SOMBRAS DA NOITE

SOMBRAS DA NOITE

Autor: Alexandre Cthulhu

Clóvis

“Não fites aqueles olhos profundos

Não os fites, e sobreviverás.

Não te rias na cara da morte, ou não vais resistir.

Não morres, até que Satanás te sentencie

E, que o demónio ampute a tua alma,

Com toda a sua ira, ele clamará pelo ceifeiro.

Quando a morte chama – Esta, é a hora de morreres,

Quando a morte chama – O teu espírito pode ser liberto,

Quando a morte chama – Não há amanhã,

Quando a morte chama – Apenas uma sombra maligna.”

Black Sabbath – Quando a morte chama

UM

Lá fora, a chuva desabava nos telhados, e ninguém ousava sair de casa tão cedo.

O murmúrio do vento ecoava na noite, quando Teresa acordou demoradamente. Olhou para o rebento que dormia com cara de anjo na confortável alcofa, ora preparada na véspera para a jornada que se seguia. Pouco depois, a jovem mãe abandonou a casa, esgueirando-se directamente para o táxi, que a esperava mesmo à porta da sua casa, prosseguindo a marcha por entre a neblina e o negrume da noite. A rua estava deserta, e detinha vários candeeiros fundidos, o que lhe abonava um aspecto sombrio e triste.

O transporte deixou-a sensivelmente, a trezentos metros do seu destino, e nesse local, Teresa pediu ao motorista para que a aguardasse uns quinze minutos, pois voltaria nesse instante.

Quando a mulher meteu o pé fora do carro, percebeu que a chuva ainda não cessara, o que a obrigou a correr até ao largo da Igreja, que era o seu destino. Ali, abandonou a alcofa que trazia com ela, e juntamente deixou uma missiva do bolso da sua gabardina encharcada, e encafuou-a, por entre as mantas de lã, que agasalhavam a bebé.

- Ficas bem, ficas com Deus! – Murmurou ela, obtendo como resposta, um sorriso por parte da menina, que era sua filha. Mas Teresa não se deteve, e logo, logo saiu dali a correr. Se se afastou a chorar, só Deus saberá.

Contudo, o sorriso da menina apenas durou alguns minutos, pois começou a ficar com frio, e assustada, dispôs-se logo a choramingar.

O pranto acordou vários moradores, que aconchegados nos seus roupões, se acercaram das janelas das suas casas, apercebendo-se que se tratava de um bebé ali abandonado.

Sob a arcada da abadia, uma imagem de Jesus, parecia orar pela criança desprotegida.

Bastaram alguns minutos para se criar algum rebuliço em volta da criança, que, acomodada na sua alcofa, fitava todos os aldeões, que dela se abeiraram para a ver.

- Esperem!... – Acudiu uma mulher gorda – Deixaram um envelope aqui, no meio dos cobertores.

- Está endereçado a quem?... – Indagou um homem idoso, que fumava cachimbo.

-

Ao Padre da paróquia... o padre António! – Redarguiu a mulher gorda, que já se preparava para abrir o subscrito, detendo-se quando ouviu uma voz familiar.

- Que clamor é este aqui, à porta da casa do Senhor? – Uma voz grave e autoritária rompera pelo meio do alvoroço. – O que se passa aqui?

- Oh, senhor Padre... – Balbuciou a mulher, que detinha a alcofa nos braços – veja esta pobre criança, foi abandonada aqui, ao frio...

- Deixe ver a criança! – Bradou o clérigo, que segurando a criança pelo colo, penetrou pela igreja adentro, trancando a porta de seguida, não permitindo que mais ninguém entrasse. Junto ao altar, pegou-lhe ao colo e olhou-a demoradamente, ao que a bebé respondeu apenas com o seu olhar inocente.

-Tens uns olhos azuis lindos!... Mas, misteriosos. – Concluiu. – Deixa cá ver, qual foi a desculpa que deram, para te abandonar ali ao frio... – murmurou o padre António, cortando meigamente o envelope.

“ Querido Padre,

Deixo ao cuidado da Igreja, a vida e educação deste meu rebento.

