LIEBESTRAUM
Autor: Paulo Soriano
Para Cláudio Soriano
A mente humana é, sem dúvida, uma das mais notáveis criações da natureza. Tal notabilidade, contudo, não impede que o processo genético das sensações, emoções e pensamentos possa, eventualmente, transformar-se numa fonte inesgotável de horrores indizíveis, poço infindo de sofrimentos inimagináveis.
A esta conclusão cheguei após reler – e agora ele está pousado à minha frente, carcomido pelo tempo, tingido pelo sangue de longas datas coagulado – o breve relato de Venturoso. Permita Deus, em sua infinita bondade, que os sofrimentos enfrentados pelo meu amigo não hajam sido tão intensos quanto o que ele alega haver experimentado; e que, neste exato momento, possa gozar do alívio que não logrou desfrutar ao longo de sua breve – porém terrível – existência.
Eis o que, sem delongas, diz o relato do infeliz Venturoso. E que o bom Deus tenha piedade de sua alma:
“Prezado Macárius:
Escrevo-lhe, nesta hora derradeira, porque você é o único ser existente – fora Deus e os demônios – que conhece os horrores causados pela minha excêntrica enfermidade.
O meu mal – para cuja natureza os tratados mais recentes, ou mesmo os alfarrábios cabalísticos de remota antigüidade, não me logram explicações – acompanha-me, como você bem sabe, desde a minha mais tenra infância.
Sabe você que sempre fui propenso a problemas oníricos, e as agonias infindas das noites de esmorecimento e torpor são a exclusiva causa da apatia e da languidez que tão profundamente martirizam meus estados de vigília.
Com o passar dos anos, a predisposição aos surtos catalépticos – nos quais meu corpo inerte aprisionava, como uma mordaça inexorável, pesadelos brumosos e espessos – evoluiu e acentuou-se, tanto na constância quanto na intensidade, a tal ponto que até hoje me abate e me assusta a simples menção da palavra noite. E tenho lutado, com todas as forças – se é que elas existem –, sem razoável sucesso, contra o simples fato de dormir. Dormir! Esse bálsamo! Mas para mim algo que não sei chamar senão pavor.
Ontem, porém, após cinco – e não dois nem três, tenha em mente – bem-vindos dias de ininterrupta e fatigante vigília, porque extremamente necessária, mergulhei, novamente, como um náufrago desesperado, nas trevas abissais, povoadas por tenebrosos e implacáveis pesadelos.
Estava eu reclinado em minha poltrona de vime, a ler um enfadonho tratado de um obscurecido filósofo francês, quando, de súbito, vi que esta triste consciência era arrastada, impiedosamente, aos sulfurosos estados letárgicos, que tão debilmente limitam o sono da vigília. Tenho, nessa zona de percepção indefinida, ainda que fechados os olhos, a faculdade de enxergar, com cristalina nitidez, o mundo extático que circunlimita as minhas pálpebras pesadas, agora inúteis, porque, como lhe disse, posso perfeitamente devassar o intransponível. Demais, posso escutar as vozes marinhas que flutuam ao sabor do vento Norte, malgrado o assediante e monótono zumbido grave, cheio, pesado, que me irrompe, líquido, a cavidade de cada um dos ouvidos. E a esse estado letárgico, a princípio agradável, mas depois preocupante, segue-se uma sensação de solidão e abandono, de prisão em si mesmo, que parece não possuir duração, de tão longo que é o seu espraiar, e tão intenso que é o seu poder. Vem, então, uma violência súbita na alma, quase física; segue-se, daí, um frêmito, que antecipa o esperado e invencível torpor, em que os meus músculos enrijecem, e cada fibra retesada do meu corpo é varrida por gélidos calafrios, em ondas perenes, de variada intensidade.
Neste estado de profunda morbidez – que me arrasta ao pânico incontrolável, em que minha consciência parece cair, cair e cair num fosso escuro e infindo –, todo esforço concentrado no ato de acordar é inútil. Não há força interior, não há esforço supremo, grandioso que seja, que faça a alma ressurgir do abismo, devolvendo-me ao súbito alívio da vigília. Ao invés, o torpor amplia-se em cada uma das direções multidimensionais de minha consciência, e expande-se, e infla-se, com eólica velocidade, até preenchê-la do mais negro e profundo horror. E meu corpo, inerte, rígido como de cadáver, tudo aceita: estou rendido, pronto para morrer. Aqui morro eu...
