AVONDROOD
AVONDROOD*
Autor: Paulo Soriano
Para Henry Evaristo e Rogério Silvério de Farias,
os fundadores do delirantismo.
“O avondrood
vlammengloed
O bloedbad
in het westen…”
Jules Deelder
Mijnherr** Akkerman fora, sem dúvida, uma das pessoas mais singulares em quem já pus os olhos. Do alto de seus bem mais de dois metros de altura, uma cabeleira ruça e agreste, escassa nas têmporas, descia até os ombros em ásperas ondulações, insensíveis aos ventos fortes que esvaiam dos pulmões encharcados do Rio Amster. Mas, ao contrário do que seu nome parecia supor, o alegre Akkerman não gostava dos campos***. Era um homem extremamente urbano e nutria uma especial paixão pelo burburinho que a cidade transpirava, e era muito fácil encontrá-lo, mesmo nas tardes mais friorentas do inverno, a passar, a pé, pelas margens dos canais concêntricos de Amsterdam. Freqüentemente, nós o víamos, impecavelmente trajado, a desfilar, solenemente, à frente dos casarões esguios, que se debruçavam avidamente, como Narciso, sobre as águas lustrosas dos canais. Ele deslizava sobre as pontes com passos intrépidos e majestosos, semi-oculto pelo farfalhar da capa negra e sem vincos, aqui e ali parando para cumprimentar uma senhorita e, acolá, detendo-se demoradamente para melhor apreciar o movimento intenso da praça e das tabernas. Foi numa dessas tardes, que já chegava ao fim – lembro-me bem –, que Mijnheer Akkerman, um católico fervoroso, confidenciou-me que nutria por mim uma admiração sincera, apesar de ser eu um judeu convicto e muito mais jovem do que ele.
- Ora – disse-me ele, sorrindo de satisfação –, aos judeus pode-se confiar um segredo que aos luteranos e calvinistas jamais poderíamos, sequer, pensar em partilhar. Creia-me, meu jovem Mendes da Costa, os protestantes não são nem um pouco confiáveis, especialmente quando se fala de negócios.
Lembro-me que, certa feita, convidei Mijnherr Akkerman para uma visita à sinagoga dos judeus portugueses – a snoge –, há pouco inaugurada. O homem alto, de cabelos ruços, me lançou um olhar desolado, como se a me pedir desculpas. Mas, depois de um longo silêncio, tomou-me pelo braço e me conduziu ao Oude Zeeman****, onde – disse-me ele – poderíamos conversar tranqüilamente, entre um e outro trago generoso de aguardente de uva, o mesmo que, no Porto, se entornava ao vinho tinto, para lhe dar o sabor especial.
- Eu era jovem. Baruch ainda não havia sido expulso do meio dos marranos*****. E Van der Ende – e aqui não vai nenhum trocadilho****** – ainda não havia encontrado seu triste fim na peleja contra os franceses. Estávamos eu e Baruch à porta da antiga sinagoga sefardita******* quando, de repente, um homem velho, talvez o homem mais velho que já conheci, dirigiu-se ao meu companheiro e, como se estivesse no alto do monte Sinai, caiu numa espécie de transe, e se pôs a profetizar. Disse o velho homem que Baruch Espinosa seria uma pústula para a sociedade judia de todo mundo e para todo o sempre. Sim, em alto e bom som, falou que aquele jovem talentoso espalharia a dúvida e o temor, abalando os alicerces do judaísmo. Que, cego em sua inclinação aterradora e herética, conspiraria contra a fé dos antigos profetas. Que seria excomungado e proscrito. Que as suas tenebrosas doutrinas ganhariam o mundo e os séculos, aliciando gente de todas as religiões. Mas que, em contrapartida, atrairia a repulsa de todos os povos e crenças. E, sobretudo, a repulsa do Criador. Depois o velho homem, cujas barbas brancas rivalizavam com as de Moisés, e cujos chifres deveriam ser imensamente maiores, continuou em seu desvario, desta feita dirigindo-se a mim. Disse-me belas coisas, que se concretizaram realmente. Sim! Hoje eu sou um homem de pequena e honesta fortuna e, além disso, um homem extremamente feliz! Mas me deu um conselho: disse-me, quase a repreender-me, que me acautelasse contra os sefardidas, porque eu estaria fadado a padecer pelas mãos de um dos filhos de Davi!
- Amigo – respondi -, entendo perfeitamente os seus traumas. Eu, de minha feita, também já os tive. Após um assalto bem sucedido a Goa, estivemos no Ceilão, onde a Companhia mantinha uma pequena base naval, cuja função consistia em reabastecer e reparar os navios após as campanhas e investidas militares, muitas vezes bem sucedidas. Nesta ocasião, e sob o influxo do vinho furtado aos portugueses, deixei-me seduzir pelos amigos, todos jovens e impudicos marinheiros, que me levaram a um templo nefasto, que lhes prometia loucas orgias. Lá, após ingerir várias poções de chás e infusões de efeitos narcóticos, tive uma visão aterradora, à luz inebriante de um Sol que se decompunha no horizonte. Vi que as faces de um velho sacerdote, devotado a um deus profano – que antes me pareceu um demônio, e cujo nome não ouso pronunciar –, assumiram o aspecto repulsivo da divindade cultuada. Era um ser terrível, de altura supra-humana, dotado de cabelos ruços e olhos de escarlates, e que fazia manar, de suas narinas dilatadas, uma névoa escura como o fumo! Em minha embriaguez, supus que o demônio atirar-se-ia à minha garganta, nela cravando as suas garras lívidas e abjetas! Fugi daquele antro como um alucinado.
