CÍRCULO VICIOSO

CÍRCULO VICIOSO

Autor: Paulo Soriano

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O HOMEM QUE AMAVA A NOITE

Quando o Sol já ia alto no céu, e espraiava na atmosfera sudorosa um calor angustiante, que a luminosidade difusa tornava ainda mais intenso, os sonhos magníficos do velho Max desvaneciam, convolavam-se em vapor, e, após condensarem-se no ar como se fossem nuvem, dissolviam-se em tênues filamentos, até se perderem de todo nos escaninhos da realidade inclemente.

Era duro ver o velho Max despertar para um novo dia de mendicância, com a mente ainda impregnada de belos sonhos, e descobrir-se miserável e infeliz. Porque, quando a noite chegava, e o velho Max se recolhia a um nicho enquadrado nos alicerces de um velho viaduto, uma bênção descia sobre o ancião – uma bênção pela qual ele ansiava a cada segundo vagaroso do dia interminável. Com a noite vinham os sonhos maravilhosos, nítidos como a luz solar, nos quais o velho esmoler simplesmente esvanecia e, da palpável substância de seus sonhos, erguia-se, qual uma fênix, um homem jovem, rico e poderoso. Max, o ancião indigente, tornava-se um ambicioso e feliz magnata.

Sim, esta é a verdade. Quem o via à noite, em sono solto, compartilhando miseravelmente com as ratazanas os dois metros quadrados de sua caverna de concreto, não podia supor as delícias que inundavam aquela alma adormecida. Porque, interiormente, o velho Max – o velho e rancoroso esmoler – não mais existia. O que existia era o outro Max, um homem de quarenta anos, astuto e inteligente, que, de seu aparelho celular, comandava uma empresa portentosa. Um homem que possuía todo dinheiro do mundo e muito mais. Que podia ter nos braços voluptuosos o corpo de qualquer mulher. Que degustava vinhos seculares. Que experimentava, intensamente, a cada dia, as poucas e deliciosas horas consentidas por um Deus benévolo e fiel.

Assim, agradecido aos céus pelo negrume da noite, Max recolhia-se à aspereza úmida de sua cova de concreto, e, com o coração prenhe de alegria e alucinadas expectativas, se punha a sonhar...

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O HOMEM QUE AMAVA O DIA

...Ele era um homem rico e poderoso. Os seus domínios eram imensuráveis e a sua influência fazia-se notar em cada canto do mundo. Vivia cada hora do dia febrilmente e parecia extremamente feliz. Mas vibrava, na superfície de seu olhar, uma sombra de tragédia. Quando o Sol mergulhava nas entranhas da Terra, quando a noite impunha o seu pungente e inexorável negrume, o homem estremecia.

Não era difícil perceber os efeitos deletérios que a noite produzia no espírito daquele homem. Os seus amigos mais íntimos viam, com compaixão, a tragédia enegrecer-lhe de vez as pupilas, enquanto dele apoderava-se uma melancolia inefável, uma angústia tão profunda que nem a riqueza e nem a influência podiam aplacar.

É que, à noite, minavam de seu cérebro entorpecido aqueles tétricos sonhos. Sonhos cuja nitidez e coerência sobrepujavam a lógica inflexível da própria realidade. E o rico homem, ao adormecer, cumpria a sua pena. Porque, em seus terríveis sonhos de pedra, Max era um ancião andrajoso, enrijecido pela artrite e carcomido pela fadiga, cuja triste figura assomava dos alicerces fuliginosos de um antigo viaduto para, sob um sol impiedoso, ansiar o advento da noite e esmolar o pão de cada dia.

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