Que Deus me perdoe, pois pecado maior do que este que cometo, não existe, não senhor! Mas rogo que compreenda. Fui violada por um desconhecido. O médico não me permitiu o desmanche, e eu não tenho meio de criar esta inocente criança.

Assim, deixo-a com Deus, para que a proteja, porque eu rezarei por ela todas as noites.

Teresa”

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Na manhã seguinte, a menina fora vista pelo médico da Aldeia, que não lhe diagnosticou nada de anormal e, enquanto não chegavam os elementos dos serviços sociais para o cumprimento das formalidades legais, a menina, a quem já tinham “baptizado” de Virgínia, ficou ao cuidado de duas freiras, que não se cansavam de a mimar.

Aquela era a ultima noite que Virgínia passava em casa das irmãs, antes de ser levada para destino incerto (pois os serviços sociais, é que decidiam).

As irmãs, Lúcia e Fátima, estavam à janela do quarto com a criança, quando inesperadamente, esta se lançou num choro apavorante, que as deixou muito embaraçadas, sem saber o que fazer, pois em três dias, nunca tinham visto a pequenita naquele estado. Chorava sem parar, esperneava com uma força descomunal, e nem sequer permitia que lhe pegassem mais ao colo.

Em desespero, Fátima decidiu chamar o padre António, para que este decidisse, o que se havia de fazer. E lá foi Fátima, a correr até à Igreja, onde teimosamente ficava o aposento do Padre.

Não posso precisar quanto tempo passou, mas julgo que o relógio da torre tinha acabado de dar as dez badaladas, quando a voz da Irmã Fátima ecoou tenebrosamente pelas paredes da Igreja.

-Oh, Meu Deus!...Oh, Senhor Jesus Cristo...

Paulatinamente, as janelas das casas começaram a piscar como vaga-lumes, e as persianas a abrirem-se, fruto da curiosidade das pessoas, que logo acorreram às varandas para saber o que justificava tal pranto, tão pavoroso da irmã.

De joelhos junto ao catre do Padre António, Fátima chorava angustiosamente - O padre estava morto.

DOIS

Foi numa radiosa manhã que Virgínia conheceu, aquele que seria o seu novo lar: um orfanato situado numa aldeia dos arredores de Lisboa. Era uma criança muito bonita. Tinha uns olhos azuis luzidios, e um cabelo ruivo e liso, que adornava um rosto afável e oval. Não costumava divertir-se muito com as outras crianças, pois achava-as muito “infantis”, principalmente quando brincavam às escondidas e tinham por habito esconder-se na dispensa do orfanato, que era muito escura. E Virgínia não suportava o escuro.

Virgínia não era a “predilecta” das educadoras do estabelecimento de caridade, pois a inocente “carregava” com ela, uma história maldita, cuja ignorância das pessoas, levava-as a crer que a pobre criança ficara “possessa”, na noite em que o padre cessara a sua existência terrena.

A verdade é que Virgínia era uma miúda muito diferente das outras, podendo considerar-se, estranha mesmo. E para que não restem suspeitas acerca desta minha afirmação, passo a explicar:

Enquanto as restantes crianças desenhavam casas, pessoas, e paisagens da natureza...Virgínia não desenhava nada. A sua folha de papel era inundada por tinta preta, ao que ela, lugubremente afirmava, serem os seus sonhos durante a noite; enquanto as outras crianças dormiam a sesta, Virgínia negava-se sempre a fazê-lo, e durante o repouso, várias vezes fora encontrada com velas acesas junto ao beliche, o que, numa certa noite, até causou um breve, mas desagradável incêndio.

Não havia explicação para estes desvarios da pequena órfã.

Numa tarde, todas as crianças brincavam no pátio com bolas e arcos, quando inesperadamente, todos pararam a olhar para Virgínia, que ficara paralisada nem uma estátua, com uns olhos gélidos e sem expressão, alvejando a rua em frente, abstraída de tudo o resto. Imprevisivelmente, escutou-se um chiar de pneus, e de seguida um grande estrondo de vidros a partirem-se, tudo com grande violência. Não restavam duvidas, um homem fora mortalmente atropelado, mesmo em frente ao colégio!

