o cingisse.
Minha mãe saíra há pouco com Sylbie, minha pequena irmã. E meu pai – um bom e honesto amanuense do Rei – estava a providenciar a documentação para o sepultamento. Eu estava, portanto, só. Eu e tia Maude, sozinhos naquela casa triste e úmida, repleta de sombras ancestrais. Um grande candelabro funerário, com seis círios, ardia bem próximo a uma das extremidades do ataúde, junto à cabeça da defunta. Por isso custou-me, mais que o desejável, perceber que a noite havia caído. Sim, a noite havia caído e eu nem percebera!
Nada neste mundo me faria aproximar da megera defunta. Nada, a não ser o meu gato amarelo – um jovem gato soberbo e insolente –, que saltou do chão para a mesa e da mesa para o ataúde. E depois passou a lamber caprichosamente os beiços da minha tia-avó.
O que se passou por minha cabeça naquele instante? Eu não era um homenzinho? Eu não prometera à minha mãe que deixaria tudo em ordem? Pois bem. Eu já tinha treze anos e já era grande o suficiente para adivinhar as pretensões de meu gato amarelo, que viera da Abissínia. O hálito da velha cheirava a ratazanas, disso eu sabia muito bem. Pus-me a imaginar a admiração e o horror do meu pai ao ver os lábios mutilados de sua tia, porque o filho imbecil ou covarde não tomara as providências adequadas.
Assim, resolvi espantar o gato, antes que ele mergulhasse os dentes na boca de tia Maude e lhe arrancasse um naco generoso.
- Cai fora, bichano! Cai fora, gato ruim!
O gato, porém, me ignorou felinamente. Antes de desviar de mim os olhos frios, sinistros e categóricos, mergulhou num átimo os dentes afiados nos lábios da anciã. Apertou com força, sacudindo nervosa e rapidamente a cabeça, como a apressar a mutilação de uma presa inerte, mas susceptível de uma perda iminente. Não tive outra opção senão arrancar o gato à força do colo e da face de minha tia. Isto me valeu um arranhão profundo no dorso da mão esquerda, e ao gato, que gemeu sinistramente, a perda de uma refeição saborosa.
Foi aí que tudo escureceu, porque o gato, na fuga, derrubou o candelabro, apagando os círios. Apenas uma réstia de luz gasosa, que escapava da janela, incidia sobre a face do cadáver. Então veio o choque, que me fez regelar e paralisar, porque, de alguma forma, eu sabia, que isso ia acontecer.
Tia Maude se ergueu, puxou-me pelo pulso, e murmurou-me ao nariz, com o seu bafo quente e pútrido:
- Tu não escapas de mim, menino tolo! Onde estiveres, eu te agarrarei! Olha bem, eu te agarrarei! E ficaremos juntinhos para sempre, eu e ti!
Gritei, sem perceber que gritava, enquanto o meu corpo tremia sob o impacto de uma convulsão gelada. O chão escapava dos meus pés. Mas tive forças suficientes para puxar de volta o meu pulso, onde as unhas balouçantes de tia Maude afundavam e tremiam.
Tia Maude, que a muito custo deixou de escavar tenazmente em meu pulso, pousou a cabeça no travesseiro e juntou as mãos, à maneira solene dos mortos. Eu não via, mas sabia que em seu rosto de abutre morto havia um tênue sorriso de satisfação.
Enquanto o cadáver retomava o seu sono de morte, fugi em direção à porta, mas me choquei violentamente contra os umbrais. Depois, caí pesadamente sobre o assoalho. Ouvi o meu crânio se partindo e senti, em seguida, o calor viscoso descer pelo meu pescoço e pelas minhas costas. Era o meu sangue. Neste momento, ouvi alguns sons, a princípio indistintos. “Meu Deus, o que aconteceu por aqui?” – gritava a minha mãe, que chegava nesse momento. O meu pai veio logo em seguida, falando algo como chamar o médico. E Sylbie se punha a chorar. Depois tudo ficou silencioso e escuro. Agora era eu quem descia vertiginosamente em meu poço escuro de morte, de onde jamais retornarei.
Aqui, onde estou, é tudo escuridão. O lugar onde fico é escuro e úmido, escorregadio, cheio de emanações pestilentas, como o porão da casa onde morávamos. Às vezes fico sozinho, mas freqüentemente uma mão fria surge da escuridão e me cinge os pulsos. E então vem um hálito nauseante nas minhas narinas dizendo palavras terríveis e miasmáticas:
- Eu não te falei? Para sempre juntinhos, garoto mau! Para sempre juntinhos, eu e ti!
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