RENASCER

RENASCER

Autor: Paulo Arnold

Renascer

A escuridão da noite estende seu manto sereno e suave sobre a terra. A lua reina majestosa antes de seu declínio no eterno ciclo.

Pelo caminho calçado com pedras ancestrais, que ali já estavam, antes mesmo do povoado que se avista no vale abaixo existir, divisa-se uma figura cabisbaixa que se movimenta com passos lentos. Vem ruminando em seus pensamentos lembranças de mais um dia de pequenas humilhações que já aprendeu a suportar, mas não a perdoar. Porém, diferente de outras tantas vezes que por ali passou, desta vez algo o alertou e chamou sua atenção, erguendo seu olhar das pedras do caminho, e o voltando-o para as linhas da construção de um velho templo, agora abandonado e carcomido pelo esquecimento, mas ainda imponente em suas dimensões, e que nas sombras da noite adquirem algo de seu antigo esplendor, quando parte de suas cicatrizes se camuflam na escuridão. Observa, atônito, sob os arcos de algo que antes seria uma entrada, uma silhueta que, por seu negrume, se destaca da própria escuridão da noite, que tem sua intensidade diminuída pelo brilho do luar. Estanca seu andar e, enquanto sente um ar frio o envolver, força sua visão para melhor observar e definir aquilo que lhe chamou a atenção. Em uma fração de tempo, dois pensamentos o assaltam: continuar seu caminho ou ir até perto do misterioso avistamento. E então, no mesmo instante em que decide se aproximar para melhor observar, em um piscar de olhos não está mais na estrada, e sim diante da aparição que agora quase o envolvia em seu manto que, diferente de um tecido, se assemelha a uma espessa e sólida ausência de luz. Paralisado, observa o ser envolto neste manto de escuridão. De sob algo que se assemelha a um capuz, globos de tênue luz azul observam o rapaz como se fossem olhos. Após um momento fora do tempo, uma voz dentro de sua cabeça tira o rapaz do seu torpor

- Te observo e sempre estás tristonho... Qual o motivo, pequeno?

- O destino cruel me impôs uma vida indigna e miserável, meus semelhantes insistem em me humilhar e me usar de bode expiatório para seus medos e amarguras – responde o rapaz.

- Assim me foi dado a entender, mas necessitava ouvir de ti – ecoa um pensamento na cabeça do rapaz. E continua:

- Por força de uma lei maior, acima da minha e principalmente da tua compreensão, foi-me atribuída a responsabilidade de te abrir as portas de duas possibilidades à sua escolha.
- Quais são elas, ó ser da escuridão? Pergunta o rapaz.
- Daqui e agora, a ti será dada a escolha, assim como foi feito a outros tantos para, a partir do momento da tua decisão, disseminares, atrás dos teus passos, a paz do iluminado ou a ira do justiceiro. - Lenta e tranqüila a voz soturna envolve o pensar do rapaz.

- Qual devo escolher, anjo? – pergunta o rapaz.

- A escolha é tua, só posso te esclarecer que por uma carregarás os atos de teus semelhantes nas costas e purificarás às custas de teu sangue. Por outra, cavalgarás os mesmos atos e purificarás com o sangue dos semelhantes em tuas mãos.

-Deixa-me ir...Sou fraco e não suportarei tais destinos - suplica o rapaz.

- Não, pois perdestes o direito a esta vida. Bem o sei que se chegasses em sua casa, poria termo nela por suas próprias mãos - diz a voz que invade os pensamentos do rapaz.

- Pois bem, se devo escolher, que seja pela ira e pela justiça, pois pelos meus semelhantes só nutro o sentimento da vingança! - grita o rapaz com lágrimas escorrendo pelas faces do rosto.

- Que assim seja feito, pequeno. Ecoa a voz soturna e grave.

Dito isto, o manto de escuridão envolve a triste e solitária figura do rapaz e este se sente como se estivesse flutuando ou sendo sustentado por braços poderosos; então ele sente sobre seu peito como que finas agulhas que se apóiam e furam sua pele, como finos e longos dedos de uma mão – pensou ele –, lentamente elas vão penetrando em seu peito através de sua pele e sua carne.

A dor inexiste e o miserável sente tudo com um misto de pavor e êxtase. As finas agulhas penetram e chegam até o pulsante e quente coração do rapaz. Então, por um instante, elas estancam sua ação; neste momento, algumas lembranças de felicidade da curta e miserável vida do rapaz desfilam pela sua mente como que se desfazendo para nunca mais retornarem. Lembranças de amor, ternura e alegria inocentes ainda de sua curta infância, e de uma paixão por uma mulher que se transformara em amor, mas fora interrompido pelas sombras da morte e substituídas pela dor da amargura e do desespero. E, enquanto uma derradeira lágrima rola dos olhos do rapaz, as agulhas terminam sua jornada e se cravam no seu coração; e logo, em colapso, o agonizante órgão vital estanca sua marcha pela vida.
Uma sensação de frio, torpor e cansaço invade o corpo do rapaz, enquanto sua visão escurece; e ele sente-se começar a subir, como que sugado, puxado pelo tórax para cima, suave e rapidamente. A visão novamente se torna clara, e ele observa que está flutuando além das arvores, das nuvens, além do céu, e se depara finalmente com um enorme disco, do qual emana um poder indescritível. E do disco um calor – como que de milhões de fornalhas – desintegra seu corpo. E ele grita de dor, mas seu grito não é ouvido no vácuo infinito e, então, ele fecha os olhos. E, quando os reabre, está novamente perante o ser com o manto da escuridão no local em que o avistou, envolto pela noite serena. Seu rosto agora é como um mascara sem expressão e seus olhos têm um brilho que aterroriza e encanta. Ele agora tem o conhecimento da totalidade da criação e entende seu poder.

Novamente a voz soturna e sombria se faz ouvir:

- Renascestes para a escuridão, livre dos grilhões da vida mundana; teu destino é teu desejo. Daqui mistura-te com a escuridão e some. Tua busca agora é por vingança e justiça, tuas presas serão aqueles que te humilharam. Na escuridão como uma sombra espreitarás; sem remorso nem culpas, ceifaras; serás o carrasco, o cavaleiro justiceiro e implacável. Pela honra de uns lutarás e pela infâmia de outros matarás. E para nenhum darás testemunho e nem te curvarás, pois és dono do teu poder e senhor do teu destino. Vai, pois de agora em diante te chamarás vampiro.

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