O PRESENTE DA DEUSA DO MAR

O PRESENTE DA DEUSA DO MAR

Autor: Rogério Silvério de Farias

Clóvis

I

Era a última noite do ano. Naquela praia deserta, um magote de homens e mulheres trajando roupas brancas e turbantes da mesma cor sobre a cabeça cantavam e dançavam freneticamente, ao som alucinante de tambores e atabaques. Era uma noite quente de verão, de modo que o suor grudava suas roupas em seus corpos. Alguns deles iluminavam, juntamente com a lua cheia, a escuridão da noite, empunhando tochas que dançavam sopradas pela brisa do mar como pequenas salamandras dançarinas. O grupo era composto de mulatos e negros, porém também havia alguns sararás. Eram todos descendentes de um estranho grupo dos negros quilombolas que habitaram aquela região, num tempo em que negros se homiziavam em lugares recônditos, como animais para fugirem da sanha de capitães-do-mato, tentando escapar do insano desejo de escravizar que os homens brancos gananciosos costumam ter. Eles, os descendentes dos negros quilombolas, também eram membros de uma antiga e misteriosa seita, uma parte sinistra de antiga religião que cultuava deuses ancestrais que representavam as forças e energias primitivas da natureza. E eles, esses descendentes, adoravam no altar da devoção as estranhas divindades que, na verdade, talvez não fossem deuses propriamente ditos, mas sim gênios, devas ou elementais, entidades do lado invisível do mundo físico, regiões quase que totalmente desconhecidas da terra..

Sobre o batel, foi colocada uma criança meio sarará e albina, trajando um pequeno vestido tão branco quanto sua pureza. A criança era meiga e graciosa, mais parecendo um pequeno anjo.

Dentro do pequeno barco branco, além daquela pequena oferenda humana que era a criança, havia uma quantidade de rosas também brancas, champanhas, algumas frutas, velas vermelhas e negras, quase todas acesas e que teimavam em não ser apagadas pela brisa do mar, que aumentava de intensidade a cada momento. Era um ritual em louvor a uma deidade das águas, não havia dúvida. O ritual de uma criatura sobrenatural, antiga e poderosa. Talvez uma ondina ou nereida adorada como deusa desde tempos remotos, imemoriais.

A menina no barquinho continuava em prantos, sentada, segurando as bordas do bote com as mãozinhas trêmulas.

Os homens negros mais robustos foram conduzindo o batel mar adentro, alguns deles o empurrando pela popa e outros o puxando pela proa. Depois, quando a água ultrapassava a cintura, eles, os homens negros, soltaram o batel com a menina em seu interior.

Era mais que um ritual; era uma prova espiritual inaudita! Se morresse, a criança seria realmente uma simples oferenda, e então pereceria. Se sobrevivesse, no entanto, seria a nova feiticeira, a nova sacerdotisa ou mandingueira do lugar. Uma bruxa predestinada a possuir poderes extraordinários de magia antiga, cultuada desde tempos imemoriais por todos os descendentes daquela raça de homens negros. O destino da menina seria decidido pela deusa do mar, que eles chamavam... Iemanjá.

Faltavam poucos minutos para a meia-noite. Logo nasceria um novo dia. Breve nasceria uma nova feiticeira na aldeia de pescadores ou então morreria uma nova criança naquele estranho rito.

Os pais da criança, na praia, olhavam-na desaparecendo no mar, na escuridão amedrontadora; a menina, agora em prantos, gritando, implorando através da música desesperada de seu choro, de seus soluços débeis e incontidos de medo e desespero, que eram quase abafados pelo som das ondas e dos tambores e atabaques do ritual esotérico.

O tempo se fechara sem que eles percebessem. Armara-se terrível borrasca! Logo um relâmpago desenhou no céu escuro uma luz assustadora e flamejante como o rabisco elétrico de um demônio numa lousa negra do inferno. A brisa da noite virou ventania forte agora. Era meia-noite em ponto! E a lua lançava raios tênues como que para iluminar fracamente o ritual esotérico e iniciático a beira-mar.

O trovão fez com que a menina se sobressaltasse em desespero. Ondas erguiam-se, assustadoras. A pequena lembrou-se, então, do que sua mãe lhe ensinara a fazer nos momentos de perigo. A criança então beijou a pequena medalha que trazia ao pescoço, um pequeno amuleto, algo como um talismã com o desenho de uma deidade de cabelos longos e trajando um vestido azul comprido e sensual. A rainha do mar, dizia a inscrição abaixo do desenho.

Inaiê... Marbô... Iemanjá!, os negros da praia cantavam como que num êxtase de devoção e sensualidade!...

A tempestade levantava vagas imensas, terríveis. O mar agora era como um monstro colossal e líquido de fúria avassaladora, incontrolável. Logo uma onda mais violenta adernou o batel, carregando a menina para as profundezas.

Na praia, o canto e a dança naquele estranho ritual cessou abruptamente e todos correram da chuva forte, exceto o pai e a mãe da menina, que abraçados e em prantos, continuaram cantando baixinho, agora ajoelhados na areia da praia. Salve grande Oloxum, Mucunã! Salve Marbô, soberana Inaiê, senhora mística das águas eternas do céu, da terra e do inferno!...

Num vórtice aterrador, a menina era arrastada cada vez mais para o fundo do mar, então a pobre criança perdeu a consciência por instantes... e veio a escuridão total e aterradora da inconsciência.

De repente a menina acordou. Ela ainda estava no fundo mar, mas não se afogara, pois se sentia como se fosse um peixinho no seio do vasto oceano. E alguém a guiava pelo vasto reino das profundezas do mar, como um cicerone subaquático. Alguém a segurava ternamente pela mão, enquanto nadava com ela. Este alguém, ela notou, era uma bela mulher, uma mulher metade gente, metade peixe. Uma sereia?... Não! É Iemanjá, a menina pensou. Iemanjá, a Rainha do Mar...

Iemanjá, ou quem quer que fosse aquela criatura, sorriu ternamente para a menina quando esta olhou o desenho no amuleto e viu que era muito parecida com aquela sua salvadora.

Aquela fabulosa mulher das águas viu imensa e cândida devoção nos olhinhos ternos da menina. Então ela afagou os cabelos da criança, como que a abençoando...

Antes de levá-la a superfície, a misteriosa mulher do fundo do mar levou a menina a conhecer todas as belezas, perigos e mistérios das profundezas.

Já amanhecia na praia quando a tempestade terminou. Os pais da menina ainda estavam ajoelhados, de frente para o mar, cabisbaixos, entre um e outro soluço de pesar. Eles estavam sozinhos, pois os demais haviam ido embora, certos de que o ritual terminara e o mar, o misterioso, o impiedoso mar, com seus deuses arcaicos e inclementes, havia engolido a menina, matando-a como um grande e cruel demônio que engolia a oferenda daqueles que o temiam.

