O SACERDOTE
Autor: Paulo Soriano
1
Ninguém sabia ao certo de onde ele viera e para onde ele foi. Mas ninguém olvida que chegara ele em uma noite singularmente negra, porque a escuridão era como um frio intenso, ríspido e intolerável, suscetível de adentrar as carnes e obscurecer os ossos. E de quase tocar a alma, se é que ainda temos alma, se é que o frio ainda nos comove.
Trajava, jogada sobre uma batina preta – que muitos diriam acetinada, porque reluzia absurdamente naquela escuridão de morte – , um manto púrpura, que lhe caía, com um quê de negligência, sobre os ombros, ondulando talvez até os tornozelos. E, coroando a delicada indumentária, enfunava ao vento – um vento infecto e frio – uma espécie de hábito, especialmente leve, sóbrio, aberto de lado a lado, que se veio a saber depois de um cinza escuro, encimado por um barrete cerzido na nuca, à semelhança de um capuz franciscano.
Por onde seguia o homem parecia que a escuridade se tornava ainda mais densa e mais profunda, pois em seu entorno bruxuleava uma auréola fosca, que parecia sugar a luz, e muitos indagavam se estaria o estranho sacerdote a absorver, verdadeiramente, cada um dos últimos fiascos de luar que se esgueirava por dentre uma imensidão de nuvens opacas e opressoras. Uma bruma espessa o envolvia, e rodopiava ao redor de seu corpo longilíneo – de uma elegância quase felina –, para depois se dissolver, cintilante ainda, na noite negra, negra como ébano, negra como um mau presságio.
O que fazíamos nós – muito de nós – fora de casa, numa noite tão tenebrosa? Por que o vimos chegar, com seus passos suaves e majestosos, com seu belo rosto branco, seus longos braços esquálidos, seus mais longos ainda cabelos louros, que escorriam do capuz, cheios de luz, e se aninhavam no colo, contorcendo-se, revoltos como víboras? Por que as tabernas estavam vazias, os lares abandonados, as lareiras subitamente esquecidas? Nós – muito de nós – sabíamos apenas que nunca se vira tamanha escuridão e por isso ganhamos as ruelas imundas. Olhamos os céus, mas não vimos estrelas. Acendemos os lumes, mas as sombras se tornaram ainda mais circunstantes, profundas e enigmáticas. Depois veio o frio, tão súbito e tão violento que nós – não pouco de nós – levantamos as abas de nossos capotes e mergulhamos as mãos nas axilas, para aquecer o peito.
Então vieram os ventos miasmáticos, regelados e melódicos. Nós – alguns de nós – puxamos os casacos aos narizes, nauseados, sentindo asco e vertigem, murmurando, quando podíamos, a estranheza daquilo tudo. Mas estávamos, quase todos, encantados com a música suave e bela que o vento fazia. Havia acordes naquele vento – disse-nos o tocador de alaúde, inclinado a cabeça como um cão sensível e atento –, havia, sim, acordes perfeitamente cadenciados, acordes magníficos, naquele vento frio e pestilento.
Quando vieram as brumas, tocadas pelo vento melodioso, fomos tomados de grande pavor. Porque da escuridão surgiram as névoas, sem qualquer aviso, saídas do mar, etéreas e pardacentas à visão, e crespas e gélidas ao contato. Estendendo tentáculos, rebrilhando na noite infinitamente escura, as brumas salgadas inflavam-se, dominavam o espaço, depois se recolhiam, dobrando-se em fraldas para os lados, abrindo-se suavemente em tiras, para escavar, na espuma, o caminho por onde desfilou o imponente viajante, que ninguém sabia de onde viera, mas que nós – todos nós – sabíamos vindo ao nosso encontro.
2
Os que entramos na taberna de Éolo, o Grego, éramos os mais corajosos. Esperávamos que o sombrio viajante, sabedor de seu desolado paradeiro, retornasse para onde viera, levando consigo a escuridão, o miasma e a frialdade. Mas o estranho homem, com seus paramentos sacerdotais, de cujos vincos saía uma mão longa e delgada, fincada de artérias na carne fria e banca, fez ranger as velhas dobradiças. O taberneiro, que era um dos nossos líderes – mas que, por estrangeiro, não impunha qualquer confiança – se antepôs. Mas estava assustado, o taberneiro. O taberneiro, creia Deus, estava assustado! O homem, cujo capuz impunha alguma dignidade, e cujos olhos impunham medo, disse apenas:
– Tenho sede.
Todos vimos que vieram, da lenha da fogueira – como responsos à voz profunda, neutra e infecta do sacerdote –, estrépitos e gemidos, seguidos de súbitos e rítmicos estertores, num contratempo perfeito ao balbucio dos ventos, porque a achas estalavam como ossos seculares, somente agora – finalmente agora – partidos e remoídos. As chamas saltaram da boca da chaminé, expandiram-se e se contorceram, solenemente, contra si mesmas, como uma melodia e uma dança circunvolutas, para se recolherem, depois, num baque surdo, como algo que cai, e se retrai, no preciso momento em que aquele gigante finalmente entrou. Depois as chamas – que eram singularmente frias, quase gélidas – explodiram numa luminosidade magnífica, que rodopiou e bailou no ar, e que quase nos cegou, tão grande que era a sua luz e magnífico o seu esplendor. Quando ultrapassamos os umbrais, porém, encontramo-nos numa penumbra suave, fria e malcheirosa, que quase beirava a escuridão. Nós vimos – poucos de nós viram – que a luminosidade foi sugada pelos olhos do homem, e não apenas num átimo, mas assim presto e rápido como um náufrago que respira o último ar com a sua boca feia e aberta, antes de mergulhar de vez no oceano. E trinavam os acordes, belíssimos acordes, de ventos miasmáticos, sabe Deus de onde eles vinham, os acordes e os ventos.
O homem tomou vinho de bom grado. Alguns de nós viram que pagava com ouro; outros, juraram que com prata. Para o taberneiro, o Grego, que tilintou, às escondidas, as moedas, e por meses a fio, em seus alforjes, não passavam de bronze.
Depois saiu.
Com ele se foi ar glacial dos ventos; com ele se foram as brumas revolutas, que não mais volteiam em nós, labirintos humanos.
Mas o que ficou não se conta.
Ficou o bafio regelado que impregna de miasma a nossas roupas e as nossas carnes, persistente como cicatriz profunda e indelével, e que nos faz repudiar um ao outro, e prender forte a respiração, ao mínimo contato. Ficou a bela sinfonia das terríveis noites invernosas, antes temidas, mas agora tão ansiosamente esperadas, eis que os ventos marinhos trazem e executam a melodia eurrítmica que nos comove. E mais ainda nos comove a harmonia que, surgida do vento, entrelaça no nada acordes extáticos e perfeitos. Porque nós – todos nós – não podemos, malgrado embriagados de tanta sonoridade, nos abraçar, como a música – a linda música – se abraça no ar.
Alguns de nós juram que fora Gabriel, o arcanjo, quem descera, naquela noite fria e negra, sob as ordens do Senhor, para nos punir.
Outros de nós acham que fora o Diabo, em pessoa, quem chegara e exercera a sua maldita soberania, que nos subjugará a todos – nós todos – por infindas gerações.
Quanto a mim, conto o que eu sei. E sinto o cheiro pútrido a exalar de meu corpo, enquanto a melodia bela embala o meu suave sono.
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