O ENTEADO

O ENTEADO

Autor: Ronygley Carvalho Fonseca

enteado

MANICÔMIO JUDICIÁRIO ESTADUAL

Eu não tenho muita coisa a dizer, acho que perdi a noção do tempo.

Gostaria de saber por que estou preso nesta cela e amarrado a uma camisa-de-força? “Eu não estou louco!”

As poucas coisas de que me lembro, depois dos assassinatos, são uma intensa multidão em nossa residência e um choro pavoroso, latejando no fundo do meu cérebro.

“Eu os matei”, mas como era possível que eu ainda os escutasse?

O choro ia ficando cada vez mais alto! Mais alto! - Mas o surpreendente é que só eu o escutava, o restante das pessoas presentes não ouviam. Era um choro tão pavoroso e alto que eu tremia e suava frio.

Por um instante, senti uma tontura, de repente tudo escureceu e não vi mais nada.

Foi numa bela manhã, um dia normal, como outro qualquer, minha esposa precisou sair e deixou o filho dela, meu enteado, aos meus cuidados.

Eu aproveitei o momento propício e o matei; como ela descobriu, não me deixou alternativa também.

De volta onde tudo começou

Casei muito cedo e nunca escondi da minha esposa o desejo de ser pai e o meu evidente amor por crianças. Todas as vezes que passávamos por uma creche ou parque de diversões; detinha-me pelo caminho e ficava olhando as crianças brincando, pulando, correndo e esbanjando energia.

Aos que um dia tiveram o privilégio de ter filhos, com certeza, sabem do que eu estou falando. O prazer de pegar um bebê tão pequeno e inocente no colo; da mãe o amamentando e cuidando dele com todo carinho.

Mas, com todo esse amor e ternura em nossos corações; minha esposa e eu, por mais que tentássemos, não conseguíamos ter filhos.

Chegamos até a pensar em procurar um médico especialista, mas ambos nos abstínhamos, com medo de descobrir que um dos dois fosse estéril.

Minha esposa chegou a sugerir que adotássemos uma criança, mas eu me opus, preferia ter um filho biológico; sangue do meu sangue. Este fato muitas vezes era pivô de desentendimentos entre minha esposa e eu.

Mas o pior ainda estava por vir; nunca na minha vida, eu pensei que ficaria viúvo tão jovem e tão cedo.

Logo que a pobre infeliz descobriu que tinha um tumor no colo do útero - motivo pelo qual ela não podia ter filhos – os anjos a levaram para longe de mim. Oh, senhor!- E u me lembro como se fosse hoje, que golpe!

Depois disso, entrei em profunda depressão. Mergulhava de súbito em excessos, afogando na bebida e na maconha a miséria do meu espírito. “Não que eu fosse um fraco, mas aquilo me ajudava a esquecer”.

E, assim fiquei durante dois longos anos, até conhecer meu novo amor. Ela era simplesmente linda, divina e me ajudou a sair do fundo do poço.

Tínhamos algo em comum, ambos éramos viúvos, ressalvado um único item: - Diferente de mim, que não tinha filhos, ela tinha um pequeno guri de seis anos, o Juca. Eu gostava muito dela e não era o simples fato de ter um filho que impediria o nosso relacionamento, pois, como já falei, eu adorava crianças.

Casamo-nos e passamos a viver juntos; minha atual esposa, meu enteado e eu.

No começo, até que nos dávamos bem, mas o tempo foi passando e certas atitudes daquele menino me desgostavam, me aborreciam. Acho que aquele velho ditado que diz: “Pai é quem cria, não é quem faz”, não fazia parte da minha política. E, sem dúvida, o garoto também percebia a aversão que eu sentia por ele.

Eu não dava motivos para o Juca me odiar. Eu o tratava bem, amava a sua mãe, mas parecia que esses ímpetos de carinho o desgostavam.

Porém, a cada dia, o mal consumia o quê de bom restava em mim.

Como era irritante ver aquele moleque chupando o polegar direito, com o nariz escorrendo ou bagunçando e gritando pela casa.

Eu chamava a atenção da minha mulher sobre a indisciplina do garoto, mas, ela sempre me contestava, dizendo que aquilo era coisa de criança.

O Juca era simplesmente detestável, acho que a idéia de outro homem ocupar o lugar do seu pai não o agradava.

Sempre que eu me aproximava da mãe dele, o maldito fedelho metia-se no meio de nós e roubava toda a atenção para si.