A mãe soergueu a cabeça e olhou as ondas refletindo o sol da aurora, numa derradeira esperança de reaver sua criança oferecida em holocausto àquela estranha divindade do mar. Lágrimas teimosas e amargas ainda rolavam de seus olhos entristecidos, e seu coração de mãe era como um pote da mais terrível das dores..

De repente, os olhos da mãe arregalaram de júbilo e felicidade. Um verdadeiro milagre diante de seus olhos esbugalhados! A menina, seu querido rebento, vinha sorridente saindo do mar em direção à praia, pulando divertidamente as marolas e outras ondas de pequeno porte.

O pai olhou também, sorrindo de felicidade e ao mesmo tempo estarrecido.

E eles foram ao encontro da menina, abraçando-a afetuosamente.

Viram também aquela estranha arca que era trazida juntamente com restos de algas marinhas pelas ondas até a areia da praia. De algum modo, talvez intuitivamente, os pais da criança sabiam que somente a menina poderia abrir, algum dia, aquela terrível e misteriosa caixa.

A criança sobrevivera ao estranho ritual de iniciação. Agora ela era uma escolhida, a portadora de poderes mágicos cedidos por uma entidade muito poderosa que morava no fundo das águas do arcaico e misterioso mar. A menina era, agora, a sucessora de sua avó, que morrera, uma semana atrás. A menina era a nova mandingueira da aldeia de pescadores...Uma nova sacerdotisa, a sacerdotisa do mar e dos deuses terríveis que nele moram desde a juventude do mundo, em eras tão antigas que ninguém jamais ousou sonhar!...

E a menina agora poderia ir ao fundo do mar quantas vezes quisesse, sem afogar-se, como se fosse uma criatura anfíbia. Poderia brincar nas mágicas profundezas abissais, brincar com a deusa das águas e dela ganhar presentes, brincar com os peixes, brincar com as outras estranhas criaturas que compunham aquele lugar no fundo do imemorial e místico mar. E, quando a menina crescesse e envelhecesse, seria ainda mais respeitada e temida como mandingueira, feiticeira, sacerdotisa das antigas e misteriosas águas do mar.

II

Já era quase noite. Antes que a noite viesse, porém, veio a brisa do mar, como que sussurrando augúrios sombrios. E quando a noite chegasse para valer, traria em seu rastro uma solenidade macabra que iria cobrir o lugar como se fosse um invisível e sinistro véu de sombras. Traria o medo, com certeza. O medo, e com ele, o profundo horror. A noite seria como um espectro aterrador vestido de sombras, descendo, descendo e envolvendo tudo, manchando de trevas tudo ao redor, enxovalhando de negro os restos da luz do dia. Aquela noite, em especial, prometia ser tão perigosa quanto o delírio de um maníaco homicida.

Nuvens tão escuras como as almas daqueles desgraçados, que decerto ardem lá nas chamas dos reinos infernais, prosseguiam numa singradura célere no céu pardacento, prenunciando uma tempestade iminente.

À aproximação da procela, o mar começava a ficar banzeiro, em fúria, como um gigante condenado a uma solidão e fúria infinitas. Logo as ondas ficaram tão bravias que pareciam feras assustadas com a aproximação de um caçador. E sumiam os derradeiros arrebóis sanguíneos no horizonte de sombras sinistras, como almas incendiadas rumo aos precipícios negros do inferno.

Alguma coisa, alguma coisa nefanda, estranha e terrível parecia pairar naquele lugar, algo assim como uma terrível maldição. O lugar guardava energias cultivadas desde tempos passados. Aquele lugar tinha sido palco de estranhos rituais mágicos, rituais que quase todo as gentes dos tempos modernos ridicularizam, em suas tolas presunções e jactâncias.

Gaivotas nervosas grasnavam frenéticas à procura de um abrigo seguro nos ninhos feitos em touceiras no alto da grande falésia, que majestosamente se erguia à beira-mar como um monumento colossal esculpido pelas mãos da deusa mãe Natureza.

Em fúria, ondas cada vez mais violentas arrebentavam estrondosamente nos rochedos da beira da praia. O barulho infernal do choque parecia com o grito de um titã ferido anunciando o Juízo Final.

Duas figuras vinham lépidas, de mãos dadas. Eles eram os jovens Janice e Glênio. Desciam por uma encosta bem ao lado da perigosa falésia, encaminhando-se por uma espécie de pequena tavoca que dava bem na praia.

Em sua maioria, os jovens são reservados e cheios de mistérios. Buscam comportamentos diferentes, às vezes só para assassinar o tédio e a monotonia. Quando conseguem se relacionar com alguém, a amizade torna-os ainda mais bizarros do que os adultos. Quase sempre tais relacionamentos terminam em confrontos — como acontece, aliás, com a maioria dos adultos... que esqueceram de crescer.

Ele, olhando de través, quis saber, malicioso como um jovem fauno:

— E então?... Você ainda não me disse se gostou ou não de meu...desempenho...

— Bem...Posso dizer que você correspondeu, mais ou menos, às minhas expectativas — disse ela, rindo meio brejeiramente, as adoráveis covinhas acentuando-lhe a beleza do rosto moreno e pueril enrubescendo levemente.

— Mas você estava ansiosa, bem nervosa, não estava? — ele quis saber.

— Um pouquinho... — ela disse. — Coisa normal, coisa de quem faz pela primeira vez.

— Claro, claro. Mais cedo ou mais tarde você iria perdê-lo, afinal, era somente uma maldita membrana...

— Seu bobo!... — ela riu, tímida.

Os dois se olharam ternamente.

Janice falou, então, toda emproada:

— Agora sou mulher de verdade! Sinto-me como se tivesse tirado um peso de minhas costas.

Glênio percebeu um certo orgulho nas palavras dela.

Ele falou, mudando de assunto:

— Vamos embora de uma vez, Janice. Vem aí um temporal daqueles, não vê?

Ela seguiu o olhar dele. Ele olhava o céu, o qual começara a ficar escuro e ameaçador. O firmamento parecia o fundo de uma grande sepultura cósmica prestes a explodir.

Eles dois passaram a tarde toda entregues aos arroubos da paixão juvenil. Ela, pela primeira vez; ele, sempre entusiasmado, sempre como um endríago voraz e lúbrico (seus hormônios eram como dragões quânticos piruetando em festas químicas glandulares)...

Distantes de todos e de tudo, ali, no alto daquela falésia, os liames da paixão entre ambos tinham ficado ainda mais fortes, pujantes.

Os dois estavam satisfeitos, agora. Ambos tinham conseguido reacender o fogo da paixão, aquele ardor imaturo, mas cheio de vida, cheio de promessas de ternura e compreensão, cheio de álacres oaristos e vontades de amar, amar e amar...

Certo, era um amor incipiente, ainda. Amor juvenil, mais paixão do que amor...Um arremedo de amor, do amor que raros mortais conseguem efetivar nesta estranha senda que vai do berço ao túmulo, a vida.

E quase que tudo acabara entre ambos, na semana anterior, por causa de uma pequena e tola rusga.

De todo modo, a briguinha servira para alguma coisa: proporcionara as primícias de Janice!