Prontamente se gerou uma grande confusão em redor do homem que jazia ali no meio da estrada, mesmo em frente ao orfanato de onde as crianças foram logo recolhidas para dentro. Não tardou para que todas se lançassem a atirar as culpas do acidente à “estranha” Virgínia, que instantes antes, permanecera a olhar fixamente para o pobre homem.

Estranhamente, Virgínia não se lembrava de nada, aliás, ela nem sequer conseguia falar, e logo fora vista por um psicólogo, o doutor Carlos, que não lhe diagnosticou nada de anormal. “Apenas uma ligeira desordem no desenvolvimento cognitivo” escrevinhou ele, no relatório deixado nas mãos da directora do orfanato, que já se mostrava incomodada com aquela criança tão estranha.

A verdade, é que numa aprazível tarde de Maio, Virgínia foi adoptada.

Uma família, da qual eu posso assegurar, que tinha algumas posses, levou-a com eles, e sob um semblante acolhedor, partiram no seu carro moderno e comprido.

Virgínia ficou deslumbrada com dimensão da casa para onde ia viver, e mais aturdida ficou, quando pôde observar o seu quarto, que era maior do que dormitório do orfanato de onde viera. O homem, que se tornara seu pai adoptivo, era um respeitado industrial têxtil, e a sua mãe adoptiva, uma famigerada artesã e pintora de renome. Para perceber a história da adopção de Virgínia, recuemos dez anos atrás, quando o casal partilhava a sua imensa mansão com a sua filha biológica, de nome Isabel, que inexplicavelmente começou a sofrer de uma doença rara, que lhe paralisou todos os membros do corpo, incluindo a parte cerebral, que lhe levou a vida. Desde aí, o casal Aristides e Simone Fonseca não conseguiram enfrentar o vazio que lhes irrompeu pela casa, e lhes avassalou alma. Passado um ano, Simone foi informada pelo seu médico, de que se tornara estéril devido à depressão que sofrera, pela perda de Isabel, e foi então que decidiram adoptar uma criança.

Todavia, o casal perfilhou uma regra para tal decisão. A menina que eles haviam de escolher, teria de se assemelhar à perecida Isabel.

Assim, o casal Fonseca visitou vários lares de adopção, até que descobriu uma menina de cabelos ruivos e olhos azuis luzidios no meio daqueles miúdos órfãos, e assim que se entreolharam, não tiveram dúvidas de que, aquela seria a criança que havia sair da porta com eles.

A família Fonseca vivia num “cottage”, cuja moradia de estilo rústico era composta por dois andares, uma cave e um sótão. No seu frontispício, estendia-se um imponente e viçoso jardim.

TRÊS

No décimo segundo aniversário de Virgínia, Aristides e Simone decidiram convidar alguns amigos e familiares mais próximos para jantar, onde celebrariam o aniversário dela. Um dos casais convidados tinha um filho chamado Victor, que era um pouco alienado e estranho.

Durante o Jantar, ela sentiu um calafrio estranho, trespassar-lhe a espinha e seguidamente sentiu-se indisposta, o que a levou a pedir aos “pais” a sua permissão para sair da mesa, ao que estes aquiesceram. Virgínia subia as escadas que a levavam ao seu quarto, tencionando deitar-se, pois a sua indisposição era profunda. Sentia uma náusea agoniante, e temia já ter sofrido aquela náusea antes, embora não se lembrasse quando.

Virgínia penetrou no seu quarto, e como era hábito, deixou uma luz acesa. Deitou-se na sua cama e fitou as paredes alvas do seu quarto. Subitamente apercebeu-se da presença de alguém no quarto. Era Victor, e fitava-a com um rosto maligno, enquanto caminhava vagarosamente na sua direcção.

- Sabes, Virgíniazinha...Eu sempre gostei de ti. Agora vou papar-te!... – Rosnou Victor, com uma voz rouca e com os olhos desorbitados.

- Não te aproximes Victor, senão... – A boca de Virgínia foi tapada pelas mãos vigorosas de Victor, que a seguir a derrubou para o chão, abafando-lhe o corpo franzino, com o seu, pesado e inchado.

