MARCAS INDELÉVEIS

MARCAS INDELÉVEIS

Autor: Fabíola Colares

Agachada num canto entre uma estante de livros e um baú velho, me sentia asfixiada pelo cheiro de mofo e pelo medo adrenalizante que fazia meu coração pular descompassado por causa da cena horripilante que presenciava.
O suor minava dos poros, gélido, escorrendo em densos fios por baixo da bata branca e fina de organza que estava usando. A respiração suspensa aumentava o calor do sangue que corria rápido como lava incandescente e descia pelo corpo em forma de suor abundante.

Via as mãos gigantescas, alvas como cera, com pelos escuros e unhas curtas, agindo com habilidade, manuseando suavemente um objeto parecido com um bisturi, porém muito maior e afiado, que usava para torturar a vítima viva, amarrada e amordaçada com aquela fita prateada usada por seqüestradores de filmes americanos. Através do olhar ela exprimia o pavor e a dor diante à barbárie que sofria pelo homem de altura descomunal e brancura etérea, envolto numa aura de monstruosidade pavorosa em contraste com a sua beleza delicada, embora extremamente máscula. Os cabelos cortados com esmero, penteados e presos com gel, negros como azeviche. Sobrancelhas grossas, escuras como os cabelos, emolduravam os olhos verdes que transmitiam frieza e mistério. A boca esboçava um constante sorriso de satisfação e parecia sedutora se não provocasse náuseas por estar suja do sangue que lambia pacientemente dos cortes feitos com precisão no corpo da vítima.

Completamente nu, se masturbava enquanto deslizava o afiado instrumento na pele da menina. Pela forma que manuseava o instrumento e pela precisão dos cortes que eram feitos com exatidão, permitindo que o sangue jorrasse denso e rápido no tempo exato para sorvê-lo deixando talhos profundos, abertos como sorrisos macabros e vazios de bruxas desdentadas ou de abóboras de hellowen iluminadas por velas vermelhas, imaginei que não era a primeira vez que praticava tal atrocidade.

O ritual dos cortes era lento. Quase uma hora havia se passado sem que dissesse uma só palavra. Masturbava-se devagar, de pé, andando em volta da vítima, fazendo talhos e lambendo o sangue que jorrava da parte superior, anterior e posterior do corpo. Os seios e o rosto estavam intactos assim como a parte inferior do corpo da jovem. Mas da cintura para cima toda a pele era retalhada.

Parava às vezes, indo até à mesa onde pousava a lâmina e pegava um copo com Bourbon que sorvia em grandes goles. Não soltava o sexo, movimentando a mão com suavidade enquanto admirava vaidoso a obra do seu sadismo horripilante.

Sentou-se numa cadeira coberta com um pano imaculadamente branco e ali ficou uns dez minutos sem mover um músculo, com o pênis ainda ereto, de costas retas e as mãos pousadas nos joelhos. A beleza dele era realmente admirável.

Levantou-se lentamente, foi novamente até à mesa, escolheu um cd e ligou o som. O Bolero de Ravel rompeu o silêncio com violência, alto e com a mesma força dos traços de sua composição perfeita.
De olhos fechados, o belo algoz entrava numa espécie de transe, parado, enquanto a jovem vítima pendia desfalecida de dor e exaustão. Sua beleza era peculiar. A pele alva, coberta de talhos, exibia a juventude exuberante de uns dezoito anos. O rosto de feições firmes estava desfigurado pelo pavor. Pendia para o lado esquerdo com ar de anjo adormecido. Os cabelos desalinhados, molhados de suor, castanhos claros e com corte moderno, caíam na face bela. Sobrancelhas finas, arqueadas, lábios finos e pálidos por causa da enorme quantidade de sangue perdida, seios pequenos, incautos e intocados em meio aos horrendos cortes complementavam a perfeição do resto do corpo. Nem uma gota de sangue vertia dos cortes precisos espalhados pela pele. Mas a dor devia ser imensa! Tanto pelas incisões quanto pelo terror.