O carro de Glênio estava logo abaixo, na praia. Um velho Opala, azul escuro, velho, bem velho, quase caindo aos pedaços.

E os dois jovens logo entraram no automóvel. Sentaram-se, trocando olhares lânguidos como quem troca figurinhas pornográficas invisíveis.

Janice disse a Glênio:

— Quero ter uma conversa séria com você, querido...

— Ihhh!...lá vem bomba, então. Detesto conversas sérias. A seriedade transforma o mundo numa jaula de chatos.

— Glênio!...

— Está bem. Manda bala!...

— Quando vamos marcar a data do nosso... casamento?

— Ihhh...Eu sabia!...

— Glênio!...

— Olha, guria...Eu acho que você está pondo o carro na frente dos bois. Casamento, nesta crise que o país atravessa? Com o salário miserável que tão pagando pro trabalhador atualmente? Eu não nasci pra sofrer; nasci pra curtir a vida. Acho que é melhor esperar essa droga de país melhorar um pouco, sei lá...

— Esperar o país melhorar? — fez ela, indignada. — Então nós só vamos nos casar só depois de mortos, no Além. O país nunca vai melhorar, Glênio, pois é governado por picaretas, escrotos e safados...

— Taí... Você deu uma ótima sugestão.Vamos deixar esse assunto pra além da eternidade. O negócio é a gente continuar namorando...E não se esqueça desta grande verdade: casamento é uma estranha casa onde quem tá dentro quer sair e quem tá fora quer entrar. Loucura, loucura, loucura!...

— Glênio!...

— Tá bem, tá bem...Nos casamos depois que eu arrumar um maldito emprego... Vou deixar de viver de rolos e trambiques, eu prometo.

— Sabe, Glênio...Às vezes eu fico pensando se você não usa a desculpa do desemprego pra não casar comigo. Acho que você está me enrolando, seu malandro...

— Não é bem assim, guria...

— É, sim. Você só fica me enrolando, me enrolando... – disse ela, soltando um muxoxo de desagrado.

— Vai começar de novo? Mas que coisa! Sua mãe não vive cobrando de você que, pra casar, só quando eu tiver um maldito emprego fixo? — disse ele, seco, direto.

— Ela conhece os malandros. Meu pai era um desocupado que nem você. Só incomodou, em vida. Minha mãe não quer que sua filha case com outro traste que nem foi o marido dela...

— Ah, então aquela coroa fala mal de mim pra você?

— Acho que a mãe tem razão. Você, além de ser vadio como o seu tio Josias, não passa de um surfista vagabundo querendo conquistar todas — disse Janice, triste e aborrecida ao mesmo tempo.

— Sua mãe é o diabo, mesmo!

— Glênio! Não fale assim desse jeito! Olha, vamos parar com esse papo, senão a gente acaba brigando outra vez...

— É bom mesmo, Janice. Vamos viver o momento. E o resto que se dane...

— Glênio!

Glênio ainda concluiu, em pensamento: “inclusive que se dane sua digníssima mãe. É isso aí. Ela que se dane também, aquela diaba!”

Com um forte e afetuoso amplexo, Glênio a envolveu em seus braços, dando-lhe ósculos carinhosos na face macia de Janice, depois lhe beijando mais ardentemente os lábios carnudos e sensuais que eram como duas rosas vermelhas úmidas de sôfrega paixão juvenil, perfumadas pela maresia.

Foi nesse instante que Janice percebeu, de soslaio, a assustadora figura de uma velha que passava como um fantasma, bem rente ao Opala; a velhota havia descido pela trilha íngreme e serpenteante do mais alto penhasco que ficava um pouco distante da falésia, penhasco sobre o qual ficava situada sua velha e tosca casinha feita com madeira e restos de barcos de pesca naufragados que vieram dar na praia.

Janice esbugalhou os olhos.

Então ela murmurou no ouvido de Glênio:

— Glênio...Olhe, só!

— Hã?...

Glênio parou de beijá-la por um instante. Olhou para o lado e viu aquela velha feia, imunda e desmazelada. Uma velha sarará, albina, um tanto corcunda.

— Olha só... — ele murmurou, ao mesmo tempo para Janice e para consigo mesmo.

A mondonga apoiava-se num velho e cambaio cajado. Seus cabelos, cãs desgrenhadas, agitavam-se ao vento, dando-lhe uma aparência espectral de velha górgona.

Seus pés descalços pisavam na areia molhada, devagar, quase levitando.

Glênio observou o rosto da velha. Um rosto encarquilhado, um velho semblante onde se estampava ao mesmo tempo maldade e enigma, sabedoria e arrogância.

Magérrima, esquelética, ela continuava caminhando, olhando em frente, mostrando-se indiferente a tudo e a todos, como se estivesse numa meditação infernal.

— Mas quem será essa velha? — indagou Glênio, debochado, respondendo para si mesmo, logo em seguida: — A mulher do Matusalém, é claro!...Que museu ambulante!...Acho que ela já morreu, mas esqueceram de enterrá-la.

— Glênio, não brinque assim! É ela!

— Ela quem?

— A velha mandingueira!

— Velha mandingueira?

— Sim, ela mora sozinha na velha casa no topo do penhasco — respondeu Janice, cochichando e apontando para a velha e tétrica casinha, situada quase na beira do penhasco. — Minha mãe diz que ela fala com os orixás. Outras pessoas dizem que ela tem é parte com o Demo.

— Sei. Parte com o Demo. Eu também tenho. Você também tem. Provavelmente, todo mundo tem parte com o Demo neste mundo infernal.

A ironia do rapaz irritou a moça.

— Glênio!...

— As pessoas usam o Diabo como desculpa para as suas safadezas e artimanhas...O Diabo são as pessoas, Janice. Entenda isso.

— Pode até ser, mas no caso dessa velha a coisa é diferente...Olha, não brinque, não. Ela mexe com coisas do sobrenatural. Dizem até que ela conversa com todos os espíritos e orixás, principalmente a Rainha do Mar...

— Rainha do Mar?

— Olha! Não brinque, não! Minha mãe contou...A Rainha do Mar é Iemanjá!

— Você é uma tonta, mesmo. Não vá atrás das tolices sobrenaturais de sua mãe. Ela acredita até em bicho-papão. Diabo, Iemanjá, orixás, sereias, ondinas...O que quer que sejam, tudo, no fim das contas, não passa de um monte de bobagens supersticiosas, pasto pros ignorantes. Os verdadeiros demônios são aqueles que nos governam, os políticos, por exemplo.

— Não brinque com essas coisas...

— A tal velha mandingueira que já vai lá deve ser uma macumbeira barata, com seus saravás idiotas e seus despachos imbecis. No fundo, deve ser é uma caduca, uma louca. O peso da idade não apenas curva o corpo das pessoas, mas também suas mentes. Entenda isso, guria.

— Talvez você tenha um pouco de razão — concordou Janice —, mas é bom não mexer com ela, por via das dúvidas. Dizem que ela é muito vingativa. Quer ouvir a história dela?