Em sufoco, tentou gritar, mas a mão de Victor era forte demais. Victor derrubou-a contra o soalho do seu quarto e manteve-se em cima dela, tentando violá-la.

A pobre rapariga tentava gritar e lutar, mas sentia que não tinha força suficiente para retira-lo de cima dela. Inesperadamente, os seus olhos testemunharam algo realmente sinistro, a penetrar no quarto. Não sabia o que era, mas era algo profundamente medonho. Uma sombra. Oh, sim! Uma Sombra funesta trespassara o seu aposento e dirigia-se na direcção de Victor. Era a sombra tenebrosa que vira, antes daquele homem morrer, quando atravessava a estrada. Agora prostrava-se no seu quarto e detia-se atrás do corpo Victor, que lhe pesava sobre o seu. Virgínia arrancou todas as forças das profundezas dos seus músculos, e com um safanão brusco, atirou com Victor contra a janela do seu quarto, o que fez com que este trespassasse a janela e caísse lá em baixo.

A sombra seguiu-o, arrancou-lhe a alma com uma ceifada violenta, desaparecendo por entre a bruma.

Seguidamente, a jovem deixou de ver por uns instantes, e quando voltou a abrir os olhos, apercebeu-se que estava rodeada pelas visitas lá de casa, que se demoravam à sua volta. Ouvira um pranto, vindo do andar de baixo. Eram os Pais de Victor, que choravam junto ao seu corpo inerte.

Aristides e Simone fitavam-na com uma dureza crua.

- O que lhe fizeste, Virgínia?... – Interrogou Aristides com o rosto rubro de inquietação.

Virgínia tentou responder e justificar a sua ira, perante a tentativa de violação por parte do seu agressor, mas não conseguia justificar o resto, e por isso preferiu ficar calada.

A família Fonseca viu-se rodeada de sérios problemas, depois do incidente ocorrido naquela noite funesta. Victor era um adolescente problemático. Os pais sabiam que ele era um verdadeiro predador de rapariguinhas, mas minimizavam sempre as situações, escudando-se nos seus problemas clínicos, que eram acompanhados por um prestigiado psiquiatra da cidade. Mas agora estava morto, e a noticia tinha corrido toda a região. E não será preciso ser exaustivo para referir que os negócios dos Fonsecas tinham sido afectados, após o incidente, não fossem os pais de Victor, uns dos seus melhores e mais influentes fornecedores de matéria-prima.

Um ano passou e os Fonsecas estavam a beira da ruína. Uma das suas fábricas de lanifícios abriu falência e a outra para lá caminhava. A casa estava à venda e não se afiguravam melhores dias.

Numa tarde sombria, Virgínia distraía-se numa alegre “chinchada” a uma macieira que se conservava no jardim, quando deu pela presença lúgubre e inesperada de Simone, por trás dela. Tinha um rosto pálido e um sorriso mórbido.

- Bom dia, Virgínia!... – Saudou Simone, com uma voz lúgubre.

- Bom dia, mãe... – Respondeu Virgínia, disfarçando a surpresa.

- Sabes Virgínia!... – Sussurrou Simone, que detinha ambas as mãos escondidas atrás das costas – eu já fui feliz...e agora, não sou. Aliás, eu não sei o que é ser feliz, desde que tu puseste os pés nesta casa...

Simone aproximava-se vagarosamente de Virgínia, ao mesmo tempo que ia murmurando algumas frases estranhas, até que a atacou repentinamente, enlaçando-lhe uma corda em volta do pescoço. Completamente descontrolada, tentou arrastar a garota até junto do tanque, e ali arriscou empurrá-la para baixo.

-Morre, maldita!...morre e leva os teus demónios contigo, miserável – Guinchou estridente, com uma voz rouca.

A miúda segurou-se ao pequeno mural que envolvia o tanque, e conseguiu libertar-se, atacando-a com uma pedra que escondera na sua algibeira, para atirar aos pássaros. Depois de notar que a sua opositora a soltara, Virgínia fugiu, penetrando dentro de casa. Sem perder tempo, colocou várias peças de roupa num mala e evadiu-se da residência, fugindo pelo matagal a fora, orientando-se pela berma da estrada. Sentia-se profundamente exausta, desnorteada e triste.