O torturador ouvia a música e, abrindo os olhos de repente pegou o bisturi e foi andando em direção ao corpo pendido da moça. Tocou-a suavemente no queixo inclinando a cabeça e pronunciando palavras que eu não conseguia ouvir por causa da música alta.

Paralisada pelo medo, agachada naquele canto onde via tudo sem ser vista, pensava numa maneira de sair dali e buscar ajuda. Poderia ir pelo mesmo lugar que entrei. O sádico não me veria ou ouviria por causa da música alta e por estar de costas para mim. A vítima me veria. Meu medo era que delatasse minha presença com o olhar quando me visse sair do esconderijo. Mas tinha que arriscar. Aquele monstro precisava ser punido.

O lugar onde estávamos funcionava uma empresa que reciclava pneus e que agora desativada servia apenas como depósito de materiais recicláveis de uma usina de compostagem de lixo da cidade. O escritório ficava no mezanino e não era usado quase nunca. Apenas a parte inferior do galpão era utilizada uma vez por semana para armazenar o material separado na usina. O resto do tempo ficava vazio.

Aproveitando o meu dia de folga fui lá para buscar uns pneus velhos que serviriam como balanços e já estavam separados para que os pegasse. Um amigo meu trabalhava ali, me dizendo que não haveria problema se fosse lá buscar porque não tinha nenhuma segurança. Ninguém se interessava pelo lugar já que os moradores vizinhos trabalhavam na usina e os recolhedores ambulantes sabiam que o material a ser reciclado era comprado na matriz da mesma. Bastou um empurrão para abrir a porta. O lugar era ermo e sossegado.

Sempre ouvi dizer que muitos casais aventureiros iam namorar no galpão e não estranhei quando ouvi sussurros e gemidos vindos do mezanino. Avistei os pneus empilhados num canto perto da escada que levava ao andar de cima. Andei lentamente até lá, sorrindo por ouvir os gemidos e as risadas da menina que se divertia lá em cima. Peguei dois pneus, levei até o carro e voltei para pegar mais dois. Já ia embora, mas a curiosidade de ver o que estava acontecendo era tanta que não resisti e subi as escadas na ponta dos pés, entrando na sala exatamente no momento que o rapaz beijava e tirava as roupas da moça. Parecia mesmo um casal aventureiro.

Depois dos beijos e das carícias provocantes, o homem amarrou e amordaçou a menina, que acreditava ser uma brincadeira sadomasoquista do namorado. Nem mesmo ele tendo mostrado a lâmina ela supôs a amplitude da violência que estava por acontecer. Ao desferir o primeiro golpe certeiro e preciso com a lâmina, vi a expressão feliz da jovem transformar-se num esgar de dor e pavor. Até o momento em que o algoz sentou na cadeira senti que a jovem, apesar da dor e do desespero se debatia na incredulidade.

Por mais que eu tentasse fugir dali não conseguiria. Era um misto de terror com a mesma curiosidade macabra e insaciável que assistia aos filmes de terror para saber o final das cenas de violência. Deixei-me vencer pela curiosidade e pela impotência que o medo me causava. Queria saber o próximo passo daquele assassino frio, brilhante e doentio.
Como a jovem não acordava, indiferente aos carinhos e palavras dele, largou a lâmina, puxou o corpo para si e introduziu o sexo no dela, segurando-a pela bunda. Ela abriu os olhos assustados e ele percebendo que havia acordado se afastou, tirando o sexo do dela e abaixando para pegar a lâmina. Ficou de joelhos, separando delicadamente as pernas amarradas apenas o suficiente para que não chutasse. Começou a chupar seu sexo penetrando-a suavemente com a língua. Uma mão segurava a lâmina e com a outra separava o clitóris com uma carícia aterradora.
Não podia imaginar a crueldade da cena que estava prestes a ver.
Levantou a mão que segurava a lâmina vagarosamente, afastou um pouco a cabeça e enfiou-a no sexo da garota. O sangue verteu farto da vagina da vítima que, lívida, não exprimiu mais nenhum sinal de dor ou de medo.