— Conta, vai. Tenho um amigo, o Rogério, que escreve contos de terror nos fins de semana; um escritor de fim de semana, digo. Depois eu passo a história pra ele.

Janice começou a contar:

— Minha mãe contou coisas sobre a velha mandingueira. Coisas estranhas e terríveis. A velha, quando criança, recebeu da deusa das águas o dom de mexer com coisas do mundo que estão invisíveis aos nossos olhos; nós chamamos coisas do sobrenatural, mas são coisas de um mundo invisível e mágico que permeia o nosso, ou melhor, que coexiste com o nosso.A velha tinha um marido meio louco, que se dizia portador de uma estranha clarividência que lhe permitia ver mundos infernais, que depois acabou se atirando lá de cima do penhasco. Tudo aconteceu há muito e muito tempo, quando Enseada das Virações era pouco mais que um vilarejo de pescadores. Talvez o marido da velha, na verdade, fosse um lunático, um pervertido com problemas espirituais e psicóticos. Talvez. Minha mãe acha que foi ela, a velha mandingueira, quem o empurrou de lá do alto, pois, embora os dois vivessem juntos, não se davam muito bem. Viviam às turras, os dois. Brigavam feito cão e gato numa verdadeira guerra de egos endiabrados.

— Até aí, nenhuma novidade. De louco, todo mundo tem um pouco. E briga de casal também não é novidade...Casamento é assim mesmo: quem tá dentro quer sair, quem tá fora quer entrar... — disse Glênio, rindo.

— Talvez, Glênio... — disse ela, esboçando um meio sorriso.

— Vem cá, e a polícia? O que concluiu? Suicídio?...

— Já lhe disse: isso tudo foi há muito tempo atrás, quando Enseada era apenas um lugarejo insignificante. Não existia sequer um posto policial por perto, quanto mais uma delegacia. Enseada das Virações era praticamente uma terra sem lei.

— Sei...

Janice continuou:

— Mas a verdade é que todos sabiam que ela mexia com feitiçaria, catimbó, magia negra das brabas!

— Bem, mesmo assim, pra mim é tudo besteira. Tolices. História pra boi dormir. E eu não sou boi e nem quero dormir.

— Você, Glênio, é um cético perfeito. Não acredita em nada, nem em coisas que estão além de sua compreensão. É um ateu incorrigível. Um materialista empedernido. Em que você acredita, afinal?

— Eu sou um iconoclasta — respondeu ele, apalpando os seios pontudos da jovem morena. —...e um sensualista, é claro. Eu leio muito, guria. Não sou tão bobo quanto pareço. Sou um cara esclarecido. Posso ser malandro mas não sou burro.

— Você é um safado, isso sim! — brigou ela, dando-lhe um leve tapinha no rosto de seu namorado. Ele se esquivou de um outro tapa, rindo como uma hiena bêbada. — Você só pensa nessas coisas?

— E tem algo melhor pra se pensar? No que você quer que eu pense? Na economia do país? Na cambada de espertalhões que governa a droga do mundo? Nas pessoas que morrem de frio e fome por não terem tido uma chance na sociedade? Nas guerras sangrentas que matam milhares e milhares de crianças inocentes?...

— Está bem, está bem...Poupe-me de seus discursos...

— Pra onde será que a tal velha mandingueira vai? — quis saber Glênio, curioso, ao ver a velhota se afastando pela beira da praia.

— Não percebe? Ela está catando lenhas trazidas pela maré — Janice respondeu, apontando com o queixo para a velha, que então se agachava com dificuldade, recolhendo pequenos pedaços de lenho sobre a areia.

— Ah, bom...

— Decerto ela vai preparar um cozido... — arriscou Janice.

— Sei. Mariscos com pedaços de cérebro humano. Blearghh! — falou Glênio, fazendo um esgar de nojo.

— Seu bobo! Garanto que se ela fizesse um ensopado com o seu cérebro, a velha teria uma baita indigestão.

Eles dois riram.

De súbito, Glênio parou de rir e estalou os dedos da mão, falando:

— Acabo de ter uma idéia mirabolante, Janice!

Ela parou de rir. Quis saber dele:

— Que idéia é essa?...

— Que tal se a gente subisse lá no penhasco e entrasse na casa da velha maluca?

— Ficou louco? Fazer o quê, lá?

— Bisbilhotar. Quem sabe a gente não encontra o demônio em pessoa, por lá. A gente aproveitaria e pediria pra ele um bom emprego. Um cargo nada pequeno, pra começar. Um cargo comissionado, por exemplo. Assessores do diabo. Que emprego, hein?...Melhor que isso, só sendo assessor de deputado.

Ela riu. Ele também.

— Você é maluco mesmo, Glênio.

— Veja...Ela já vai lá longe; continua ajuntando gravetos e lenhas. Olha lá, olha lá!...Agora ela sumiu atrás daquela duna.

— É...

— Vamos! Ela é tantã da cabeça, mesmo. Se ela voltar e nos pegar em flagrante, podemos dizer que queremos uma ajuda espiritual...

— Será divertido, apesar de eu estar um pouco receosa com essa velhinha... – ela pensou, alegre. Depois olhou, pensativa, para a casa da velha.

— Vamos?

— Vamos, então. Mas tem que ser bem rápido, pois ela pode voltar e nos pegar.

— A gente só dá uma olhadinha e pronto.

— Então, vamos!

Saltaram do carro e correram, vez por outra olhando para trás, para verem se a velha estava retornando.

Subiram o caminho tortuoso que conduzia ao cimo do penhasco, onde estava a casa da velha mandingueira.

A casa tinha uma varanda pequena onde zuniam moscas varejeiras, daquelas bem grandes, roliças e verdes. Era um ror de moscas nojentas que voavam frenéticas por ali, como minúsculos demônios alados do inferno.

— Meu Deus, quanta mosca! — comentou Janice, desferindo no ar alguns tapas, tentando afastar os insetos alados repugnantes. — E que fedor! Até parece que tem alguma coisa morta lá dentro. Ai, Glênio, será que...

—...Tem um cadáver lá dentro?

— Ai, meu Deus...

— Que nada! Aquela velha só mata mesmo é frango de macumba pros seus saravás idiotas. Acho que deve ser peixe que a velha tem guardado...Ou então a velha é que é porcalhona mesmo...

Glênio espiou pela velha gelosia. Estava escuro lá dentro. Não deu para ver muita coisa.

Glênio brincou:

— O fedor deve ser do maldito penico da velha, muito provavelmente...

Os dois nem notaram que a tarde morrera e a noite surgira com seu manto de sombras sinistras.

Glênio dirigiu-se até a porta da casa, pondo a mão na maçaneta fria e enferrujada pela maresia, girando-a.

A porta abriu lentamente, rangendo alto, os gonzos guinchando como demônios exultantes foragidos das cloacas pútridas dos reinos infernais, reinos estes que sempre estão sempre de portas abertas para os mortais.

— Está aberta, a casa. Ela deixou a porta só encostada. Neste fim de mundo, quem apareceria para arrombar a casa?

