OCELOS VERMELHOS
OCELOS VERMELHOS
Autor: Paulo Soriano
A estrada era quase uma senda e, por já ser noite, o lenhador acendera uma pequena candeia, para guiar-se e afugentar os lobos, certo de que retornaria com segurança a sua velha casa de madeira, tão desgastada quanto os solados de suas botas. Elas rangiam sobre o chão encharcado dos últimos dias de inverno. O lenhador seguia, assim, com passos firmes. Vira ocelos vermelhos, que tomou por de gatos selvagens, rebrilharem entre as moitas escuras, mais de uma vez, durante o caminho, como se o acompanhassem. Mas estava livre dos lobos. É que vento, por vezes, escorria lânguido pelas frestas dos pinheiros e dos abetos, fazendo coro aos lobos que, bem ao longe, emitiam os seus uivos sinistros.
Mas o lenhador tropeçou em algo, que emitiu um lamento felino. Desequilibrou-se e caiu. Voltou-se para maldizer o gato, quando, aproximando a lanterna, observou, quase que afundado na lama, um corpo de uma criança. O homem verificou que a criança – uma menina que, certamente, teria menos de três anos – ainda respirava. Examinou o seu corpinho regelado com cautela. Após uma cuidadosa inspeção no pulso esquerdo da criança, concluiu que a mãe, certamente desesperada pela picada de serpente, que vitimara a pequerrucha, a deixara ali mesmo, e fora em busca de socorro.
Hesitou, não queria machucá-la. Mas, com a ponta do canivete, que sempre trazia consigo, fez uma incisão onde os furinhos brotavam no pulso da criança, que, de tão exangue, certamente não suportaria uma sucção mais incisiva que aquela que efetivamente aplicou na carne lacerada. Acendeu a fogueira na esperança de que, em contato com o calor, a criança recobrasse as cores. Massageou-lhe as extremidades das mãos e dos pés, para que a circulação retomasse o fluxo normal. E a acolheu no colo, pousando suavemente a cabecinha da menina junto ao seu pescoço rude de lenhador. Então, ao contato com o pulsar das artérias que latejavam sob a escassa barba do lenhador, a coisinha abriu seus olhos vermelhos e famintos. E mergulhou os seus dentes longos, finíssimos como agulhas, na carne tenra e acolhedora que aquela garganta estirava só para si.
O lenhador foi encontrado morto, na manhã seguinte, esvaído de sangue, com duas pequenas incisões, que pareciam de víbora, na altura do pescoço.
Mas, naquelas noites ainda invernosas, ocelos vermelhos, que não eram felinos, continuaram a espreitar por entre as frestas dos arbustos, à espera de outras presas.
Comentários