PÉROLAS NEGRAS
PÉROLAS NEGRAS
Autor: Paulo Soriano
Dedico este conto a… Ah! Ela saberá!
Sim, ela sabia que eu a amava!
Embora eu, circunscrito em minha timidez angustiante, me esforçasse em dissimular aquilo que deveras sentia, não fora tão prudente quanto imaginara. Certamente, a minha alma atormentada impunha um brilho indisfarçável - tão comum aos amantes secretos - em minhas pupilas inebriadas, quando, com o coração em trêmulo descompasso, a contemplava de soslaio. De alguma forma, ela percebera. Foi por isso que Hellena veio a mim e, após um vigoroso gole de vinho tinto, declarou, pura e simplesmente, à queima-roupa:
– Você me ama.
Ela me olhava com a volúpia arrogante das ninfas inacessíveis. Eu a amava. Sempre a amara. Mas, naquele momento, ao impacto daquela declaração lacônica e seca, estava aterrorizado. E – confesso - com o coração a consumir-se num ódio insano. Ela me provocava, desnudava a minha alma, devassava um segredo maior e mais importante que a minha própria existência.
– Você me amaria mesmo que eu estivesse...
– Sim! – Gritei, sem ouvir como ela concluíra a frase. E, levantando-me bruscamente, me retirei daquele ambiente terrível, onde deixei para trás a parcela mais significativa de meu espírito – a minha sanidade –, que se me esvaía pelos poros e misturava-se indissoluvelmente ao odor do cigarro, da música frenética e dos suores que manavam daqueles dorsos agitados.
Os edifícios caíam sobre mim num abraço opressivo. As ruas tornavam-se sinuosas. A noite mergulhava em meu peito as suas garras longas e agitadas. E o meu peito se punha a sangrar estrelas doloridas. Convulsas, elas deslizavam, frias e sem lume, pelas rugas imperceptíveis de um manto sepulcral, que era a minha própria alma. E, onde minha alma entornava a sua substância deletéria, poças escuras se formavam, infinitas e medonhas, capazes de absorver em si toda a angústia do mundo.
Foram duas as noites em que vaguei sem destino, tendo por companheiro apenas o peso tumular de minha sombra. Mas, quando retornei a casa, ela já me esperava! Sim, ela estava lá. Estava nua. À luz da lua, a sua pele ganhava tons vaporosos e indecisos. Às vezes, aflorava a palidez na textura quase etérea de seus lânguidos contornos. E como estava fria! E como eram gélidos os seus beijos! E como cheirava a cravo o seu pescoço aveludado, cingido por um colar de pérolas negras – o belo colar de pérolas negras! – do qual Hellena jamais se separava.
Sim, ela me amou! Por toda a noite ela me amou, silenciosa, etérea e fria.
E quando os primeiros raios de sol dissiparam o sonho e o delírio, vi-me sozinho novamente. Da noite anterior, ficara apena um quase imperceptível odor de cravos, em perfeita sintonia coma a estranha frialdade que pairava sub-reptícia no ar. Mas juro que ainda podia sentir, inumada em meus lábios, uma pressão gelada e indelével, como se a boca de Hellena ainda estivesse ali.
Ao telefone, perguntaram-me por onde eu andara nestes dias. Não respondi. Não disse nada, e nem mesmo expliquei por que motivo eu não fora ao enterro de Hellena Wells. E não acreditei que ela morrera na mesma noite em que pronunciara, sensual e petulantemente, aquelas palavras reveladoras, expondo-me nua e cruelmente o meu inconfessável segredo. E gelei quando soube que seu túmulo fora encontrado aberto esta manhã... E que seus pés tinham lama... E que seu corpo defunto havia sido violado...
(“Você me ama. Você me amaria mesmo que eu estivesse...”)
A palavra atroz, que complementava a frase dilacerante, encheu minha alma de pavor. Mas o impacto que se seguiu é indescritível. Meus olhos vagaram, atônitos, pelo meu quarto de solteiro, tentando reconstituir a imagem dissoluta de Hellena. Mas foram as minhas mãos que encontraram, sob os lençóis que recendiam a cravo-de-defunto, um adorno de mulher.