Janice respondeu:

— Bisbilhoteiros como nós!

— A velha mandingueira não deve ter nada que preste aí dentro, senão trancaria a casa.

— Será que ela não tem cachorro, Glênio?

— Dentro de casa? Acho que não. Bruxas têm é gatos, normalmente. Gatos pretos. Se tiver um gato aí dentro, dou um chute e jogo o desgraçado longe.Detesto gatos. São uns folgados. São animais estranhos, os gatos. Estranhos, mas bem espertos e vadios. Uma vez, quando eu era pequeno, apareceu uma ninhada de gatos nos fundos do quintal lá de casa. Quando os malditos crescessem, pensei comigo, só iriam querer sombra e água fresca. Afinal, pra que servem gatos? Cães ainda cuidam das casas de seus donos, mas gatos, gatos são uns imprestáveis. Bem, aí eu peguei tudo, botei num saco e afoguei a diabada toda num riacho. Os bichos gritaram tanto que parecia um coral de bruxos queimando no fogo do inferno!...

— Deixa de história, Glênio. A velha não tem nada que nos interesse. Vamos embora, vamos!

— Calma, guria...Vamos dar uma olhadinha. A porta do inferno foi aberta, não custa nada dar uma olhadinha na casa do capeta... — disse, rindo.

— Glênio!

— A nossa aventura de vir até aqui tá ficando parecida com uma cena do filme de terror que assistimos semana passada, lembra? Morte na Casa do Demônio: Parte VII. Era este o título do filme. Um filme idiota, sem dúvida, típico desses americanos paranóicos, mas um filme muito, muito divertido...

— Glênio! Estou começando a ficar com medo. E se ela tiver um filho psicopata aí dentro?

— Com um machado na mão pronto pra decepar nossas cabeças, que nem no filme que vimos?

— É.

— Não se preocupe. Se a velha tiver um filho, este deve ser um retardado ou aleijado...

Janice olhava de vez em quando lá para baixo, para a praia. Um crescente receio de que a velha retornasse subitamente e os flagrassem em seus domínios.

Eles entraram. Lá dentro estava escuro.

Glênio tirou do bolso da jaqueta o pequeno isqueiro à gás, premindo a pequena tecla do mesmo, acendendo-o.

Então os dois puderam ver os estranhos artefatos dependurados no teto, os quais moveram-se como móbiles bizarros com a entrada da lufada de vento pela porta aberta. O que era e para que servia exatamente aquilo tudo exatamente, ninguém sabia dizer, exceto a misteriosa velha.

Sobre o umbral havia uma carranca grotesca e hedionda. Era um adorno horrendo, provavelmente tirado da proa de algum antigo barco naufragado.

Também havia um velho quadro de gosto duvidoso. Na tela via-se um estranho e grotesco símbolo místico. Parecia ser uma espécie de mandala ou coisa parecida.

Vários escapulários sobre o tampo da velha mesa, além de um alguidar com água de mar e pétalas de rosa vermelha em seu interior. Restos de velas vermelhas apagadas por toda parte. Provavelmente sobras de um ritual de magia negra.

No interior da casa aquela enorme quantidade de moscas zumbiam, rondando como minúsculos abutres. Realmente as beronhas voavam em verdadeiros enxames, parecendo liliputianos demônios alados num balé aéreo dedicado aos deuses da imundície e da podridão.

O fartum asqueroso e insuportável impregnava o ar, tornando a atmosfera dentro de casa quase irrespirável.

— Jesus! Que fedor! É como se tivesse mil cadáveres podres aqui dentro! — exclamou Janice.

— É. E não parece peixe, não. É mesmo algo como uma carniça miserável, sei lá, guria!

— Glênio...Acho que vou...vomitar ... — disse Janice, sentindo fortes náuseas, já começando a ter engulhos incontroláveis.

— Calma, calma! Respire fundo! Agüenta firme aí! — disse Glênio, caçoando um pouco, mas denotando certa preocupação nos olhos.

— Glênio! – irritou-se Janice.

— Tudo bem, tudo bem. Agüenta só mais um pouco. Já vamos sair.

Ela procurou se controlar por alguns instantes. E conseguiu.

Glênio ainda comentou:

— A maldita velha é louca mesmo, pois só uma pessoa realmente muito louca viveria aqui dentro, neste fedor, nesta imundície miserável.

— Talvez seja uma espécie de incenso... — arriscou Janice, tapando o nariz com a mão.

— Que incenso, guria! Olha, pra mim a velha não passa de uma grande porcalhona mesmo! — gozou Glênio, gargalhando, para dar ainda mais ênfase à sua facécia.

— Doido! — disse Janice, tapando ligeiramente a boca e o nariz, agora com as duas mãos, e saindo de dentro da casa em passos lépidos.

Já na varanda, Janice tentou apoiar-se à balaustrada baixa e carcomida de cupim.

Ela regurgitou, numa rápida e forte golfada.

Tossiu um pouco, respirou fundo. Murmurou para consigo mesma:

— Droga...

Lá dentro, Glênio pusera-se a examinar melhor a casa.

Usava parte de sua jaqueta como máscara, já que o cheiro era deveras insuportável.

Iluminando com a chama pequena do isqueiro, Glênio observou um nicho no canto da minúscula sala. Em meio às sombras, naquele nicho, havia uma velha arca ou caixa revestida de couro negro. A grande e estranha arca ou mala estava coberta de teias-de-aranha.

— Vamos embora, Glênio! Chega de aventuras e emoções fortes por hoje! — era a voz de Janice, que vinha lá de fora. — A velha mandingueira pode chegar a qualquer momento! Além disso, não estou legal... Acabei de vomitar, Glênio...

— Já vou, já vou!Espere só mais um pouquinho! Acabo de encontrar uma coisa, aqui! — gritou ele, entusiasmado. — É uma espécie de arca, sei lá!...Quem sabe não guarde um tesouro da velha?...

— Ande logo, Glênio!

— Tá bem!

Glênio observou que, sobre a tampa da velha arca, e mesmo ao redor dela, havia quantidade ainda maior de moscas, quase todas pousadas.

Glênio pensava, movido pela curiosidade:

Acho que o motivo pelo qual tantas moscas foram atraídas pra cá está exatamente aqui, bem aqui dentro! O que será que tem dentro desta arca? Será um tesouro oculto, e o mau cheiro é só para afastar os ladrões?...Se não for peixe, então, muito provavelmente é alguma coisa morta! Meu Deus será um cadáver esquartejado de um infeliz que tentou roubar um tesouro da velha? Bem, de qualquer modo, vamos descobrir isso logo de uma vez... Porém não posso assustar Janice mais do que ela já está...

Lenta e cuidadosamente, Glênio abriu a tampa da arca.

Súbito, seus olhos ficaram esgazeados de tanto pavor. Seu coração disparou velozmente como um cavaleiro cavalgando pelas obscuras planícies do medo. Sua voz ficou trêmula, desesperada.

