AGAMENON

AGAMENON

Autor: LEONARDO NUNES












“Agamenon”


Por Leonardo Nunes Nunes



















Dedico este conto ao já falecido Nelson Bond; através de sua escrita, por ela fui indiretamente influenciado. A lembrança é eterna!




“ – Você está preparado para o sucesso?

– Não vou mentir... eu não sei.”





Meu rosto contraiu-se num esgar assombroso quando acordei suado, e com dores abdominais, do mais estranho sonho que até então nunca tive. Demorei para acostumar minha audição e escutar a forte chuva que lá fora caía. Há pouco passara das duas da manhã. Com a fraca luz do abajur vi-me parecer no espelho deformado. Certamente o estresse que vinha consumindo-me teria a maior parcela de culpa, porém não poderia explicar o estado físico em que me encontrava. Venho passando por um período deveras crítico em minha vida e obra, entrementes algumas coisas continuam a dar certo. A venda do meu último título garante-me, ainda, um prolongado sustento financeiro capaz de sanar dívidas com a editora e outras compulsórias da vida moderna. Estou perdido algures na minha mente, meu subconsciente conspira contra todo o meu ser e sinto-me cada vez mais afundar na lama, condenado ao ostracismo, fadado a nunca mais sentir-me bem.

Imediatamente caminhei em direção à minha escrivaninha, liguei a luz do abajur, abri minha máquina de datilografar e posicionei meus dedos por sobre as teclas. Meu olhar convergiu para a folha, que repousava por sobre as outras ainda em branco, destinada a ser a capa, com apenas meu pseudônimo precedido pela palavra “por”. A folha, já dentro da máquina, recebeu a primeira palavra pesadamente, e parou por aí. A inspiração parecia ter-se esvaído, e senti minha garganta doer por estar seca. Levantei da cadeira e, na cozinha, com o copo na mão cheio d’água, escorei-me na mesa pensando nalgo capaz de alimentar meu desejo de escrever. Que título haveria eu de colocar? Diante da máquina, com essa primeira palavra riscada, a primeira sentença: “Preparado para o sucesso”. A hora avançava ferozmente sem que mais nenhuma outra palavra decorasse a folha em minha frente. Voltei para a cama e, um pouco melhor, menos suado, praticamente refeito do último sonho, vislumbrei um pequeno lugarejo composto por algumas decoradas casas sem mais ninguém à vista. Aproximei-me delas paulatinamente, observando um céu cor de âmbar cada vez mais distante de minha visão. Senti as pedras que repousavam no caminho pelo qual percorri, suas pontas, seus formatos arredondados, e a terra junto delas. A sensação de estar algures morto insistia em atormentar-me. As casas, algumas ao estilo vitoriano, separadas com certa distância umas das outras, pareciam retratar meus sentimento no momento aflorado, o da solidão. De acordo com o meu avançar, antes abertas, as janelas de duas ou três casas fecharam-se apressadamente, fazendo-me assustar. Da última casa, porta afora saíra um sujeito de face serena, e entendi que era um convite par entrar. Pela última vez, antes de atravessar aqueles umbrais, olhei para as casas ao meu redor, tendo a impressão de estar sendo espreitado por olhos demoníacos. “– Deixe-os para lá. Eles não gostam de visitas”, disse-me o anfitrião, segurando-me fracamente pelos ombros. “– Entre! És meu convidado”. Cruzando aqueles umbrais, um novo mundo fora-me apresentado. “– Aqui encontra-se teu desejo mais íntimo, aquilo que preenche teu âmago”, disse-me tranqüilamente. Fez-me sentar em uma cadeira de madeira e remendada, e, esticando o braço, entregou-me um papel com apenas uma palavra manuscrita. E aquele era o meu mundo. E o preto, a minha favorita cor. E o desespero, fazendo meu coração pulsar mais rápido, meu algoz. “– Carregue consigo este papel. Ele salvará tua vida. Beba desse vinho, um gole basta, e parta. Não quero que vejas a besta. Eu sinto, pois também sou um deles”, sempre tranqüilamente, terminou por falar, abrindo-me a porta para passar. E pela última vez cruzei aquele umbral, “e nada mais”; por fim olhei as janelas novamente abertas, enquanto passava, e aqueles olhos incandescentes despertando na escuridão espectral que dentro perdurava. Assustado, despertei numa manhã ensolarada, mais cansado do que no dia anterior, próximo do meio-dia. Percebi estar tonto, pois, ao levantar, ao chão quase caí.