Um colar de pérolas negras.
Autor: Paulo Soriano
Dedico este conto a… Ah! Ela saberá!
Sim, ela sabia que eu a amava!
Embora eu, circunscrito em minha timidez angustiante, me esforçasse em dissimular aquilo que deveras sentia, não fora tão prudente quanto imaginara. Certamente, a minha alma atormentada impunha um brilho indisfarçável - tão comum aos amantes secretos - em minhas pupilas inebriadas, quando, com o coração em trêmulo descompasso, a contemplava de soslaio. De alguma forma, ela percebera. Foi por isso que Hellena veio a mim e, após um vigoroso gole de vinho tinto, declarou, pura e simplesmente, à queima-roupa:
– Você me ama.
Ela me olhava com a volúpia arrogante das ninfas inacessíveis. Eu a amava. Sempre a amara. Mas, naquele momento, ao impacto daquela declaração lacônica e seca, estava aterrorizado. E – confesso - com o coração a consumir-se num ódio insano. Ela me provocava, desnudava a minha alma, devassava um segredo maior e mais importante que a minha própria existência.
– Você me amaria mesmo que eu estivesse...
– Sim! – Gritei, sem ouvir como ela concluíra a frase. E, levantando-me bruscamente, me retirei daquele ambiente terrível, onde deixei para trás a parcela mais significativa de meu espírito – a minha sanidade –, que se me esvaía pelos poros e misturava-se indissoluvelmente ao odor do cigarro, da música frenética e dos suores que manavam daqueles dorsos agitados.
Os edifícios caíam sobre mim num abraço opressivo. As ruas tornavam-se sinuosas. A noite mergulhava em meu peito as suas garras longas e agitadas. E o meu peito se punha a sangrar estrelas doloridas. Convulsas, elas deslizavam, frias e sem lume, pelas rugas imperceptíveis de um manto sepulcral, que era a minha própria alma. E, onde minha alma entornava a sua substância deletéria, poças escuras se formavam, infinitas e medonhas, capazes de absorver em si toda a angústia do mundo.
Foram duas as noites em que vaguei sem destino, tendo por companheiro apenas o peso tumular de minha sombra. Mas, quando retornei a casa, ela já me esperava! Sim, ela estava lá. Estava nua. À luz da lua, a sua pele ganhava tons vaporosos e indecisos. Às vezes, aflorava a palidez na textura quase etérea de seus lânguidos contornos. E como estava fria! E como eram gélidos os seus beijos! E como cheirava a cravo o seu pescoço aveludado, cingido por um colar de pérolas negras – o belo colar de pérolas negras! – do qual Hellena jamais se separava.
Sim, ela me amou! Por toda a noite ela me amou, silenciosa, etérea e fria.
E quando os primeiros raios de sol dissiparam o sonho e o delírio, vi-me sozinho novamente. Da noite anterior, ficara apena um quase imperceptível odor de cravos, em perfeita sintonia coma a estranha frialdade que pairava sub-reptícia no ar. Mas juro que ainda podia sentir, inumada em meus lábios, uma pressão gelada e indelével, como se a boca de Hellena ainda estivesse ali.
Ao telefone, perguntaram-me por onde eu andara nestes dias. Não respondi. Não disse nada, e nem mesmo expliquei por que motivo eu não fora ao enterro de Hellena Wells. E não acreditei que ela morrera na mesma noite em que pronunciara, sensual e petulantemente, aquelas palavras reveladoras, expondo-me nua e cruelmente o meu inconfessável segredo. E gelei quando soube que seu túmulo fora encontrado aberto esta manhã... E que seus pés tinham lama... E que seu corpo defunto havia sido violado...
(“Você me ama. Você me amaria mesmo que eu estivesse...”)
A palavra atroz, que complementava a frase dilacerante, encheu minha alma de pavor. Mas o impacto que se seguiu é indescritível. Meus olhos vagaram, atônitos, pelo meu quarto de solteiro, tentando reconstituir a imagem dissoluta de Hellena. Mas foram as minhas mãos que encontraram, sob os lençóis que recendiam a cravo-de-defunto, um adorno de mulher.
Um colar de pérolas negras.
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