— Meu Deus!...Janice, não podes imaginar o que vejo aqui dentro! É uma coisa terrível!...

— O que foi, Glênio?...

— É uma coisa... Meu Deus!...Uma coisa horrível, Janice!... Ai, meu Deus!... Janice!...Te manda! TE MANDA!..

.

— Mas o que foi?...

— Corre! Não dá mais pra eu escapar!...Ai, meu Deus! Vou morrer, Janice! Vou morrer!... Foge! TE ARRANCA, guria!

Lá fora, ao ouvir o grito lancinante de dor e terror expelido pela garganta de seu namorado, Janice estremeceu, os joelhos fraquejando de tanto medo. Seus cabelos arrepiaram-se todos. O sangue gelara em suas veias. Ela empalidecera por completo.

— Glênio? — ela falou.

O pavor da jovem aumentou quando ela ouviu um segundo berro, mais aterrador que o primeiro. Um urro, um urro bestial, algo como uma mistura de regougar irado com um guinchar gorgolejante de fúria. E certamente não era outro grito de Glênio. Era um grito que não era humano, disso Janice teve certeza.

E num clamor desesperado, ouviu-se a voz do rapaz ecoando, num último e dramático apelo (ele estava em prantos, Janice podia ouvir):

— Foge, Janice! Pelo amor de Deus!... Foge, porra!...

Trêmula e hesitante pelo grande cagaço, Janice foi até a porta, contrariando os apelos desesperados de seu namorado.

— Glênio?

Ouve um silêncio aterador.

Então Janice começou a ouvir um outro som, um som medonho. Era o terrível barulho de ossos sendo quebrados... Os ossos de Glênio!

Abrindo a porta, entrou, enquanto continuava falando, entre amedrontada e irada:

— Glênio, seu idiota! Pare já com essas suas brincadeiras estúpidas e ridículas! Agora compreendo: é mais uma de suas brincadeiras cretinas! Vamos logo embora deste lugar horrível!...

Era noite escura, agora. E o vento começara a soprar forte, mais cortante e frio que o gume de uma navalha na garganta de um inocente.

E, de repente, Janice gritou, tomada pelo horror extremo, no exato momento em que se iniciava uma tormenta infernal. Trovões estrondosos, relâmpagos assustadores! O terror atingindo o clímax !

Lá fora, a velha mandingueira se aproximava ligeiramente, agora.

Ela vinha pela beira da praia, com um pequeno feixe de lenha num dos ombros, sempre caminhando, ou melhor, claudicando. Sua cabeleira despenteada esvoaçando loucamente, acentuando na velha a aparência de medusa.

Antes de subir o penhasco, ela parou um instante.

E, depois de um momento, pôs o feixe de lenha no chão, aproximando-se do veículo de Glênio.

Agachando-se com muita dificuldade perto do pneu do carro, ela esvaziou-o com a ponta de suas grandes e afiadas unhas, num golpe forte demais para uma pessoa de daquela idade.

Ela então soltou uma risadinha medonha de puro escárnio e maldade, o rosto iluminado fantasticamente pela luz fugaz de um relâmpago.

Girou nos calcanhares, voltou e recolheu o pequeno feixe de lenha, subindo pela estreita e coleante estrada.

Seu semblante agora estava diabolicamente exultante. Resplandecia de terrível maldade, uma maldade sem limites.

III

Pouquíssimas coisas agitam a crônica policial da quase sempre pacata localidade de Enseada das Virações. Mesmo na alta temporada, com a invasão de turistas encrenqueiros oriundos da capital.

Quando a polícia civil foi acionada para investigar o caso do misterioso desaparecimento do jovem casal de namorados, não foi dada a devida importância, nem houve muito bulício. A polícia da cidade acreditava que fosse mais um simples caso de um jovem surfista que se apaixonara por uma garota bonitinha, e que resolvera roubá-la da família, que provavelmente não aprovava o namoro.

Quando o Fusca branco com os dois beleguins à paisana em seu interior estacionou ao lado do Opala abandonado de Glênio, eles viram que, sobre o capô e sobre o teto do veículo havia várias gaivotas que, assustadas, logo alçaram vôo, grasnando nervosamente.

A lataria do Opala estava todo lambuzado de excremento daquelas aves. Começava a enferrujar em certos pontos, principalmente devido à ação constante da maresia e das chuvas ocasionais.

Os dois investigadores de polícia conversavam, então:

— Pela descrição que nos foi dada, este carro tem tudo pra ser o do tal rapaz chamado Glênio Almeida — disse um dos policiais, ajeitando o boné e os óculos escuros. — Note que o pneu está vazio. O casalzinho deve ter ido a pé, pela praia.

— A mãe da guria disse que o rapaz é um tremendo vagabundo. Um desses surfistas ordinários, um rato de praia, pra ser mais exato... — comentou o outro.

— Vai ver os dois fugiram mesmo e estão por aí, escondidos, usando drogas e fazendo sacanagens como doidos...

— Dou o meu pescoço pra degola se não for isso! Está na cara! A guria, dizem, é uma tentaçãozinha, uma verdadeira bonquinha de porcelana!

— Realmente. Tive a oportunidade de conhecê-la, certa vez, no carnaval. Cara, que rabiosque! E tem mais: uma coquete, aquela. Pelo menos é o que o povo fala, né, não sei... Eu posso até estar errado: o povo é muito falador, fofoqueiro, você sabe.

— Quer saber duma coisa? Pois deve ser mesmo! Eu também ouvi esse boato. Todo mundo diz que ela era uma danadinha...

— Epa! Olhe só quem vem lá! — disse o outro policial, apontando com o queixo para a velha lá no alto do penhasco, descendo-o vagarosamente. — É a velha mandingueira, já ouvi falar dela! Talvez ela tenha visto algo...

— Duvido. Depois que o marido dela se matou, ela ficou meio retardada. Quer dizer, pra mim já era louca antes, depois então ficou duplamente louca. É inofensiva como uma mosca velha. Sua loucura é pouco mais que uma idiotice descontrolada. De qualquer modo, amanhã a gente vem de novo e interroga esse caco velho, só pra matar o tempo.

— Bem, então que se dane! Tá na hora da gente ir embora mesmo. Acabou o nosso horário de serviço. O delegado Souza que vá pro inferno, já cumprimos a porra do nosso horário. E, além do mais, nosso salário é uma bosta miserável, de modo que não vale muito a pena se matar de tanto trabalhar, você sabe...

O outro riu e disse:

— Um policial é policial vinte e quatro horas por dia, esqueceu, malandro? É o que delegado Souza costuma dizer pra nós...O delegado Souza, aquele filho da mãe.

— É, aquele porco suarento que vá se danar! E você sabia que ele anda com pretensões políticas? Quer se candidatar a vereador, pra depois se candidatar a prefeito e assim por diante. Pode um negócio desse?..

.

E ambos riram.

E depois de alguns instantes, foram embora.

Já quase na praia, a velha curvou os lábios ressequidos num sorriso sardônico, cheio de maldade, esfregando nos dedos o estranho amuleto pendurado no pescoço.

