O HOMEM DO TERNO CINZA
O HOMEM DO TERNO CINZA
Autor: Paulo Soriano
Tudo aconteceu tão rápido quanto o flash de um raio.
Aquele não fora um dia bom para o homem de terno cinza. Estava cansado e faminto, mas a “lata velha” parecia ignorar tudo isso. Aliás, o homem do terno cinza tinha a impressão de que a “lata velha” não ignorava nada. Ela sabia. Quando achou por bem deixar um prego insignificante penetrar na camada mais conservada de seu de seus velhos e heróicos pneus, sabia muito bem o que fazia. E só deixou furar-se justamente porque o homem estava faminto e esgotado. A “lata velha” era assim mesmo. Gostava de vingar-se quando se sentia explorada, quando o homem abusava de suas forças e transcendia dos seus limites.
A troca do pneu atrasou a viagem muito mais que o homem de terno cinza poderia supor. Chegou o crepúsculo que logo declinou para a noite. E o homem não gostou nada disso, porque teria de guiar-se doravante somente pelo luar: os faróis da “lata velha” não funcionavam há muitos anos.
Assim prosseguiu o homem, devagar, tateando a rodovia. Parecia conformado, mas a chuva rebentou logo em seguida ao ribombar dos trovões. Então, num átimo, tudo ficou claro como o dia. Um raio talhou o céu e o homem do terno cinza mergulhou o pé no freio, sem se dar conta da enormidade do susto que tomara.
Tudo aconteceu durante a rapidez com que o flash enfunou de luz aquele vestido branco. O branco mais alvo e cintilante que uma mulher jamais ousou vestir. Ela atravessava a estrada como uma réstia luminosa e fugaz. Novamente envolvido pela escuridão, o vulto chocou-se contra capuz da “lata velha” e ainda resvalou na placa de sinalização, antes de prostrar-se entre as moitas do acostamento.
O homem do terno cinza remexeu no porta-luvas. Após alguma hesitação, desceu do carro, para examinar cadáver. Sim, porque o corpo desconjuntado no acostamento, que o luar envolvia como um sudário, só poderia ser o de uma pessoa morta. Aproximou-se do cadáver com o foco da lanterna incidindo sobre a face calma e bela, que se voltava para as estrelas. Era uma bela mulher ainda, e não um cadáver. Porque a mulher de branco descerrou os lânguidos olhos azuis, virou para o homem o rosto angélico que o luar beijava, e estendeu-lhe a mão, num gesto natural e simples de quem pede uma mera ajuda para reerguer-se.
Quando o homem ligou a ignição, após acomodar a mulher no banco do carona, a chuva recrudesceu, precipitou do céu abissal num estrondo violento. Por vezes, os raios vergastavam o ar escuro, encrespado pela chuva, e nessas ocasiões era possível ver o clarão reverberar no rosto da mulher, que parecia dormir.
Então a mulher disse:
- Para onde você está me levando?
- Não sei – respondeu o homem de meia-idade, sentindo o hálito incrivelmente quente da mulher. –Talvez para um hospital.
- Eu não preciso de um hospital.
- Talvez você tenha algum osso quebrado.
A mulher virou os olhos castanhos para o homem do terno cinza e o fitou enquanto durou a luz fugidia de um raio. Já não parecia assim tão bela.
- Leve-me para casa – ela disse, categórica, para o homem de meia-idade.
O homem de terno cinza parou o carro no acostamento, ligando a lanterna de mão para ver melhor com quem falava. Instantaneamente, a mulher levou a mão ao rosto, num gesto de repulsa. A luz parecia queimar-lhe a pele. Mas ainda assim o homem conseguiu distinguir um quê de horror nos olhos negros da mulher de branco.
- Seus olhos – disse o homem. – Sim, seus olhos... Eles mudaram de cor. Eram azuis e agora são pretos.
De súbito, o homem viu que a mulher arrebatou a lanterna de sua mão, arremessando-a violentamente no assoalho. Pisoteou, sem olhar para o chão, até a luz morrer. Os faróis de um carro que vinha em sentido contrário extraíram dos olhos da mulher faíscas ígneas, porque agora eram róseos. O homem pôde ver que os seus cabelos, antes louros e escorridos, estavam tingidos de mechas escarlates, como línguas de fogo que subiam pelos volteios há pouco inexistentes. E sua face alongara, exibindo uma pele rubra, fincada de rosáceas e estrias incandescentes.
- Você ainda quer me ver? Você ainda quer me olhar? – indagou a mulher de branco, com uma voz envelhecida. Agora seus olhos eram duas bolas de fogo, duas brasas medonhas que lançavam reflexos púrpura nos caninos delgados, subitamente crescidos.
O homem escapou. Correu como um alucinado pelo leito da estrada, sem olhar para trás. Atrás dele, o carro começou a se movimentar. Primeiro lentamente. Depois ganhou velocidade, vindo em seu encalço. O homem de terno cinza tentou embrenha-se na vegetação lateral, mas era tarde. Foi colhido pela “lata velha” e projetado para fora da estrada. Tudo escureceu, mas o homem ainda assim sentiu que alguma coisa sugava os seus fluidos a partir do pulso direito, onde o relógio não estava.
Naquela mesma noite, o carro do homem cinza estacionou em um posto de gasolina, para abastecer. Dele saltou um jovem homem que respirava o alívio da liberdade, mas que os circunstantes jamais o esqueceriam, porque seu olhar era de uma ferocidade desumana. E a cor dos olhos parecia cambiar.
Algo permaneceu desfalecido no acostamento de uma rodovia, mas a dor insuportável, que vinha de dentro, e que era a mesma que se sente quando se é queimado vivo, já aflorava na epiderme. Somente quando recobrou a consciência, algo percebeu – com os sentidos entorpecidos pela aflição que aquela dor terrível produzia – que seus cabelos agora eram lisos, que brancas eram as suas vestes e que a suas mãos agora tinham um talhe feminino. E intuiu que em seus lábios, que ardiam como se tocados por ferro em brasa, havia uma necessidade urgente de sangue e de liberdade.
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