MARCADOR (Conto)


Autor: Paulo César Born Martinelli

Tiago Curad corria pela traiçoeira e destruidora floresta de Ventosa. Ventosa era uma cidade de interior que hoje, não se sabe o porquê, não existe mais. As pessoas se mudaram de lá sem dizer motivos e sem comentar a ninguém, os que ficaram, bom, nunca mais foram vistos. A floreta pela qual Tiago corria tinha muitas lendas, sempre lhe disseram que ela era amaldiçoada, ele nunca acreditou, cresceu brincando lá, era o lugar mais seguro para ele. Seus pés estavam terrivelmente machucados, os galhos que caiam dos grandes pinos da floresta cortavam seus pés como uma navalha. Tiago não ligava para isso, tinha que correr, ele sabia, se ficasse parado ficaria igual aos outros. Ouvia atrás de si que alguém o perseguia, seu pavor o fazia correr ainda mais rápido. A floresta, sua companheira desde sempre, o havia abandonado, não lhe dava nenhuma chance de se esconder ou simplesmente desaparecer dos olhos de seu perseguidor. Tiago sabia que seu caçador tinha olhos muito bem treinados, com anos de experiência neste tipo de caça, por isso as suas chances eram poucas. Sua calça social marrom estava toda rasgada, sua camisa, também social, branca com listras azuis de vários diâmetros, estava com três rasgos em seu peito mostrando a ferida de sua pela branca. Alguns botões já haviam se perdido, praticamente aberta, os galhos cortavam sua barriga como se fossem chicotes do inferno, sua penitência.

Ventosa, como toda a cidade do interior dos anos 60, era pequena e cheia de historias sobre uma infinidade de monstros, as quais apenas crianças acreditavam. Quase todos se conheciam, as fofocas era a maior diversão das donas de casa, já os homens, ou caçavam na floresta maldita ou criavam seu gado, porcos, carneiros, vacas, bois, uma diversidade de animais. A criação era muito famosa, os bons tratos com os animais produziam uma carne muito boa em todos os aspectos, isso fazia de Ventosa um cidade conhecida por sua qualidade em carnes, claro, mesmo que fosse apenas pela região. Comerciantes da redondeza vinham para Ventosa à compra desses graciosos animais. Na caça os homens traziam animais estranhos, ou seja, nunca vistos pelo país, apenas naquela floresta. Normalmente vinham com algumas capivaras, cachorros do mato, cobra, mas muito difícil uma onça ou até mesmo jacaré, estes eram artigos de luxo, por causa do couro valioso movimentava o pequeno, único comerciante na cidade, de peles. Também abatiam alguns lobos, morcegos, e uma vez uma espécie de leão, mas não era muito um leão. O que mais aparecia eram lobos, sempre ligados ao desaparecimento de pessoas na região, principalmente caçadores. Todos ficavam tranqüilos pelo fato de que os caçadores iam caçar bem no centro e lá encontravam alguns perdidos. Teve uma leva de caçadores que foi caçar lobos, eram em torno de 15, voltaram 3. Esses que sobreviveram contaram que chegaram ao lugar onde sempre encontravam os lobos e quando perceberam haviam uns 20 lobos reunidos, não tiveram chance, todos foram mortos, menos eles que correram antes de começarem a atirar.