IV

Josias Lopes era um tipo especial de malandro entre tantos outros de Enseada das Virações. Fazia da contravenção a sua maneira de ganhar a vida, o seu ganha-pão mesmo. A velhacaria sem limites era um de seus pontos fortes, a malandragem total era o seu lema.

Aos 40 anos, beberrão e solteirão, ele passava metade do dia trapaceando; a outra metade ele ficava na mais completa ociosidade, às vezes, em crises de depressão profunda, vencido por uma amargura insuportável, tomando umas e outras para aliviar o nojo da vida.

Sim, à noite, caía nas farras da boêmia mais desvairada para esquecer o veneno da vida.

Josias vivia metido em rolos, como ele mesmo definia seus negócios.

Era um pássaro esquisito, esse Josias. Uma ave de rapina, na verdade. Uma ave de rapina pronta para atacar e contra-atacar. Para ele, o mundo era uma guerra de espertezas. Ele se considerava um soldado desertor da sociedade, um franco-atirador pronto para se dar bem a qualquer custo.

Apesar de usar apenas o seu modesto intelecto de malandro para extorquir dinheiro alheio, não deixava de valer-se da violência, quando não achava um otário. Assim, além de seus estelionatos e calotes, vez por outra furtava e assaltava também.

Nunca fora apanhado pela polícia. Fazia a coisa bem feita. Além do mais, parte da polícia da cidade quando não era incompetente e ociosa, era corrupta e bandida também. De modo que Josias sempre se safava, depois de pagar umas cervejas ou pequenas propinas para os tiras corruptos.

Já fazia um bom tempo que seu sobrinho desaparecera. Josias cagava e andava para o imprestável sobrinho Glênio. Até os investigadores de polícia, negligentes, deixaram de envidar esforços na busca de Glênio e Janice. Os dois eram filhos de gente pobre, de modo que logo a imprensa local (composta por uma pequena rádio onde papagaios aduladores de políticos falavam o dia todo e um jornal de pouca tiragem onde néscios ilustrados escreviam seus artigos e colunas sobre o nada da cidadezinha) e também as autoridades esqueceriam aquele mistério.

Aquele trolha imprestável do Glênio deve ter dado o fora desta cidade de miseráveis e vagabundos, juntamente com a sua namoradinha, pensava Josias. Na nossa família não nasceu ninguém que prestasse mesmo. Parece uma maldição, uma maldição do inferno...

Numa noite fria de outono, no botequim do Zoca, uma tasca ordinária situada quase à beira-mar, freqüentada por pescadores abrutalhados e indolentes da pior espécie, Josias descobriu que talvez pudesse sair da pindaíba na qual se encontrava. Quem sabe partiria para Maremontes, uma cidadezinha agradável bem ao sul, atualmente muito próspera.

Enquanto bebia um trago de conhaque para afugentar o maldito frio da noite, pusera-se a ouvir atentamente a conversa de dois velhos pescadores, então já temulentos, sentados a uma mesa próxima.

Espalhafatoso, um dos pescadores dizia ao outro, lançando perdigotos no ar:

—...Pois eu te digo uma coisa, Olendino: aquela velha caborjeira do inferno não só tem parte com o Capeta! Ela tem conchavo também com os orixás! Principalmente com Iemanjá, a Rainha do Mar!

— Iemanjá? – o outro perguntou.

— A própria!

— Não pode ser! Tá brincando, homem?...

— Brincando o caralho, porra!

— Mas Iemanjá não é do bem? Como é que ela conversa com a velha bruxa?

— Ah, meu camarada...Iemanjá, no fundo, no fundo não tá nem ligando pra esse negócio de bem e mal! Quem a agrada, tem tudo com ela! Ela é um orixá, e os orixás tão acima do bem e do mal...

— Será possível?

— É! E tem mais, ó: quem tem um pingo de juízo na cachola evita aquela parte mais erma lá da praia, principalmente o penhasco grande. Os antigos já diziam: existe uma força misteriosa e sobrenatural por aquelas bandas de lá. Acontecem coisas muito estranhas naquele lugar. Sabe como é que os mais antigos chamavam aquele penhasco, Olendino?

— Não, não sei não, Tonico...

— A Corcova do Diabo!...

— Puta que pariu!

Os dois riram, mais para espantar o medo. Tentavam disfarçar o medo através do riso, é claro.

— Olendino, vou te dizer uma coisa: minha falecida vó dizia que a velha mandingueira lá do penhasco é mais velha do que o pecado. Tem de duzentos anos pra cima, no mínimo, aquela carcaça velha. Acho até que ela não morre mais. Acho que ela vive neste mundo, mas não pertence mais a ele. Falando sério: a velha é neta de uma escrava com um pirata que fugiu pra cá, bem antigamente, quando os estrangeiros filhos da puta colonizaram o nosso país.

— Vai ver que essa velha desgraçada tem bastante grana, hein?

— É o que eu ia te dizer, Olendino! Dizem que ela tem um tesouro! Um misterioso tesouro que a própria Iemanjá deu de presente pra ela!

— Que tesouro será esse, porra?

— Ninguém sabe. Nunca ninguém ousou assaltar a casa da velha até hoje. Ninguém é macho o bastante para isso — continuava Tonico em sua caturrice. — A velha mandingueira é enfezada. Mexe com magia negra das brabas, aquela lá! Fala com os espíritos errantes da noite e também com os demônios vadios das profundezas do mar. Iemanjá gosta muito dela porque ela bota muitas oferendas no mar. A velha é ladina como o diabo.

Josias escutara atentamente a conversa daqueles dois pescadores ordinários. Já ouvira falar da velha, antes, mas nunca tinha dado a devida atenção. Coisas do sobrenatural nunca interessavam para ele. Mas agora, que estava numa merda danada, a coisa simplesmente mudava de figura. Por que não fazer uma visitinha à velha mandingueira? Sim, uma visita. Mas certamente não seria uma visita amistosa...

Josias tomou o último gole e, vendo que o dono do frege-moscas — o gordo, gago e míope Zoca — atendia um outro freguês, aproveitou o azo para esgueirar-se, sair de mansinho, sem pagar.

Na rua, enquanto caminhava pela praia, sob a difusa luminosidade da lua cheia, Josias pôs-se a ruminar sobre o tal tesouro da velha mandingueira. Seria realmente verdade ou mais uma história de pescador bebum? Quem poderia saber?

Josias cofiou a barba e falou consigo mesmo, em pensamento:

“Por que não tento? Se for mesmo verdade que a tal velhota tem um tesouro, posso afanar tudo e depois azular desta cidadezinha praiana de merda. Se a velha esboçar uma reação qualquer, basta umas boas bordoadas e ela fica mansinha, mansinha!”

Ele riu sozinho.

E, resoluto, lá se foi o patife, rumo ao penhasco da praia, rumo à casa da velhota.

Mais ou menos, ele já sabia onde ficava a casa; já passara por perto, certa vez, num carnaval muito doido, junto com uma piranha muito louca.

