NOITE NA FLORESTA
NOITE NA FLORESTA
Autor: Paulo Arnold
Do alto de um penhasco, em um ponto ermo de um local o qual a maioria das pessoas não ousa sequer proferir o nome e nem dirigir o seu olhar ou pensamentos ,e onde erigi o que chamo de lar, observo o mar bravio se atirando furiosamente contra as rochas. E nesta cena, onde alguns enxergam apenas uma luta, vislumbro um romance eterno em que pedra e água, o sólido e liquido se misturam e deixam um pouco de si um no outro eternamente.
E no êxtase deste momento o som ribombante se eleva como a voz dos anjos em adoração ao contínuo da criação, um som que me acalma e hipnotiza com sua harmonia natural e poderosa.
Sou tirado de meu torpor pela visão ao longe, no alto mar de uma massa negra que se eleva como uma parede e pinta o céu em tons de cinza escuro azulado e que prenuncia para logo mais tempestade.
Fico ainda alguns momentos assistindo à admirável demonstração dos poderes das potências da sagrada mãe e, então, quando rajadas de vento frio e úmido começam a açoitar as pedras e também a minha face, me retiro para o abrigo aconchegante de meu lar.
Escuto absorto o crepitar das chamas na lareira de pedra enquanto a escuridão e a tempestade avançam seu curso eterno do lado de fora das paredes que me aconchegam e protegem.E deitado em um grosso pelego de pelos negros, experimento um licor que há dias atrás preparei com ervas escolhidas e que, segundo a mulher que mora além do vale, são mágicas.
Então, em dado momento algo perturba meu torpor, uma necessidade de ir até a sacada de onde em noites de céu sem nuvens observo milhões de sóis e a irmã de nossa mãe a bela lua se exibindo em seu esplendor, não sei se é um barulho ou um impulso. mas me levanto e me dirijo até a sacada, não dando atenção à chuva ao vento e aos relâmpagos que iluminam a noite com flashes de cor branca azulada.
Quando me dou por conta, estou em pé sobre a amurada, olhando fixamente a floresta logo abaixo, enquanto os brilhos dos relâmpagos revelam detalhes da vegetação se agitando sob a intempérie de chuva e vento.
Então algo se agita dentro de meu ser, e como se algo tomasse o comando de meus movimentos, me agacho e com um grito ancestral salto para escuridão.
Enquanto flutuo pelos ares, sinto a energia das potências transpassarem meu corpo e o resto de razão que lutava para ficar no controle finalmente se desvanece; e quando chego ao solo da floresta não mais me apoio em dois membros mas sim em quatro, e com um salto inicio uma corrida alucinante pela floresta.
Sinto-me forte e rápido, serpenteio pelo meio das árvores,, salto sobre rochas e valas correndo e quase voando.
Meus sentidos se amplificam pela mata, meus pulmões se enchem com o puro ar da floresta ,com seu doce aroma de vida palpitante por todos os lados; minha audição capta os ruídos de milhares de vidas que se harmonizam em uma sinfonia sagrada e eterna, todo meu ser é como um dardo zunindo rumo a seu alvo final.
E a única sensação que enche meu coração é a felicidade plena da liberdade máxima pura, simples e sem culpas.
Então, de repente, algo me atrai a atenção; estanco minha corrida e foco minha atenção em um som, um chamado que reconheço instintivamente como sendo de outros iguais a mim, e imediatamente parto rumo ao ponto de origem de tal chamado.
Chegando lá, me deparo com muitos iguais a mim e ante tal visão paro e observo enquanto fazem o mesmo comigo, logo alguns se afastam e outros vêm ao meu encontro e me tratam como parte de seu bando, e logo saímos em grupos em busca de presas que alimentarão nossa necessidade vital e imperiosa.
Então, depois de feroz e selvagem batalha, recolhemos nosso prêmio e iniciamos o festim e a partilha em um frenesi crescente de prazer e satisfação.
Enquanto alguns se fartam com os despojos da caçada, outros disputam o direito de possuir as fêmeas que se entregam aos escolhidos em uma orgia animalesca.
Por fim nos unimos em um cantar sinistro que ecoa pela noite e faz gelar o coração dos mais corajosos, que nervosamente atiçam o fogo em suas casas e rezam para que aquela noite, para eles amaldiçoada, termine logo.
Então algo me incomoda e tento abrir os olhos, mas logo os fecho novamente e levo minha mão sobre eles em uma tentativa de bloquear a luz que os cega, lentamente vou me acostumando com a luz do dia que entra pelo vidro da janela que identifico como sendo da sala de minha casa.
Na lareira, jaz inerte resto de carvão e cinzas, já há bom tempo apagadas e no chão, ao lado, a garrafa de licor de ervas, ainda com parte do líquido em seu interior, e eu me espanto quanto noto que dormia sobre o pelego de pêlos negros, não que este fato seja incomum, mas sim pelo fato de estar completamente nu.
Penso comigo mesmo:
-Será que foi real ?
-Será que sonhei ?
-Será que sonambulei ?
-Será que o licor encerra em sua mágica a capacidade de minha mente penetrar nas lembranças do animal sobre a pele da qual adormeci ?
-Não sei.
-Um dia devo tentar descobrir.
-Mas não hoje.
Chegado a essa conclusão, levanto-me e vou lavar minha boca e mascar alguma erva aromática para dissipar o sabor de sangue que nela persiste.
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