Tiago Curad tinha 7 anos quando isso aconteceu, seu pai era caçador e morreu nesse dia. Sua mãe ficou histérica, ele ouvia seus gritos a noite de horror, ele tentava tapar os ouvidos, mas seus gritos eram estridentes e impossíveis de não se ouvir, tinha certeza de que toda a cidade estava ouvindo. No dia seguinte, quando acordou sua mãe não estava mais em casa. Estranhou o desaparecimento, com apenas 7 anos ele já sabia manter a calma. Ao sair de casa encontra toda a cidade reunida, conversando, ele tentou ouvir o que estavam conversando, apenas ouviu: “Eu vi, eu vi, ela foi carregada para o meio da floresta” e todos fazendo “OOOO”. Quando ouviu isso seu rosto empalideceu, ninguém havia percebido que ele estava ali, suas pernas ficaram bambas, num impulso descontrolado ele saiu correndo para a floresta, quando estava entrando na floresta ouviu: “Olha, olha, o filho dos Curad está entrando na floresta.” Fez Tiago correr mais rápido ainda, seus pés calçados com uma sandália de palha pisavam por entre os espinhos caídos dos grandes pinhos da floresta “ Vamos, antes que os lobos o peguem”, suas pernas giravam mais rápido, estava com medo, queria encontrar sua mãe, e por algum motivo sentia que seu pai também ainda estava vivo. Uma multidão entrou na floresta com rifles e espingardas. Tiago corria o máximo que podia, parecia que sua salvação era a floresta. Foi quando encontrou alguns galhos caídos de tal forma que faziam uma pequena proteção. Rapidamente ele entrou dentro daquele pequeno espaço entre os galhos e ficou parado esperando se despistar da multidão. Não pensou se poderia haver cobras, aranhas, ou algo do gênero, apenas queria se esconder. Deu certo, a multidão passou despercebida por ele, seguiram um rastro cego, o qual apenas a floresta lhes mostraria o caminho que deveriam seguir, que daria onde ela mesmo quisesse. Esperou mais um tempo para sair de seu esconderijo.

Quando saiu Tiago estava cansado, sua camisa ensopada de suor, seus calçados quase estourando as fitas que o faziam tomar forma. Olhou para todos os lados, nada viu, nenhum som lhe parecia vir aos seus ouvidos, além do movimento uniforme das pontas dos pinos. Sabia perfeitamente pra onde deveria voltar, a sensação de que sua mãe estava viva se fora, seu pai, nem sentia mais. Agora parecia que sua mão estava junto consigo, logo ele percebeu que o sentimento que sentira fora simplesmente uma forma de esvair a sensação de perda, uma ação histérica que poderia ter custado a sua vida. Passou a mão pelos braços numa tentativa inútil de limpar seus braços da lama que tinha em seu esconderijo. Agora voltaria para casa, sozinho, único filho, sem ninguém para cuidar, sabia que fariam uma reunião na praça pra quem cuidaria do amaldiçoado que perdera seus pais. Caminhando lentamente cabisbaixo de volta para casa, pensando em sua triste vida, na tragédia que acabara de acontecer, ele ouviu alguma coisa. Levantou sua cabeça e vê, a sua frente, como se estivesse trancando a sua passagem de volta a cidade, um lobo. Meu deus, nunca avistaram um lobo tão perto da cidade assim antes. Olhava pra ele, sentiu o frio em sua espinha, paralisou, não sabia o que fazer, estava esperando qualquer movimento do lobo. Este o fitava incansavelmente, Tiago olhava em sua volta a procura de alguma coisa cortante, apenas galhos lotados de espinhos, nenhuma pedra, nada que lhe servisse. Quando levantou a cabeça de novo o lobo não estava mais a sua frente, olhou para a direita, nada, esquerda, nada, se virou lentamente e nada. Seu coração começou a disparar, o lobo estava escondido a sua espera, o terror tomou conta de si. Ouviu algo se aproximando, saindo do meio da folhagem viu o lobo, rosnando, Tiago arregalou os olhos, o lobo pulou para cima dele, pôs o braço entre ele e o braço para se proteger. Tentando lutar com todas as suas forças para se livrar do lobo, seu braço sendo dilacerado, ele gritava inutilmente de dor, por socorro, mas o lobo continuava em cima dele. Seu desespero tomara conta de todo o seu corpo, não conseguia mais fazer nada, quando ouviu um “PAH” e o lobo caiu no chão. Olhou para o lado que tinha vindo o barulho e viu a multidão com faces atormentadas pela cena que tinham acabado de ver. Um garoto com o braço quase destruído por um lobo. Ao olhar para o lugar onde o lobo havia caído não tinha mais nada, havia sumido. Mas agora estava a salvo.