Ao fim de caminhar alguns quilómetros, e das bolhas começarem a magoar-lhe os pés, Virgínia decidiu acercar-se da estrada para pedir boleia. De polegar esticado para trás, e de trouxa às costas, a miúda arriscou a sua sorte.

A noite já ameaçava cobrir a planície quando um Fiat 127, cor de laranja abrandou a marcha e parou, junto à garota.

- Para onde vais?... – Perguntou um jovem, afectuosamente.

- Para longe daqui!... – Retorquiu Virgínia, com um tom seco.

O rapaz de cabelo muito claro, abriu a porta e com um aceno, convidou Virgínia a entrar.

- És de onde? – Inquiriu ele, engatando a “segunda”.

- Sou daqui perto... – Sussurrou Virgínia, laconicamente.

- Parece que estás triste!...Tiveste algum problema? – Insistiu ele, com um ar preocupado.

Virgínia reparou que o rapaz tinha uns olhos tão claros, como jamais tinha visto numa pessoa. O seu rosto era sincero. Sincero demais, diga-se!

- Como te chamas? – Interrogou ela baixinho.

- Gabriel! – Respondeu ele prontamente!

-Como o anjo! – Afirmou ela, de modo peremptório.

- Sim...como o anjo!...Estás com algum problema, não estás?...podes desabafar comigo, posso, no mínimo, ouvir-te! – Declarou Gabriel, melancolicamente.

- Sabes, há uns tempos, matei uma pessoa! – Redarguiu ela, com um ar pensativo e triste.

-Porquê que o fizeste? – Insistiu.

- Ele atacou-me, e queria fazer-me mal... – Engoliu em seco.

-...E tu, defendeste-te? – Atirou ele, como que adivinhando a resposta.

- Sim...não!...isto é... – Balbuciou Virgínia, meio confusa. As imagens palpitavam-lhe pela memória, e não a deixavam raciocinar.

-Há mais alguma coisa, Virgínia? - Insistiu Gabriel.

Escutou-se um breve silêncio, que só foi suspendido pela voz da garota.

-Eu vi uma sombra! – Foi a lúgubre resposta.

-Uma sombra? – Continuou Gabriel, surpreendido.

- Sim. Uma sombra. Mas não é uma sombra qualquer, Gabriel. É uma sombra, que antecede a morte das pessoas!... – A frase pareceu-lhe estranha, pois nunca tinha dito aquilo a ninguém.

- Uma sombra, que antecede a morte das pessoas....e tu, vê-la... – Repetiu ele, coçando ligeiramente a testa.

- Sim. Já a vi várias vezes! Primeiro sinto um tremor frio, que me trepa pela espinha. Depois, sinto a sua presença. É uma presença tenebrosa e arrepiante. Por fim, fica tudo escuro, e da escuridão sai uma sombra maligna, que trespassa a pessoa, arrancando-lhe a alma. – Ela esperava que, daquela revelação sinistra, Gabriel parasse o carro e desatasse a fugir. Mas estranhamente, ele lançou-lhe um olhar meigo e prosseguiu com o diálogo:

- Tens medo dessa sombra? – Inquiriu, enquanto os seus olhos meigos procuraram o rosto apavorado de Virgínia.

-Tenho. É mesmo algo assustador...nem tu imaginas o que sinto, quando a vejo. – Exclamou ela, entre soluços.

- E, já pensaste, que não vês essas sombras por acaso?...

- O que queres dizer? – Perguntou Virgínia, com a voz profundamente fria.

-O que eu quero dizer, é que tu tens um dom. Um dom que te foi dado por Deus, para que tu, e apenas tu, possas ver a morte a aproximar-se, antes de outra pessoa qualquer. – Afiançou Gabriel.

- O que achas que eu devia fazer, então? – Murmurou Virgínia, quase imperceptivelmente.

- Acho que podes salvar as pessoas, antes delas morrerem. Afinal, tu vês a morte a aproximar-se!...já imaginás-te que pode ser, essa a tua missão na terra?