E, enquanto fugia, uma voz nebulosa ecoava, num reverberar metálico e estridente, nas paredes de meu crânio, formulando malditas sentenças numa língua estranha e aterradora, que eu nunca havia ouvido, mas que entendia perfeitamente, dizendo-me que eu não estava perdido, porque o demônio – era ele quem me falava – seria a origem de toda desgraça, porque ele voltaria para mim, com suas garras medonhas. Creia, amigo: aqui também vislumbro uma amarga profecia.
E, ao recuperar de todo a razão, jurei ao Deus de Jacó que jamais, em tempo algum, poria o pé em templo outro que não fosse a Ele dedicado. Mesmo assim, até hoje, não há um dia em que, em meus sonhos, aquela imagem não se imiscua, provocando-me desvairados calafrios de horror!
Mijnherr Akkerman assentiu. E brindamos, felizes, às nossas saúdes e ao sucesso de nossas religiões. E juramos solenemente, um ao outro, que jamais falaríamos de loucas profecias. Lá fora, um céu soturno, que sangrava os estertores do Sol embriagado, esperava-nos com o seu manto alucinógeno.
Após aquela peculiar entrevista, que se deu no anoitecer tristonho de inverno, não mais reencontrei na praça o velho Thijs Akkerman. É que, pouco depois, caí seriamente doente. Na pequena mansarda onde vivia, alugada a uma viúva de poucos recursos, eu não podia ver a praça. Havia apenas a visão daquela rua estreita e desolada, que o inverno atirava às sombras deprimentes, e pela qual quase ninguém ousava transitar; e, além dela, esforçava-se um vislumbre enevoado – que a febre fazia oscilar e tremer – dos escuros casarões, cujas réstias espraiavam a melancolia mais desesperadora, para alcançar o meu espírito com o peso de um sudário tumular. Eu estava muito mal. Pouquíssimos amigos me visitavam. E, não fossem os cuidados mercenários de minha senhoria – afinal, apenas gente viva pode pagar alugueres –, eu não estaria hoje vivo.
Avondrood! Sim, o Sol se punha. Massacre no poente. Fulgor vermelho que antecipa a noite e os seus horrores. E eu delirava de febre e de frio! Ergui-me e olhei pela janela. Uma sombra indistinta se aproximava de nossa vivenda. Vi que a chama do Sol agonizante refletia nos cabelos ruços daquela enorme silhueta – uma silhueta monstruosa – cujas ventas exalavam uma névoa baça e retinta. Mergulhei-me na cama e me cobri, mantendo os olhos abertos por baixo dos lençóis pesados de suor. Eu ardia e suava abundantemente. Tremia ao impacto da febre e logo entraria em convulsão. Mesmo assim, segurei com firmeza o punhal que havia escondido sob o travesseiro de penas de ganso. E esperei. Eu sabia que a coisa do oriente, aquela coisa que invadia os meus mais terríveis pesadelos, que acompanhava as minhas noites como um estigma recorrente e pontual, ganharia um dia corpórea consistência e viria mergulhar as unhas lívidas em meu pescoço!
Então, numa resolução que me valeu um esforço desalmado, puxei dos olhos as cobertas para que, num vislumbre da detestável figura, a minha alma se diluísse em espasmos vigorosos. É verdade! Todo meu ser tremeu, num abalo incontrolável. Como era horrenda aquela visão, aquela sombra emoldurada pelos umbrais, hirta, corroída pela luz rubra que o anoitecer infiltrava pela janela!
A coisa avançou para mim.
Então, presa de um medo incontrolável, pus-me de pé e, sem sequer examinar a luninescência vaporosa, rubra como o Sol moribundo, que – eu sabia – se projetava da abertura dos olhos daquela coisa hedionda, cravei a adaga bem fundo, no lugar onde pensei que estaria o coração. Depois, no vórtice do delírio, desmaiei e caí pesadamente sobre o meu opressor. Assim aconteceu. Fui ao chão juntamente com Mijnherr Akkerman, cujos estertores – creio eu – eram ritmados pela lembrança de uma profecia inexorável. E que agora, por conduto de minhas mãos delirantes, finalmente se cumpria.
Notas do autor:
* Não há palavra ou expressão exata, na língua portuguesa, apta a traduzir, perfeitamente, o temo holandês que intitula este conto. Costuma-se traduzir essa palavra por “pôr do Sol”, mas, no holandês, o termo “avondrood” quer significar o fulgor, a vermelhidão incandescente que o céu apresenta naquele momento de indefinição entre a noite e o dia. Arriscamo-nos, assim, traduzi-lo por “crepúsculo rubro” ou, mais precisamente, por “fulgor do crepúsculo”.
** Senhor, em holandês.
*** Akkerman significa, literalmente, “homem do campo”.
**** Velho Marinheiro, em holandês.
***** Termo pejorativo para designar os judeus, especialmente os de origem hispano-portuguesa. Na língua portuguesa, marrano significa, também, porco já crescido.
****** No holandês, Van den Ende significa “do fim”. Daí a referência ao trocadilho. Van de Ende foi, realmente, amigo do filósofo holandês Baruch de Espinosa (1632-1677) , este último judeu de origem portuguesa.
******* Sefardita: relativo aos judeus da Península Ibérica.
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