QUANDO RETORNAM AS CRIATURAS

QUANDO RETORNAM AS CRIATURAS

Autor: Paulo Soriano

Clóvis

1

As criaturas vieram do mar.

Selênius, o velho coveiro do cemitério católico, foi, mais embriagado do que nunca, o primeiro a avistá-las.

Naquela mesma manhã, como sempre, o coveiro entrara na taberna de Héracles para abastecer, com conhaque barato, o seu velho cantil. De tão encardido, e puído de cânceres e ulcerações, o fiel companheiro de Selênius não mais exibia, em sua superfície surrada, o brio verde-oliva dos tempos de campanha. Imaginávamos que o antigo alforje, que lhe ia sempre a tiracolo, era o único amigo com quem o coveiro contava neste mundo, eis que nunca se apartavam, pois que eram ambos repulsivos, detestáveis reminiscências da última guerra.

Rumaram os velhos amigos - foco natural de nosso desprezo - para o cemitério católico, transpondo a trilha que subia à colina, até esfumarem-se nas sombras turvas dos antigos salgueiros. Ia o homem resmungando os mesmos impropérios; seguia-lhe dócil o cantil, a bater-lhe amistosamente nos flancos, concordando-lhe mudamente em tudo, como um amigo de verdade – assim pensava Selênius – deve proceder.

Tardara menos que o de costume, e retornara Selênius à taberna. Tinha o rosto convulso e tremia. Ainda estava um tanto sóbrio e não trazia consigo o cantil. Ora, aquilo era mesmo um fato inusitado. Já tínhamos visto o coveiro, em seu cemitério, sem a pá; nunca, porém, em qualquer lugar do mundo, desacompanhado de seu alforje. Aquele homem, que balbuciava palavras desconexas, era, sem dúvidas, Selênius. Mas um Selênius modificado, estranho a si mesmo, descaracterizado em sua própria essência: faltava-lhe o cantil, o prolongamento de sua alma, a parte mais visível e palpável de seu ser. Por ele, Selênio mataria e morreria.

Podíamos formar, aos poucos, à medida que Selênius se acalmava, um quadro fidedigno do que acontecera. Recordemo-nos de que o Padre Pégasus e a sua sobrinha Galatéia sucumbiram ao mesmo infeliz incidente. Ambos, como todos sabem, foram sepultados lado a lado, há exatos três anos. Houve muita comoção na época e, até hoje, a tragédia é sempre relembrada pelos mais sensíveis e impressionáveis. Era, portanto, o dia da exumação. O coveiro seguiu os procedimentos de rotina. No dia anterior, intimara o único parente vivo dos defuntos para testemunhar a remoção das ossadas, mas este não comparecera, embora houvesse aquiescido ao convite com um sóbrio pesar. Assim, frustrada a formalidade legal – o que de ordinário acontecia –, Selênius tomou uma talagada do conhaque, depôs o alforje em uma lápide caída e pôs-se escavar ritmicamente, primeiro sobre o túmulo do sacerdote. Passou, contudo, do ponto em que – dizia-lhe a experiência – a pá deveria raspar a madeira do caixão, provocando um ruído áspero, com o qual, apesar dos longos anos de macabro ofício, jamais se acostumara, visto como lhe iam na alma também ásperas agonias. Selênius parou para descansar, maneando a cabeça, que a aura marinha refrescava. Tomou outro gole, mas o vigor esperado não veio. Havia algo de errado. O coveiro retomou a pá em movimentos cadenciados, acelerando o compasso. Nada. Cavou até convencer-se do que já lhe era perfeitamente evidente: o corpo do padre sumira juntamente com o caixão. O mesmo se sucedera com a sobrinha, pois, removida a terra que lhe servia de mortalha, dela não havia o menor vestígio. Isto me doeu na alma. Galatéia fora minha noiva. Não fosse a mão pesada e terrível do Ceifador, e estaríamos hoje casados e felizes.

- Roubaram-me os defuntos – disse o coveiro, perplexo e desolado, a entornar o conhaque no copo, algo que, há bem pouco, lhe pareceria impossível de acontecer. – Roubaram-me mesmo – concluiu, levando o copo aos lábios, com ambas as mãos e com a destreza de uma criança de dois anos.