Houve uma reunião na cidade para decidir quem ficaria com Curad, alguns da cidade concordavam em matá-lo, pois agora ele estava infectado pelo vírus do lobo, mas teve um senhor, o que cuidava de frutas, que lhe acolheu em sua casa.

Tiago foi crescendo, e sempre voltava para a floresta para falar com sua mãe, como todos faziam indo ao cemitério, mas dessa vez na floresta amaldiçoada.

Cresceu e se tornou o dono da quitanda do homem que lhe havia educado, este morreu quando Tiago tinha 16 anos, voltou a morar na casa que eram de seus pais, e ao fundo, quase na floresta plantava as suas frutas que vendia posteriormente na sua quitanda. As historias de caçadores desaparecidos continuaram, mas um dia isso mudou, quando uma criança que brincava com um boneco perto da floresta, Tiago passou com uma maça que havia cuidado especialmente e viu a criança. Ele a olhou e falou:

- Cuidado que o lobo pode te pegar – a criança ficou pálida, Tiago vendo que a assustara entregou-lhe a maça dizendo – tome, me desculpa, não queria assustá-la.

Logo depois essa criança foi levada por um lobo pelos pés para o meio da floresta. Tiago não viu, mas ouviu os gritos desesperados da criança de sua quitanda, nada fez, apenas ficou em sua venda esperando que os gritos fossem sufocados pelo barulho do vento nas pontas dos pinos. Isto Tiago já estava com seus 21 anos. Odiava lua cheia, sempre passava mal, lembrava-se dos lobos, seus pais, tudo que envolvia a floresta. Agora havia homens especializados em caçar lobos, o interessante é que quase todos tinham marcas de garras nos rostos, lembrança de alguma luta. Os ataques começaram a ser mais freqüentes, crianças estavam desaparecendo cada vez mais perto de suas casas. Todas as vezes ele ouvia os gritos de horror das crianças sendo levadas, ele não se conformava, por que crianças e não homens. Mulheres também começaram a desaparecer, mas eram as mães desesperadas procurando pelos filhos no meio da floresta. Tiago não se conformava com isso, mas não fazia nada.

Toda noite, depois de fechar a sua quitanda ele ia ao bar beber alguma coisa. Uma noite ele encontrou um homem, tinha uma cicatriz no rosto que lhe atravessava toda a face, na hora sacou que era um caçador de lobos. O homem tinha cabelos cumpridos e mal cuidados. Usava um casaco de pele de lobo, uma bota de borracha preta e bebia um copo de whisky. Um rosto serio, não olhava para ninguém. Tiago começou a sentir algo em seu estomago, uma dor muito forte, não conseguia segurar, se ajoelhou com as mãos em sua barriga, a dor era imensa e soltou um grito:”AAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAARG”. O homem de pele de casaco se levantou, tirou uma espécie de faca com ter pontas e disse:

- É você seu desgraçado!! – levantando aquela faca para o alto e depois abaixando com toda a sua força em direção ao peito de Tiago. Este por sua vez tentou se desviar apenas rasgando-lhe a camisa e cortando superficialmente seu peito.

- Eu o que? Não fiz nada – Tiago com três riscos no peito olhava para o homem.

-É você que nos entrega a eles, seu filho da puta – um momento de silencio - eles mataram tanta gente – parecia que o homem sentia a dor da perda e da raiva através de sua voz triste e cabeça baixa.