Virgínia nunca tinha encarado o problema deste modo. Desde sempre que fora repudiada por todos, pois achavam-na Demoníaca. Uma vez, até ouvira uma das educadoras do orfanato a contar que o padre de uma paroquia tinha morrido, numa noite em que, ela ainda bebé, ficara possuída pelo Demónio. Sempre foi levada a pensar que era uma atrasada mental, com graves perturbações; mas depois de ouvir as palavras sensatas daquele rapaz belo como um anjo, sentia-se diferente. Afinal, ela tinha um dom, disse-lhe ele, e esse dom fora-lhe dado por Deus. Possuía o poder de salvar as pessoas da morte!

- É aqui que eu te deixo! – Pronunciou Gabriel subitamente, enquanto encostou o carro na berma da estrada.

- Hã?... – Suspirou Virgínia, meio aturdida. – Está bem! Obrigado pela boleia e... muito gosto em conhecer-te!

- Igualmente, Virgínia! Boa Sorte! – Exclamou ele, com um sorriso encantador.

Virgínia virou-se para observar o veículo a afastar-se, mas estranhamente, já não havia veículo nenhum. Foi como se tivesse esfumado pela bruma da noite.

Começou de novo a palmilhar, dirigindo-se em direcção a umas casas que despontavam mais à frente. Precisava de encontrar um sítio para dormir. Tinha algum dinheiro com ela, pois durante toda a sua vida na casa dos Fonsecas angariara um bom pé-de-meia. Pelo caminho, recordou-se da face de Gabriel. Era uma face harmoniosa, bem como a sua voz. Recordou-se do diálogo que ambos tiveram, e agora mais a frio, atemorizou-se ao notar que durante o mesmo, nunca dissera o seu nome a Gabriel, todavia ele sempre a tratou por Virgínia! - Como poderia ele saber o seu nome.

QUATRO

Continuou a caminhar, sem conseguir encontrar uma explicação lógica para aquela interrogação súbita, que lhe assaltara o espírito. Sentia frio e fome. Tinha penetrado numa pequena vila, e decidiu entrar no primeiro café que encontrou, pois um “cheirinho” a comida gravitara até às suas narinas, e ela não lhe resistiu.

O café, que era mais uma taberna, estava cheio de homens com aspecto obsceno e nauseabundo, mas assim que ela entrou, um súbito silêncio invadiu o local! Virgínia sentiu-se trespassada pelos olhos arregalados dos homens truculentos, percebendo que não era a única “mulher” no interior do local.

Atrás do balcão, uma mulher gorda, que os clientes tratavam por Dona Júlia, atendia os homens, que provavam ter-lhe muito respeito.

- O que procuras aqui, pequenita? – Questionou a mulher com uma voz gutural, mas afável.

- Tenho fome! – Redarguiu ela, com o rosto corado, e meia envergonhada.

- Espera lá...Estou-te a conhecer!... – Afiançou a mulher, fitando o rosto de Virgínia – Tu não és aquela miúda, que...?

- Sim. Sou eu... – Apressou-se Virgínia a responder.

Virgínia soube naquela noite de que a filha da dona Júlia fora uma das inúmeras vítimas de Victor, ali na aldeia.

E, talvez por isso, a dona da taberna, acolheu-a no seu modesto Albergue, oferecendo-lhe uma cama, roupa e comida quente. Fora uma maneira de a compensar, por Virgínia ter feito, aquilo que ela desejara fazer numa noite, mas que fora impedida pelos seus compadres, para não ter de passar algum tempo na prisão.

Ao fim de algumas semanas, Virgínia sentia-se bem no albergue. Gostava imenso da Dona Júlia, que afinal se revelara uma mulher extremamente sensível e carinhosa.

Num final de tarde, a mulher chamou-a ao seu reduto, e fez-lhe uma consulta:

-Minha linda...Já cá estás, vai fazer quinze dias, e eu queria saber se gostavas de continuar aqui a viver comigo. Sabes, gosto muito de ti e... – mesmo antes de terminar a frase, Dona Júlia fora arrebatada por Virgínia, que se lançou de braços abertos sobre ela, apertando-a com toda a força que os seus músculos possuíam.