Isso sem falar à noite, quando ele chegava chorando em nosso quarto. Assustado com pesadelos, ou com medo do escuro.

O fato é que ele sempre atrapalhava o nosso relacionamento amoroso. E, o que mais me irritava, minha esposa sempre cedia aos caprichos do moleque.

Isso me martirizava; dividir o amor e a atenção da minha esposa com tão detestável fedelho.

Parecia que ele tinha como foco principal provocar intrigas entre nós. Bastava dizer um simples comentário ou qualquer ato sobre o moleque e sempre sua mãe e eu discutíamos.

Um dia, eu me encontrava no escritório da nossa casa, contabilizando as contas e o orçamento doméstico. O moleque entrou correndo no escritório, brincando com uma bolinha de tênis, bateu na mesa e derrubou tinta sobre os papéis.

Aquilo me exasperou de tal forma, a ponto de eu perder a cabeça; senti a alma fugir do próprio corpo de tanto medo da minha ira. Tirei o cinto da minha calça, agarrei o fedelho pelos cabelos da nuca e comecei a bater violentamente nele.

Ele gritava, esperneava e, quando iria conseguir escapar da minha violência, pisei com veemência na cabeça dele e bati, bati, bati...

Nesse dia, só não o matei de tanto bater porque felizmente minha esposa apareceu e impediu tamanha desgraça.

Por um certo tempo, o garoto ficou com hematomas por todo o corpo e evitava a minha presença; mas aos poucos foi se recuperando das seqüelas.

Por um instante, cheguei a pensar que depois desse corretivo, ele tomaria jeito, confesso que bateu até um certo remorso, mas eu me enganei. A paz em nossa casa durou muito pouco tempo. As relações entre padrasto e enteado eram as piores possíveis.

Juca era uma criança indisciplinada, mimada, teimosa e jamais me obedecia. Nunca deixava passar uma única chance que tinha de me provocar ou me irritar.

A situação chegou a ponto de eu premeditar da maneira mais terrível de como me livrar de tão insuportável fedelho.

Foi numa bela manhã, um dia normal, como outro qualquer, minha esposa precisou sair e deixou o filho dela, meu enteado, aos meus cuidados.

O garoto foi brincar no quintal dos fundos e eu fui para o escritório colocar o trabalho atrasado em dia. Mas não conseguia me concentrar de maneira alguma no trabalho. “Este é o momento propício”, pensava eu.

Quando me propunha ir até onde o garoto estava e matá-lo de uma vez, a razão vinha em meu auxílio e eu hesitava. Pensava na minha esposa, no que eu diria a ela; em como matar o Juca e esconder o corpo, enfim, mil coisas passavam na minha cabeça.

Abri uma garrafa de Borgonha, tomei-o, acendi um cigarro de maconha, traguei-o, tudo com a intenção de relaxar e esquecer o suplício sobre a inocente criança. Mas as drogas despertaram meus impulsos primitivos mais sombrios e cruéis, já não sabia mais o que estava fazendo, o júbilo em meu corpo era forte demais para contê-lo.

Fui até o quintal dos fundos onde Juca se encontrava. Ao chegar lá, a pobre criança brincava inocentemente com suas bolinhas-de-gude perto do poço e sem saber que a morte o espreitava.

Ele ficou calmo até o momento que não me viu, pois, logo que percebeu minha presença, ficou paralisado como um sapo diante da serpente. Eu o olhava fixamente, e ele, indefeso, começou a tremer, a chorar e a soluçar.

Tirei o cinto da calça, aproximei-me, enrolei o cinto no pescoço da pobre criança e enforquei-o a sangue frio com todas as minhas forças.

Pronto, realizado o assassínio, eu agora estava em paz e livre daquela peste.

Eu precisava agora me livrar do corpo, antes da minha esposa voltar. Pensei em esquartejar o pequeno corpo e enterrá-lo ali mesmo no quintal, mas, como faria para remover as manchas de sangue da terra sem deixar pistas?

Achei mais prático atirá-lo no poço. Sim, aquele poço tinha aproximadamente vinte ou trinta metros de profundidade. “O último lugar em que se lembrariam de procurar o garoto era no fundo daquele poço”, - assim pensei.

E assim o fiz, arranjei um saco, enchi-o com alguns tijolos e pedras que estavam no quintal; amarrei o saco com uma corda enrolada ao pescoço do pequeno cadáver e o lancei no poço. Ao atingir a superfície, o peso afundou com corpo. “Pronto, um crime perfeito”.