Respirei fundo uma golfada de ar que, estranhamente, abrira a janela com força sobre-humana. Nem dei importância para o fato; deitado, meu corpo doía; em pé, ardia.

Caminhei até minha mesa lentamente, esfregando a mão esquerda no braço direito tal qual o corpo dolorido, observando a máquina fechada repousar ao lado de uma pequena pilha de folhas datilografadas, para baixo viradas. Vagarosamente desvirei a primeira delas e estupefacto fiquei ao ler, escrita por toda a sua extensão, um estranho nome, idêntico ao soprado durante o sonho. O mesmo nome preenchia o espaço de todas as outras folhas; abri a máquina e deparei-me com uma frase na folha dentro dela escrita: “O vinho, basta um gole do sangue do derrotado para sucumbir aos desígnios de sombrios sonhos pelos Antigos criados”.

O suor passou a escorrer pela minha testa e descer pingando ao chão, tamanho nervosismo que passei a ficar. O que era aquilo, afinal? Sentei, sem tirar os olhos da máquina, no sofá e tentei refletir sob uma recente dor de cabeça. Repentinamente levantei e fui para um rápido banho, pois assim precisava. De meu apartamento saí em direção ao sebo mais próximo. Ao sabor do ócio, observei cada título com a atenção que mereciam, e encontrei de antiga tradução “A Cidade do Sol”. Levei-o junto de um antigo dicionário. Em casa, novamente sentado no sofá, desta vez com a folha na mão, reli inúmeras vezes o bilhete. Os Antigos. Sangue. Ritual? Novo título: Sombrio Desígnio.

Quem sabe a morte possa trazer paz à alma do condenado, que, de tanto chorar, forças deixou de ter.

O Ritual é o passaporte para a vida eterna. E, quem sabe, somente assim Syndud prevalecerá.

Desta vez a editora teria o que reclamar, mas absolutamente nada seria capaz de, a partir daí, contaminar minhas idéias. Dei-me conta que os sonhos faziam-me ter acesso a lugares esquecidos pelo homem, que outrora ocupara privilegiado lugar. Os sonhos surgiam e desapareciam sem deixar rastro, somente lembranças. E os lugares que visitei, e os que explorei, somente agora entendo o motivo de tê-los sonhado. Então a máquina voltou a funcionar, logrando o resultado planejado: todos conhecerão Arleon, e render-se-ão, portanto, frente ao seu poder.

Instantaneamente Syndud materializou-se a minha frente, e carregou-me consigo por entre portais e passagens, sempre comigo preocupado, até encontrarmos aquele império marchar ininterruptamente, por entre os vales, a morte encontrar.

“Veja-os em direção ao destino para eles traçado. A morte é o que vão encontrar, mas é pela vitória que querem marchar. Escute-me para desavisado não ficar: o teu, o meu, o nosso destino vamos encontrar. E o destino é, pelo portal, atravessar”.

Fez-se um grave ruído, que somente eu pude escutar, e o demônio jogou-me pela fissura na terra aberta, pelo portal atravessar. Silêncio. Foi tudo o que eu pude escutar. “Onde estou?”, gritei, sem nenhuma resposta ressoar. E acordei, suado, cansado e deitado no sofá. A única palavra que em minha mente parecia gritar: matar.

O telefone tocou inúmeras vezes; era a editora, cobrando satisfações. Sempre a mesma coisa, “precisamos lembrá-lo que o tempo está passando”. Aos demônios com as cobranças, estava porvir a obra por mim sonhada!