Soprava um vento sul muito forte e frio que mais parecia o sopro de um invisível gigante do inferno em peregrinação pela face da terra.

Ali está! É a casa da velha mandingueira!, pensava Josias. Essa conversa de que a velha tem amizade com Iemanjá, pacto com o diabo, que é bruxa e coisa e tal, não me assusta nem um pouco. É tudo idiotice de caiçara supersticioso e medroso. Acho que a tal velha deve ser é bem caduca, isso sim.

Ele desembolsou um canivete, desses automáticos, e continuou pensando:

De qualquer modo, estarei preparado.Se a velha imprestável se meter à valentona, furo as tripas dela! Ela vai ter de me dar alguma coisa de valor, ah, vai! Não vou perder meu tempo e nem a viagem, não...

Na varanda da casa, ele espiou pela gelosia da janela.

Havia um pouco de luz, a luz bruxuleante de um velho candeeiro.

A porta estava aberta, convidativa. Josias estranhou, mas mesmo assim foi. Talvez a velha tivesse saído e esquecido de fechar a porta. Josias tratou logo de entrar, devagar, cauteloso.

Fascinado, ele observou aqueles estranhos objetos que enfeitavam a casa, apesar do mau-cheiro horrível e as moscas zunindo.

De súbito, ao virar-se para o lado, eis que Josias se depara com a figura assustadora da velha mandingueira, a luz do candeeiro emprestando ao seu rosto muito encarquilhado um aspecto fantasmagórico.

Josias levou um susto.

Por sua vez, a velha sorriu maliciosamente.

osias, com o canivete em riste e um olhar ameaçador, puxou a velha pelos cabelos, para perto de si, encostando a lâmina rente ao pescoço dela.

— Velha cretina! — berrou ele, com raiva. — Você pode meter medo nos pescadores cagões desta cidadezinha de desgraçados, mas não em mim!

A velha gemeu algo que ele não entendeu.

Ele continuou ameaçando-a:

— Não me importo nem um pouco com as suas mandingas estúpidas, velha do inferno, estropício do mundo!...

A velha riu sarcasticamente.

Ele ameaçou ainda mais:

— Por que ri? A tua situação não é nada boa, velha! Passa logo toda a grana que tiver, tudo o que tiver de valor, se não quiser morrer!

A velha não disse palavra. Sempre aquele sorriso debochado desenhado nos lábios ressequidos.

Josias berrou, irritado, atirando-a de súbito ao chão:

— É muda, velha? E ainda fica rindo de mim? Pois então fique aí, bem quietinha, seu caco velho!

Josias mexeu e remexeu em tudo. Devassou tudo. Profanou aquela casa, que apesar de ser pouco mais que um mísero pardieiro, tinha valor esotérico para a velha, um valor místico incalculável, pois ali eram geradas forças místicas indizíveis. A sua casa era para ela como um lugar sagrado, um templo ou santuário onde misteriosas energias da natureza fluíam, invisíveis, portentosas, terríveis!

Com fúria, Josias arrancou os móbiles de conchas e atirou-os contra a parede. Depois ele perfurou com o canivete todos os escapulários de magia.

— Porcaria! Pra que essa porra toda? Você não tem nada de valor aqui, além dessas quinquilharias e tralhas místicas? E o tal tesouro que, dizem, você tem, maldita velha dos infernos?Cadê a porra do tesouro, desgraçada?...Desembucha logo!

Resolveu extravasar sua ira em alguém que, aparentemente, era mais frágil que ele, alguém como aquela velha mandingueira. Aproximou-se da velha, ainda caída, e chutou-lhe com violência ímpar o abdome da mulher.

A anciã gemeu, encolhida. Contudo, ergueu a cabeça e o fitou, rindo sarcasticamente.

— Velha louca! — vociferou Josias, colérico, vendo-a rir debochadamente.

De repente, de soslaio, Josias avistou a estranha arca. E aproximando-se curiosamente da estranha caixa, falou:

— Ah, então é aqui que você guarda as suas coisinhas, hein? O tal tesouro da conversa dos pescadores deve estar aqui...

Ele foi abrindo lentamente a tampa da grande arca, as moscas alçando vôo, agitadas, fugindo dali.

Foi aí que ele viu o cúmulo do horror!

Havia aquela coisa horrível dentro da arca, uma coisa terrível, inominável. Aquela mesma coisa horrenda que matara impiedosamente Glênio e Janice, que os devorara impiedosamente, famelicamente!

A monstruosa garra saída do interior da caixa envolveu o pescoço de Josias. Era como a garra de um caranguejo gigantesco.

— Larga, diabo! LARGA!LARGA! — gritou ele, desesperado.

Então Josias lembrou do canivete. Tentou espetar o monstro com uma fúria nascida do desespero, porém aquela garra era dura demais. A lâmina quebrara. Josias ficou totalmente à mercê da sanha sanguinária daquela coisa aterrorizante que lembrava um crustáceo artrópode gigantesco.

Josias não conseguiu emitir um grito de dor, apenas grunhiu algo quando sentiu sua traquéia ser cortada pelo aperto mortal da garra, quase lhe decepando a cabeça.

Logo a pinça infernal puxou rapidamente o cadáver de Josias para dentro da arca.

Uma bocarra hedionda, repleta de colmilhos afiados que mais lembravam os dentes de um tubarão, escancarou-se como as portas da morte.

Tarde demais, Josias compreendeu tudo. A arca funcionava como uma espécie de ratoeira infernal, armada para liquidar com invasores abelhudos que entrassem na casa da mandingueira...

A coisa medonha dentro da arca era o tal tesouro da velha, um presente dado por aquela antiga entidade do mar, há muito tempo, àquela velha mandingueira, no dia do seu ritual de sua iniciação. Um presente que agora era o bicho de estimação da bruxa. Um bicho de estimação que, de vez em quando, tinha de ser alimentado...De preferência com carne humana, carne de gente perversa do corrupto mundo da superfície. Gente que ousava invadir os domínios da velha feiticeira.

A velha mandingueira estava num frenesi de júbilo diabólico. Gargalhava como que num transe louco. Beijava vez por outra o amuleto que trazia pendurado no pescoço desde criança. Erguia os braços, numa alegria infernal, enquanto gritava um cântico de louvor, aprendido na infância, com sua mãe e com sua avó. Ela cantava e olhava para o mar com a certeza de que aquele era o lar de entidades fantásticas milenares, criaturas extraordinárias que ali viviam desde tempos imemoriais, quando o ser humano era apenas o sonho incipiente dos deuses.

Ainda demoraria um longo tempo até que outros invadissem a casa daquela velha ruim. Afinal, ela tinha a proteção de um dos muitos servos de uma ondina ou nereida, mãe-dágua ou divindade do mar que alguns a seu modo chamavam Iemanjá, um servo que também era uma criatura terrível das profundezas do misterioso e antigo mar, dado de presente a velha pela própria entidade sobrenatural das mágicas e antigas águas da Terra.

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