Chamamos o intendente e seguimos, em comitiva, ao cemitério. Ficava ele no alto de uma colina, de onde se podia divisar o mar. O jovem pároco juntou-se a nós, pouco depois. Aproximamo-nos das covas abertas e surpreendemo-nos com o que vimos. Em locais como estes, a aridez da terra e a ausência de lençóis subterrâneos são uma necessidade irrefragável; mas, em cada um dos sepulcros abertos, minara a água salobra do mar, transformando em lodo a areia escura. E, aos nossos incrédulos olhos, um limo purpúreo proliferou, pondo-se a revestir toda a cova, do ponto mais fundo até as beiradas, como um veludo fúnebre em célere expansão, e prestes a despejar sua substância pegajosa sobre nossos pés. A este assédio, instintivamente recuamos, tomados de surpresa e asco. Mas, se tudo aquilo era extraordinário, causou maior comoção o incrível incidente que imediatamente seguiu. Como uma goela que se abre na carne do solo, um ralo negro surgiu lá no fundo, sugando vorazmente o lodo e o limo, que deslizaram e desceram às entranhas da terra num borbulhante e audível redemoinho. E, da terra, ergueu-se uma espécie de arroto, sonoro e vibrante, que nos engolfou numa nuvem de miasma. Um mal-cheiro insuportável, de matéria orgânica decomposta, nos expulsou dali num átimo. Corremos de volta à taberna, onde nos congregamos até quase o pôr do Sol. Nunca bebêramos tanto em tão pouco tempo.

Selênius, carcomido pelo remorso, repetia que não fora justo, e muito menos decente, abandonar o fiel amigo sobre a lápide caída. Sem nada murmurar, retirou-se, subindo a colina, para resgatar o cantil. Afinal, apenas as coisas depositadas no fundo da terra, como o lodo e os cadáveres, eram aspiradas e engolidas por aquele ralo estranho. O seu cantil deveria estar a salvo. Mas tinha a impressão – dissera ao menos duas horas antes de partir – que já não mais havia ninguém enterrado em seu cemitério. Teria muito menos trabalho doravante. A terra se encarregaria de sugar os túmulos até saciar-se de cadáveres, até rebentar-se em suas entranhas magmáticas.

- Sim – disse ele – isso é muito bom!

Voltou pouco depois, com o cantil na mão e a mente devastada.

- O mar já não é mais o mesmo – disse, ao retornar.

2

O que causou estranheza ao velho zelador de cadáveres foi o silêncio. Um silêncio imaterial provinha do mar, galgava as encostas do litoral, subindo-lhe as reentrâncias pedregosas. E, acima, derramando-se em torrentes pelas colinas tristonhas, o gélido silêncio dissolvia o vento, paralisava as sebes e os salgueiros para inundar o cemitério com sua mudez de morte.

No cemitério, as lápides, irmanadas, inclinavam-se umas contra as outras, como se murmurassem, entre si, em cochichos silenciosos, os segredos inconfessos que se ocultavam sob as suas inscrições. O solo estava revolvido; as covas, afundadas. Os velhos salgueiros recolhiam as suas garras, pendendo e deslizando para o chão, porque devastados em suas raízes.

Selênius recolheu o seu cantil. Dele extraiu, à guisa de beijo, um gole reconfortante. E o conduziu, comovido, ao peito, com o ardor e o respeito de quem abraça a mulher amada. Depois, caminhou até beira do precipício; lá embaixo, um mar fenecido, de águas estagnadas, jazia – enregelado e liso, qual uma pesada pedra tumular – sob uma fina neblina, que pairava no ar como um espectro desolado, a refletir-se no espelho fantasmagórico de um ocenano absurdo.

Sim, era verdade. Já não era mar o mesmo! O vento cessara. Não mais havia o rebentar das ondas nas pedras limosas. Uma imobilidade de morte enturvava as águas viscosas e densas, que se espraiavam silenciosas, perfeitamente planas, sem uma ruga ou uma espuma sequer, até as bordas do horizonte sangrento. Pairando sobre a superfície oleosa daquele mar inerte, aquela finíssima bruma refulgia a vermelhidão de um céu agônico e mudo. E, flanando entre as brumas, sobre as águas mortas e apodrecidas, assomaram as criaturas.

- Primeiro veio o Padre Pégasus. Depois, surgiu Galatéia. Eram eles mesmos, eu os vi.

À menção do nome de minha noiva, subiu-me à goela uma grande ira. Mas, consultando os olhos bêbados do coveiro, que acariciava nervosamente o seu cantil, intuí naquilo tudo um delírio. A ira dissipou-se tão rapidamente quanto viera.