Quando o homem terminou de dizer aquilo Tiago viu que era hora de correr. Sua camisa social de trabalho estava rasgada. Saiu desesperado do bar, o homem enfurecido vinha logo atrás dele com a faca de três pontas. Sabia que o melhor lugar para se esconder era a floresta, ainda de tardezinha podia se ver a luz do sol, mas era difícil. Entrou na floresta rapidamente, os espinhos enganavam a todos, inclusive a Tiago, num pulo em falso ele prendeu os dois pés em algo que ele não sabia o que era. Viu o homem se aproximando rapidamente, retirou seus sapatos, deixando as meias juntos e saiu correndo. Não queria morrer, tinha de correr. A floresta, sua companheira desde sempre, o havia abandonado, não lhe dava nenhuma chance de se esconder ou simplesmente desaparecer dos olhos de seu perseguidor. Tiago sabia que seu caçador tinha olhos muito bem treinados, com anos de experiência neste tipo de caça, por isso as suas chances eram poucas. Sua calça social marrom estava toda rasgada, sua camisa, também social, branca com listras azuis de vários diâmetros, estava com três rasgos em seu peito mostrando a ferida de sua pela branca. Alguns botões já haviam se perdido, praticamente aberta, os galhos cortavam sua barriga como se fossem chicotes do inferno, sua penitência. Seus pés estavam terrivelmente machucados, os galhos que caiam dos grandes pinos da floresta cortavam seus pés como uma navalha, mas não ligava para isso, tinha que correr, ele sabia se ficasse parado ficaria igual aos outros.

A noite chegara, a visão estava difícil, não estava pior por causa da luz da lua cheia que imperava no céu estrelado, sem nuvens. O vento era como se não existisse, a meia noite estava chegando. A falta de energia fez seu corpo cair no chão, uma batida seca marcou o encontro de seu corpo com a terra da floresta, de galhos e folhas secas. Seu caçador em um pulo se apoderou do corpo de Tiago, imobilizando-o, e falou:

- Seu desgraçado – levantando um facão enorme pronto para abaixar.

- Não, não faça isso – falou Tiago numa voz baixa e em difíceis condições.

- A única coisa que eu quero saber é como que você os entregava?

- Eu não entreguei ninguém – fazendo muito força falar.

- claro que é – o caçador com o facão levantado, sorrindo maleficamente, olhando friamente para Tiago, e continuou – está quase um lobisomem. Tiago olhou para si mesmo e viu que era verdade, estava se transformando.

- Cara, eu não sou quem marcava as pessoas para morrerem – sua voz estava áspera.

- Tá ok, então vamos fazer o seguinte, eu não vou lhe matar se me contar a verdade.

- Mas eu não.....

O facão desceu rapidamente e cortou um galho que se encontrava a milímetros da cabeça de Curad. Ele entrou em crise nervosa, começou a se debater, inutilmente, mas tentava se livrar de seu caçador.

- Trato feito?

- Tá ta, eu colocava substancias em minhas frutas e entregava para quem eles pediam, isso marcava a pessoa, seu cheiro ficava mais forte e suas forças mais fracas.

- Seu filho da mãe, vou te matar seu desgraçado.

O caçador começou a levantar o facão novamente, decidido a matar Tiago que se encontrava deitado no chão indefeso e fraco. Quando percebeu a sua volta, lobos e pessoas nuas olhando para ambos no chão. A meia noite havia chegado, o caçador estava presenciando pela primeira vez em sua vida a transformação de um grupo inteiro, seu tempo estava acabando, voltou seus olhos para Tiago, quando esse disse:

- Se me matar o resto da cidade também morre – virou sua cabeça para o lado e viu seus pais, metade humanos, metade lobos. Voltou seus olhos e olhou para seu caçador.

O homem sobre Tiago fitou-o e fez feição de descrença, num movimento fatal decepou a cabeça de Tiago, a qual ao rolar alguns centímetros se transformou em uma cabeça de lobo, o homem havia assinado a sua sentença de morte e de toda a cidade.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

O MISTÉRIO DO HOMEM DE PRETO

O QUADRO DO PALHAÇO

A SÉTIMA PÉTALA