É aqui que ressurgem, sedentos de alma, os pesadelos vampirosos.
Caindo sobre as lápides limosas.
Respiro, devagar, o ar brumoso, repleto de trevas ululantes. O vento traz o seco aroma de velhas sepulturas. Há uma Lua no céu e a luz cálida refulge, como acalanto, nas garras frias, revolvidas, que encimam as árvores velhas e esguias. As cruzes, porém, recuam nas trevas, mas é para elas que eu dirijo os meus passos entorpecidos.
Meu cérebro – minha alma? – está completamente vazio. Sou um algo impelido pelos ventos, e sussurram-me aos ouvidos outros ventos, em acordes dissonantes, dissidentes, o nome de minha loucura (Catarina?).
E lá está a lápide para onde os ventos – todos os ventos – me empurram:
“AQUI JAZ
CATARINA PATERNOSTRO
NASCIDA EM 28-II-1727
FALECIDA EM 28-II-1742
“QUE DEUS TENHA PIEDADE DE SUA POBRE ALMA,
POSTO QUE SUA CARNE DESONROU O PRÓPRIO NOME”
Ponho-me a escavar, febrilmente, o solo empedernido, cheio de desonra e aridez, até fluir o sangue, respingando pelas tiras em que se vertiam as pontas dos meus dedos.
A Lua lúgubre vagueia, louca, no céu, mas não emite um fiasco do mais miúdo lume. Um frêmito revolve o meu coração. Mas meu coração está oco. A palpitação não vem do meu coração. Vem do âmago do ataúde. Algo nele pulsa, se move, se contorce, se debate numa agonia alucinada. Por isso trabalho rapidamente, rapidamente, rapidamente...
E, no momento em que a madeira podre do ataúde dissolveu-se ao mínimo contato com os vapores da noite, a Lua emitiu um brilho ensandecido. E vi as órbitas, devassadas pelos vermes, que um dia engastaram, como uma esmeralda no anel, os olhos vívidos da bela Catarina. E, extasiado, atônito de paixão, acolhi em minha boca a língua túrgida e negra que me estendia o cadáver de Catarina, cuja carne desonrara o próprio nome.
E, sob a sombra da lápide, repeti o gesto de desonra, nas frias carnes que um dia compunham, incorrupta, a bela Catarina ...”
Visitei, hoje, o túmulo do meu amigo Venturoso.
O que a vida recusa-se a fundir, bem o fazem as sombras.
É que a lápide, também manchada de desonra, onde repousa Venturoso, ergue-se ao lado do sepulcro de sua amada Catarina, ambos à sombra de uma revelha nogueira.
Há exatos cinqüenta anos, não mais, ambos foram sepultados. E eu também. Doloroso sepultamento é este, a quem chamam vida. Minha carne é um sepulcro e os meus ossos são a minha alma.
Mas eu era jovem, há cinqüenta anos, não mais. Numa visita matinal, corriqueira, não encontrei Venturoso, a queixar-se de sua aborrecida insônia.
Em a sua escrivaninha, apenas uma carta, a mesma carta sobre a qual agora me debruço. Em sua loucura, retornara a casa, deixara-me uma confissão sombria, escrita às pressas e, simplesmente, desaparecera, ao encontro do Sol que debilmente espraiava uma expectativa de amanhecer.
Para muito além dos umbrais encimados por piedosos serafins, e alhures das cruzes vicejantes, mas no sítio desolado onde se enterram os desonrados e os suicidas, vi um cadáver de mulher, insepulto. E vislumbrei, também, o corpo de meu amigo, a oscilar suavemente, contido pelo nó da corda ao pescoço, sob um galho da nogueira, árvore ancestral, e tão descarnada quanto as extremidades violáceas dos dedos de Venturoso, apinhadas de sangue e lascas de madeira.
Mas o meu amigo sequer esfriara. Havia ainda um suor viçoso, que exsudava de sua fronte.
O que a vida separa, muito bem as trevas unem.
Dir-se-ia que em seus olhos mortos, terrivelmente abertos, ainda perpassavam – e eu podia lê-los – alguns sonhos.
E alguns pesadelos, talvez.
Dir-se-ia.
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