Levantou-se e com um urro bestial abafado pelo Bolero de Ravel, introduziu o sexo no corpo inerte da menina ainda com vida, mas completamente em choque por causa das torturas infindáveis que sofria.

Ele a penetrava com força e violência em meio a todo aquele sangue que vertia do sexo dela enquanto introduzia a afiadíssima lâmina no ânus da garota. Virou o corpo pendido na corda, penetrando-a por trás e soltando a arma para segurar os seios, poupados dos cortes, até gozar.

Afastou-se bruscamente como se tivesse acordado do transe e ao vislumbrar o corpo dobrou-se em espasmos, vomitando jatos de sangue e uísque. Ficou deitado no chão, encolhido, trêmulo, chorando copiosamente de costas para a cena horripilante que ele mesmo tinha criado. Levantou vacilante, tomou longos goles de água e ergueu o galão acima da cabeça, se lavando do sangue da sua vítima. Enxugou-se no lençol que cobria a cadeira, vestiu a roupa, secou o chão com o mesmo lençol e sem parar de chorar desamarrou a jovem, tirou a mordaça e soltou as mãos. Ela caiu no chão sem nenhuma reação. De joelhos ele vestiu a roupa nela e a enrolou em outro lençol que tirou de dentro de uma mochila. Guardou tudo, recolheu os vestígios que deixou e limpou cada objeto que tinha tocado para apagar as impressões digitais.

Eu, assim como ele, chorava muito. Sentia-me envergonhada por ter presenciado o que tinha acabado de acontecer e por não ter tomado nenhuma atitude. Despertada, ainda que tardiamente, pelo senso de justiça, olhei em volta procurando algo que pudesse acertá-lo. Achei uma barra de ferro enferrujada e, aproveitando que estava distraído e de costas para mim, mirei certeiro em sua cabeça e larguei a barra com força. Senti o crânio abrir-se com o golpe e vi o assassino cair desmaiado de bruços.
Corri até onde estava a jovem. Ela estava em choque, muito pálida, mas ainda com vida. Do celular do assassino liguei para a polícia que apareceu logo depois acompanhada de uma ambulância que levou a menina imediatamente para um hospital.
Prestei um longo e angustiante depoimento narrando detalhadamente os fatos do crime horrendo, enquanto o sádico era levado por outra ambulância da polícia militar.
Saí do galpão e só me dei conta de alguma coisa quando parei em frente à clínica que a jovem estava internada. Os familiares vieram me agradecer pelo que tinha feito quando me apresentei como testemunha ocular do crime. Repórteres me faziam perguntas e eu respondia da mesma forma que havia falado com os policiais.

Já haviam descoberto que o criminoso era um médico recém formado que trabalhava no Departamento Médico Legal. Filho de uma família bem estruturada e de boa índole era reservado e ninguém jamais desconfiou que por trás daquele jovem de aparência saudável se escondia um assassino frio e metódico capaz de tais atrocidades.

Meses depois foi julgado e condenado quando saiu do coma causado pelo traumatismo craniano sofrido com a pancada que levou no dia do crime. Outros crimes foram associados a ele e cinco corpos de jovens exumados em locais diversos. Ele confessou que enterrava os corpos das moças depois que praticava as mesmas barbaridades que tinha feito com a que impedi de ser assassinada por ele.

A garota foi submetida a inúmeras cirurgias plásticas para reparar os danos físicos causados pelas torturas. Leva uma vida normal na medida do impossível, pois não consegue esquecer pelo que passou e os danos psicológicos são irreversíveis. As cicatrizes externas das torturas estão praticamente curadas ou apagadas. Mas as que ficaram internamente jamais serão esquecidas.

Sempre que posso vou visitá-la, mas mesmo me tornando sua amiga e fazendo de tudo para minorar seus sofrimentos, ainda assim me sinto culpada por não ter tomado uma atitude a tempo para evitar que fosse torturada como foi.

Hoje compreendo que por causa da minha curiosidade macabra não fui capaz de impedir os cruéis acontecimentos.
Essas marcas ficarão para sempre na minha consciência assim como as cicatrizes profundas deixadas pelo assassino no corpo da jovem.

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