O coveiro abriu a boca para falar. Todavia, a porta da taberna escancarou-se subitamente. Veio, então, um miasma tão pungente, tão atroz, que, queimando como brasa as nossas narinas, certamente nos levaria à vertigem, não fosse o sobressalto que então adveio. O padre Pégasus, morto de três anos, flanava entre os umbrais, e, englobado por uma neblina cintilante - um halo quase imaterial, que lhe agitava a batina carcomida pelos fungos e pelos vermes - deslizou no ar para encarar o coveiro. Tomou-lhe da mão o cantil, jogou-o ao chão e, com uma única pisada, inutilizou-o irremediavelmente. Depois, repentinamente, virou-se para o taberneiro. Antes que pudéssemos dar-nos conta da situação, vimos que o taberneiro ia ao chão, vertendo o sangue numa torrente, porque, onde deveria estar o seu coração, agora havia um buraco grotesco, cujas bordas, brancas e laceradas, estufavam-se para fora, como a copa de uma gigantesca flor salpicada de sangue. Os homens, petrificados, ainda puderam ver que o cadáver do Padre Pégasus levava o coração à boca descarnada para mastigá-lo com a avidez dos insanos. Então todos fugiram.

Eu me deixei ficar. Minhas pernas chumbavam-se ao chão. Pude ver que o coração de Héracles surtia, no cadáver, um imediato efeito regenerativo.

Resolvi fugir.

Mas o padre Pégasus virou-se para mim. As órbitas dos olhos projetavam uma luz ruiva e fulgurante, como se no fundo do crânio, onde proliferava o limo purpúreo, lhe ardesse um lume incandescente. Uma miríade de vermes, finíssimos e opacos, grudava-se ao cimo de sua gólgota, contorcendo-se e agitando-se em ondulações descendentes. O Padre Pégasus moveu o maxilar e, por sobre sua língua túrgida e negra, deslizaram sons articulados, que o crânio ampliava em volume, qual o bojo de um fúnebre alaúde. Ele disse:

- É na água do mar – para onde convergem os corpos dissolutos, conduzidos pelas torrentes das chuvas e pelos caudais não poucas vezes subterrâneos – que se recompõem os Justos. Eles herdarão a Terra! Não há para onde fugir. De onde houver uma praia, de onde descansar uma enseada, daí nós viremos. Ouve-me: agora nos chamamos legião. Porque somos muitos.

Quando terminou de falar, já não eram mais os vermes que orlavam o seu crânio. Eram cabelos negros, lânguidos e escorregadios. O lume do crânio cessara, porque os olhos voltaram a se engastar naquelas órbitas vazias, malignos e substanciosos. E, juntamente com eles, vieram os músculos e nervos, que um tecido gorduroso estofava, e que uma pele finíssima cuidava de revestir e amoldar.

Fugi para longe dali, mas fui apanhado. Agora, no escuro deste porão imundo, cumpro o meu destino. Ao meu lado está o coveiro. Ele lamenta a perda de seu melhor amigo e quase não fala. Diz, apenas, que estamos condenados aos infernos. Murmura que é tarde para conversões e arrependimento, porque chegara o dia do Juízo.

- É a ressurreição da carne. O que presenciamos é o renascer dos justos, que se alimentam das carnes dos ímpios para a regeneração do corpo. E, saciados, rumam céleres para a vida eterna. É somente isto e nada mais.

Eu sabia que ele tinha razão, mas não pensava em nada disso. Pensava em Galatéia. Lá em cima, vagava ela em meio uma profusão de cadáveres – os corpos decompostos de todos os quantos já haviam morrido no Senhor –, advindos do mar imóvel e oleoso. Mas Galatéia não se recompusera. Disso eu sabia. E sabia tanto que, quando o olor mefítico chegou-me ao nariz, compreendi que era ela quem descia as escadas do porão. Vinha buscar o meu coração, que um dia eu lhe dera.

- Josephus! Josephus! Eis-me aqui, meu doce amor.

O timbre de voz era compreensivelmente diferente, mas as inflexões – as modulações particulares, únicas como impressões digitais – eram típicas de Galatéia.

Então Galatéia aproximou-se. Mirou-me com suas ígneas orbitas vazias, projetando na escuridão um duplo feixe de luz rubra e circular, que me iluminou inteiramente a face. E mergulhou em minha boca a sua língua negra, enquanto as mãos descarnadas buscavam sofregamente o meu coração.

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