A mulher propôs que ela estudasse na escola mais próxima, e que a ajudasse na taberna, sempre que tal se justificasse, o que Virgínia acedeu com bastante euforia, pois ela gostava do ambiente da taberna. Quando ela estava presente, os homens evitavam de ser obscenos e até eram simpáticos com ela.

Numa noite tormentosa de chuva e ventania, o albergue fora procurado por diversos camionistas, que optaram por pernoitar por ali, em vez de prosseguirem caminho, uma vez que a tempestade ameaçava as condições de segurança na estrada. A taberna também estava cheia. Afinal, era ali que muitos homens passavam o tempo. Uns jogavam às cartas, outros entretinham-se a conversar, etc.

Virgínia descansava na quietude do seu quarto, quando algo lhe assombrou o espírito. Algo muito Dantesco aproximava-se do Albergue. Levantou-se de imediato e assomou-se à janela do seu quarto. Estava escuro. Nem a luz ébria da lua deixava enxergar o que lá vinha. E Virgínia agourava que fosse mais uma daquelas sombras demoníacas que lhe terrificava a alma, antes de levar alguém, sabe-se lá para onde. Agora mais perto, a sombra confundia-se com o negrume da noite, e de entre os carvalhos que procediam o pátio do Albergue, a sombra, como provinda das trevas, rompeu em direcção à taberna, onde todos se mantinham num grande divertimento nocturno – “A sombra ia levar alguém”. – Premeditou.

Podia ser a Dona Júlia, que ela tanto amava. E naquele momento recordou-se das palavras do jovem Gabriel, quando lhe explicou o motivo das suas visões: “Acho que podes salvar as pessoas, antes delas morrerem. Afinal, tu vês a morte a aproximar-se!...já imaginás-te que pode ser, essa a tua missão na terra?”

Não podia hesitar. Teria de descer e ir salvar a mulher que a ajudou, quando todos lhe viraram as costas. Sem se deter, Virgínia desceu as escadas numa correria intensa, e ao acercar-se da porta que precedia a taberna, apenas se lembrou de gritar pela dona Júlia, suplicando-lhe para que ela fugisse dali, o mais rápido possível.

Sem perceber o porquê daquela exaltação repentina, a Dona Júlia saiu da taberna e veio ao encontro de Virgínia.

- Fuja, Dona Júlia!...Fujam todos, por favor, porque vem de lá algo muito mau!... – Bradou Virgínia, com o rosto rubro de pavor.

E sem detença, a mulher começou a afastar-se, com a face nitidamente incrédula. Atónitos, os clientes que permaneciam na taberna, decidiram sair também, e logo ali se gerou o pânico e a confusão.

Passados alguns minutos Virgínia notou que ficara sozinha na taberna.

“Onde estás?”, inquiriu ela, de si para si.”Quem é que tu procuras?”

Continuou a caminhar vagarosamente, ora de costas, ora de frente, como quem procura por algo que está escondido. Repentinamente, as luzes da taberna apagaram-se e o local ficou abafado por uma densa escuridão. Virgínia ouviu A Dona Júlia a vociferar algo, lá fora, mas não prestou atenção. Voltou a quedar-se no escuro, esperando por ver algo sinistro, que tanta desgraça tinha trazido à sua vida. Mas não via nada. Apenas uma fraca luz, que se levantou, da zona da cozinha. Olhou melhor e viu que não era uma luz. Era fogo. A cozinha estava a arder. Tentou fugir, mas uma labareda subiu pela parede, que era forrada a cortiça, logo arrebatou toda a taberna, e Virgínia viu-se envolta em chamas.

E foi ali, no meio das chamas, que viu um delirante terror, mesmo diante dos seus olhos. A sombra, a sombra maligna estava ali, mesmo à sua frente, e sem qualquer compaixão, ceifou-lhe a alma, arrancando-lhe o espírito para as trevas.

Cá fora, a Dona Júlia, e os frequentadores da taberna, apenas viram a prédio em chamas, a abater-se sobre os seus pilares, e a desmoronar-se completamente em direcção ao solo.

A agonia invadiu as almas ao assistirem ao lúgubre acontecimento, pois sabiam que a pobre Virgínia tinha lá ficado debaixo para os salvar a todos.

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