Eu não tinha nada a temer; enquanto a minha esposa, ah!- eu diria simplesmente que o garoto sumiu de casa. Voltei alegre e satisfeito ao escritório.

Comecei a organizar os papéis em cima da mesa e a fazer as anotações. Quando, de repente, comecei a ouvir um choro a longa distância. ”Será que estou ouvindo coisas?”- perguntei comigo mesmo.

Mas não era um choro comum; arrepiava-me esse choro, era um choro inumano, sobrenatural e parecia que vinha do poço. E o choro ia ficando cada vez mais alto!Mais alto!Mais alto!

Uma voz de criança assustada e com soluços começou a gritar:

- Mamãe... mamãe...mamãe!

Impossível!- Pensei eu, será que o moleque ainda estava vivo quando o joguei no poço?

- Não, “eu não posso acreditar”, foi um crime perfeito, eu não cometeria este erro.

Nesse momento, a minha esposa chega me encontra totalmente apavorado, entorpecido e fora de mim.

- Algum problema querido? Onde está o Juquinha?- ela perguntou.

-Como assim, você não está ouvindo?

- Ouvindo o quê querido?- Disse, já assustada!

- O Juca gritando lá no quintal!

- Não! - Ela respondeu.

- Não... não, isto não é possível!- vamos até o quintal!

E saímos correndo até o quintal onde eu matei o Juca. Ao chegarmos, eu disse:

- Está ouvindo-o chorando agora, amor?

- Não. - Ela respondeu.

E nesse momento, os gritos, choros e soluços iam ficando mais altos! Mais altos! Mais altos!

- Não, você está de brincadeira comigo, amor! Não é possível que você não ouça este escândalo todo.

Fui correndo até a casa e voltei com uma lamparina. Peguei na mão da minha esposa, conduzi-a até a beira do poço e lancei alguns raios de luz até o fundo do poço.

Foi o suficiente para ver o corpo de Juca boiando no fundo do poço com a corda amarrada ao pescoço.

- Viu, amor, o Juca está morto, não pode ser ele que está gritando lá embaixo. Eu o matei.

O pânico tomou conta da minha mulher e ela começou a gritar freneticamente chamando o nome do filho.

- Juca! Juca! Juca!

E a voz, lá do fundo do poço, respondia:

- Mamãe... mamãe... mamãe!

-Acalme-se! - Gritei eu, a apanhando o machado que se encontrava escorado no poço e desferindo um golpe certeiro no pescoço dela, que separou a cabeça do corpo, lançando-a para longe.

Nesse momento, intensa multidão invadiu a casa e correu até o quintal dos fundos. E ficaram ali, paralisados pelo terror à minha frente.

Embora eu tivesse certeza de que meu enteado e esposa estavam mortos, aquele choro na minha cabeça não parava.

Era só eu que ouvia, e o choro ia ficando cada vez mais alto! Mais alto!mais alto!

Por um momento, senti meu corpo desfalecer e, tudo ao meu redor escureceu.

DE VOLTA AO MANICÔMIO JUDICIÁRIO ESTADUAL

Bem, acho que se eu estivesse louco, não teria tino suficiente para narrar esses fatos para vocês. Eu só lamento pela minha esposa, não era minha intensão matá-la. A minha bronca era com o meu enteado.

Nossa, aquele choro me gelava até a medula dos ossos; fazia todas as células do meu corpo tremerem, e, me dá calafrios só de pensar.

Talvez tenha sido produto da minha imaginação, ou talvez, consciência pesada, pois, tenho certeza absoluta que não estou louco.

Creio que a voz, que somente eu podia ouvir, era alguma alucinação provocada pelos efeitos entorpecentes da Borgonha e da maconha, pois consumira estes elementos em grande quantidade antes do crime.

E o barulho, repito, só eu conseguia ouvir. A minha esposa e os outros presentes no local não escutaram nada.

E, agora, dissipado o meu estado de torpor, não ouço mais nada, estou completamente lúcido e curado.

“Mamãe... mamãe... mamãe”!

- Não, não é possível! – estou ouvindo!

- Aquele mesmo choro, mesmo soluço e o mesmo chamado!

“Mamãe... mamãe... mamãe”!

- Estão ouvindo?!- É ele!

- Não... não... não, por favor tirem-me daqui, eu imploro!

- Socorro... deixe-me em paz, não... não... nããããão!!!

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