SÃO FILIPE
Autor: Paulo Soriano
Quem seria aquela menina tão linda, tão livre, tão suave, tão cheia de luz – e de uma luz tão resplandecente, que ofuscava o próprio Sol? Por que motivo respirava o Sol, a luz, o brilho, com seus pulmões pequenos e magníficos? Por que motivo cabiam, em sua pequena alegria, aquele Sol magnâmico, aquela tarde tão quente, e a noite que mal assomava no horizonte, de tão etérea e fugidia? Por que respirava e continha em si toda aquela liberdade?
Confesso que não sei.
Mas sei quando a vi com sua saia azul plissada, com seus cabelos rudes trançados sobre a blusinha branca do Renato Medrado, correndo para a igreja, a todo vapor. Corria com a dificuldade dos coxos, a mãozinha ágil e negra conferindo firmeza e flexibilidade à perna esquerda. Mas o fazia com tanta alegria, com tanta emoção e naturalidade, que finalmente pude compreender o verdadeiro sentido da palavra graciosidade.
Mas a menina apertou o passo. Diminuiu o ritmo de sua carreira, olhando para trás. Depois parou. Alguns dos coleguinhas seguiram em frente, sem perceber o que se passava. Outros estancaram com ela. A menina agora tinha olhos curiosos, concentrados com surpresa e alegria no estranho homem que mendigava no pátio da igreja.
Vi quando o homem, de cabeça baixa, e sem olhar para ninguém, estendeu a mão. Não disse nada. Nem implorou. A menina chegou-se a ele e sentou-se ao seu lado. Disse-lhe que podia ficar ali, porque o padre era sério, mas era bonzinho. Disse-lhe que as noites não eram assim tão frias, mas que o estranho poderia dormir em uma casa de farinha nos arredores da cidade. Disse-lhe também que, se quisesse, podia ficar com o sanduíche que não comera no recreio.
O homem agradeceu numa língua estranha. Tomou o sanduíche da mão da criança e comeu devagar. Depois olhou para a criança com bondade. É bem verdade que, do ângulo em que eu estava, não podia colher a alma que cintilava através do olhar do pobre homem. Mas confio na palavra de Ita Correia e Constância, que, como eu, são também testemunhas desse inefável acontecimento.
A menina percebeu que estava só. Os coleguinhas haviam ido. Mas ela, que era uma menina livre e feliz, estava satisfeita em conversar com o esmoler:
- Olhe, seu moço! Você chegou pela manhãzinha, não foi? Dormiu no pátio da Prefeitura, não foi? Ah! Todo mundo sabe! Não se preocupe que a polícia não vai botar você pra fora. O padre não deixa. Está com fome ainda? Ainda tenho moedinhas, quer?
Como o homem apenas admirava, mas nada respondia, a menina procurou um bolso onde pudesse enfiar os trocados que ela juntara com tanta dificuldade. Mas não encontrou. O homem, de cabelos longos e negros, e de olhos pios e enigmáticos, vestia apenas uma longa túnica, de grosseira tessitura, e sem cosimento algum no linho sujo, puído e amarelado.
A menina estalou um beijo na face do homem, deixou cair em sua mão os centavos de cruzeiros, e correu para a Igreja, impregnada de luz e de alegria.
Nesse dia, não vi mais a criança. Mas vi quando o pobre homem, que mais parecia um beato expulso do Sertão, entrou na igreja, porque era finda a missa e dispersos estavam os fiéis. Ao invés do que sucedeu em muitos outros lugares onde estive, o austero padre não expulsou o pedinte. Deixou-o orando no altar, concentrado em sua própria sandice mística, enquanto o Cristo padecia eternamente a dor da salvação, ladeado pelos Apóstolos Filipe e Tiago. Esperei até bem tarde, mas não o vi sair. À noite, dormi profundamente. Mas, em plena madrugada, os sinos puseram-se a badalar, sem aviso e sem motivo. Julindo e Rita, esses bons anfitriões, também acordaram. E, correndo à igreja, vimos todos o que sucedeu.
A menina, que eu vira coxa no dia anterior, puxava a mãe com a mão esquerda – a sua mais nova e completa sensação de liberdade –, e corria com duas pernas perfeitas. Procurava pelo homem estranho, conforme o fiel testemunho de Zezito. A mãe flutuava, e a tudo se submetia, como num sonho ou num delírio de ópio. Quando, anos após, retornei a São Filipe, disse-me Germano que a mulher continuou em êxtase por vários dias. Inês, com seu sorriso tranqüilo, confirmou.
Mas vimos perfeitamente quando o sacristão, atônito e sonolento, abriu o portal principal, naquela madrugada quente e enigmática. Quando a menina pisou, com a perna curada, o sagrado solo da igreja, a voz metálica dos sinos petrificou-se num eco e não mais fluiu. O que se ouvia, agora, era o som pesado e vigoroso de gesso arremessado ao chão, partindo-se, rolando, transformando em seixos irregulares a imagem de quem, um dia, pretendera ser São Filipe, o Apóstolo. Não sei dizer, mas creio que, na penumbra, vislumbrei uma réstia esbranquiçada ascender ao pedestal, e depois deixar-se ficar, como um halo que ganha forma e substância na presença mágica do Senhor.
Mas todos sabem que agora, esculpida pelo bafo divino, talhada na carne do mais translúcido e luzidio dos mármores, ladeia o Senhor, que ainda padece no altar sua expiação cruel e perpétua, a estátua de um homem pobre, de corpo torcido e de cabeça inclinada, coberto por rústica túnica sem costuras, e que projeta, sob a espessa cortina de cabelos longos, um olhar enigmático para o infinito, enquanto as mãos encrespadas mendigam um centavo no ar.
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