*



“Distraído, detetive Queiroz, Kito, como era chamado, atende o telefone a falar com seu mais novo cliente. Anotando o nome soletrado pelo sujeito do outro lado da linha, é convencido frente ao pagamento de três mil adiantado, totalizando dez ao final, para um estranho caso”. As teclas da máquina não paravam nem para descansar. “Rico, o dinheiro pagaria a perseguição à esposa, dada a rituais místicos, para não dizer satânicos”.

“ ‘E o que o senhor pretende?’, pergunta Kito; ‘Descobrir, apenas’, responde o senhor de firme voz”. Tudo indicava ser minha melhor estória, a minha obra! “As andanças da bela mulher conduziu-o para um remoto e moribundo lugar, capaz de vida ordinária e própria ter, até vê-la, sentada e perfurada, escorada na parede com os olhos fixados na porta em que acabara de entrar”. O ruído. “Kito pega sua pistola e descarrega-a em direção àquela entidade do submundo, pois somente a morte traria de volta a paz à alma do condenado. Perfurada, avançava em sua direção, em direção à presa fraca e debilitada, escorada no pilar central, com os olhos marejados d´água, e sangue... e pôde ver que a figura ora parecia com o sujeito que o contratou, sorrindo, ora consigo próprio, o espelho da sua alma doente”; a máquina de datilografar repentinamente parou, e voltei minha visão para ele que acabara de lugar algum chegar e olhar fundo em meus olhos e falar: “ Eis o momento, amigo meu. É preciso escolher. Para muitos, você morrerá; para nós, eternamente viverá”.

Seu braço vi esticar e apontar a máquina de datilografar, e, com o outro, papéis entregar. “Substitua-a pela minha criação, e a sua, deixe comigo guardar, e sucesso, mesmo póstumo, terás; é a única ajuda que permitido fora-me dar. Quando eles esquecerem-no, farei de tudo para lembrar”. E mais uma vez, o demônio teve de partir, e “Sombrio Desígnio” nunca mais vi retornar. O título? Estranhamente soou aos meus ouvidos igual ao nome a mim em sonhos conclamado; foi para isso que dei-me conta existir, tudo foi de amarga realidade. Dia em que relembra-se os mortos, numa festa sem fim, caricaturas infernais soltas gritando, gemendo, uivando para aqueles ainda vivos atormentar. Foi loucura que me fez cegar diante tal escuridão.

Quando os olhos abri, Arleon ao meu lado estava à espera de meu despertar, em seu magnífico reino, onde outrora divertiam-se desconhecidos deuses, um lugar coberto de vida que morte nenhuma era capaz de enganar. E aquele de absoluto poder parecia inquieto ficar, até ouvir-me falar: “Aqui desperto após falecer lá”. Olhando firmemente para meu recém animado corpo, coberto por cólera e inquietude, falou sem titubear: “Fostes para meu inimigo, e agora queres voltar. És condenado, e penitência hás de pagar”. Então senti enormes garras agarrar, e, sem forças, tentei falar: “O papel...”. Vi seu rosto contrair-se ao pegar tal papel, e agachar-se diante de mim, por segundos ficar. Ao levantar, em sinal de profundo respeito, meus olhos a observar, disse em tom elegante – e semi-deus fui-me tornar.

(Pela primeira vez o ouvi falar).

(Um novo reino fui morar. Nova vida, desfrutar).

Tudo mudou. Destino, amigos, demônios. Outrora fui humano, desconhecido fiquei para poderes gozar.



- Chamá-lo-ei, portanto, de Agamenon.













FIM











Embora tenha havido muita cumplicidade ao tê-lo criado, embora dedicatória haja, não considero meu melhor trabalho. Seu desenvolvimento é bom, no entanto o final não foi como vislumbrei; faltou-lhe as asas. Resumo meu “Agamenon” com a frase outrora dita por Machen: “Tive sonhos de fogo, mas criei obras de barro”.

LNN













FIM

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